Quando chegou em casa naquele dia, João pegou a carteira e mostrou para Jandira.
Ela leu e se espantou:
- Ganhou aumento?
- Ganhei. Aquele salário era do período de experiência, o salário do efetivo é esse aí.
- Quando começar a receber, abre uma poupança.
- A conta que o Ricardo abriu pra mim, é conta corrente e eu não vou pedir pra sair cedo de novo.
- Então eu vou abrir no meu nome.
- Faz isso. Está tudo em casa mesmo.
- Parece que tem uma tal de conta conjunta, com mais de uma pessoa. Vou me informar e abro uma dessa. Assim fica no teu nome também. Se tiver que assinar alguma coisa, eu peço pra trazer pra casa e levo de volta no dia seguinte.
- Tem muito tempo. Hoje ainda recebi o salário antigo, só na quinzena é que vem o novo.
- O imposto de renda também vai ser enorme. Só aí vai mais de mil reais.
- Mas o seu Renato falou, que porque eu tenho cinco filhos eles vão me devolver.
- Se for verdade. Eu não conheço leis.
- Mas ele conhece e eu acredito no que ele diz. Você mexeu naquele dinheiro que eu deixei no banco?
- Não, ainda tá lá.
- Vou te dar mil e quinhentos para as despesas, tirar algum pra ficar no bolso e depositar o resto com o que sobrou do mês. Se precisar de alguma coisa, usa o cartão.
- Não vou precisar de nada. Mil e quinhentos, dá e sobra. As crianças estão sempre trazendo coisas para casa com o que ganham e quase não compro nada.
- Isso não está certo. Eles não tem que sustentar a gente. Que guardem o dinheiro pra eles ou parem de trabalhar. Eu agora ganho o suficiente pra sustentar a família.
- Você sabe que eles gostam de ajudar. O dinheiro da tarde é todo deles. Já compraram as TVs do quarto e as crianças adoram. Agora continuam juntando dinheiro para comprar não sei o que.
- Mesmo assim, eu acho que não é justo. Se a gente precisasse, tudo bem. Mas a gente não precisa mais. Eles podem parar de dar dinheiro em casa. Vou conversar com eles.
Quando as crianças chegaram, João chamou os dois e sentou com eles para conversar:
- Até agora, vocês ajudaram muito com os carretos, trazendo as coisas pra casa e dando dinheiro a sua mãe, mas agora eu estou trabalhando e ganhando o suficiente para comprar o que for preciso pra casa e vocês podem parar de ajudar. Eu preferia que vocês parassem de trabalhar, mas eu sei que vocês gostam. Agora, o dinheiro é todo de vocês.
Janaína falou:
- Mas pai, a gente gosta de trazer as coisas também.
- Mas não precisa mais filha. Gasta o dinheiro com vocês e não com a casa.
- Aí vai perder a graça.
Jonas falou:
- Também acho.
- Então não sei o que fazer. É que o papai teve aumento e não precisamos mais de ajuda. Vocês não tem vontade de ter as coisas? Junta o dinheiro pra comprar.
- Nós já fazemos isso. E sobra dinheiro. As freguesas gostam da gente. E a cada dia trazemos mais dinheiro.
- Mas as aulas vão começar e vocês não vão trabalhar mais a tarde por causa da escola. Quando começam?
- Semana que vem. Atrasou por causa do carnaval.
- Então está resolvido. A partir da semana que vem, vocês só vão de manhã e o dinheiro é todo de vocês. Só quero saber no que estão gastando. Não quero ninguém fumando e nem bebendo aqui.
Jonas respondeu:
- Tá bom pai. Eu detesto cheiro de cigarros e acho ridículo quem fala enrolado e troca as pernas pela rua. Pode confiar na gente.
Resolvida a questão, foram se preparar para jantar.
Jandira ainda dava comida para Joelma que se atrapalhava muito para comer e jogava mais comida fora do que comia.
Assim que acabou de alimentar a menor, ela sentou com os outros filhos e com o marido para jantar.
O jantar foi muito alegre com a notícia do aumento de João, as crianças estavam muito tagarelas e teve uma hora que João falou:
- Vocês estão falando muito e comendo pouco. Comam antes que a comida fique gelada.
As crianças calaram e só voltaram a conversar depois de todos os pratos estarem vazios.
Depois da higiene, foram para os quartos assistir tv.
Jandira acabou de limpar a cozinha e sentou ao lado de João para assistir a novela. Depois do jornal, foram deitar porque levantavam muito cedo.
Quando chegou no trabalho, recebeu o recado que o patrão queria falar com ele.
Subiu e bateu na porta do escritório. Entrou e perguntou:
- O senhor mandou me chamar?
- Queria te perguntar uma coisa. Você anda com a carteira de trabalho no bolso todos os dias?
- Ando sim senhor.
- É melhor deixar em casa e só trazer quando eu pedir. Senão vai acabar rasgando.
- E se a polícia me parar? Vai pensar que sou vagabundo.
- Pra isso tem o crachá.
- Eu não tenho não.
- Você não recebeu crachá ainda?
- Não senhor.
- Vou ver o que aconteceu e quando voltar da obra vem falar comigo de novo.
- Sim senhor.
- João saiu apressado para pegar o ônibus, mas ele já tinha ido levar a turma pra obra. O motorista não percebeu que João não estava nele.
João voltou a sala de seu Renato e falou:
- O ônibus foi embora e eu fiquei.
- Será que ninguém avisou ao motorista que você estava comigo no escritório?
- Parece que não.
- Hoje eu não podia sair daqui. Você não sabe chegar na obra?
- Sei.
- Então vou te dar o dinheiro da condução e você vai. Se o mestre perguntar o porquê do atraso, explica que estava comigo e ninguém avisou o motorista. Senão ele não vai deixar você trabalhar.
- Eu tenho cartão de passagens.
- Esse é pra você vir trabalhar e ir pra casa. Tá aqui o dinheiro.
João saiu e rapidamente chegou ao ponto de ônibus. Sabia chegar porque já estava a meses naquela obra e já sabia os ônibus que passavam por lá.
Pegou a condução e quando chegou o mestre não queria deixar ele subir.
João explicou:
- O seu Renato me chamou no escritório e não avisaram o motorista. Eu estava na construtora e foi seu Renato quem me mandou vir.
- Pode subir então.
João chegou e começou a trabalhar junto com os outros.
Na hora do almoço, todos desceram e ele ficou terminando sua tarefa.
Quando desceu para almoçar, o mestre perguntou:
- Aonde você estava?
- Estava terminando a minha tarefa da manhã. Eu cheguei atrasado na obra hoje.
- Mas não foi culpa sua. Sobe mais tarde depois do almoço.
- Aí eu vou atrasar a tarefa da tarde.
- Amanhã você termina. Foi seu Renato que te atrasou. Hora de almoço é sagrada.
- João já tinha terminado de comer, quando acabou o horário de almoço de todos. Perguntou para o mestre:
- Posso subir? Já acabei de comer e preferia terminar com o serviço de hoje.
- Você gosta mesmo de trabalhar! Pode, mas se sentir alguma coisa, para pra descansar um pouco. O serviço é pesado e você acabou de comer.
- Pode deixar, estou acostumado.
- Subiu junto com os outros e trabalhou normalmente até a hora do lanche.
Só tomou um cafezinho, estava sentindo o estômago muito cheio ainda.
Depois do café, continuou sentado até a hora de subir de novo. Agora a digestão estava sendo feita normalmente.
De volta a construtora, foi falar com seu Renato, como ele tinha mandado.
Bateu na porta e quando entrou o mestre estava falando com ele.
Pediu desculpas e ia saindo quando o patrão lhe chamou:
- Entra João. O mestre estava me contando que você compensou o atraso da manhã no seu horário de almoço. Você não tinha que fazer isso. O ônibus não esperou você acabar de falar comigo e você não teve culpa no atraso.
- É que eu não gosto de deixar tarefa sem terminar.
- Mas na hora do lanche não estava se sentindo bem.
- Eu estava bem sim. Só não estava com fome.
O mestre falou:
- Você estava passando m*l que eu vi. Estava suando muito e esbarrei em você de propósito e você estava muito gelado.
- Acho que comi depressa demais e parecia que eu tinha comido um boi.
Seu Renato explicou:
- Sua digestão estava parada. Seu serviço é muito pesado para você acabar de comer e ir trabalhar sem um descanso.
O mestre falou:
- Eu mandei ele descansar, mas ele quis subir junto com os outros e estava acostumado.
Seu Renato pediu:
- Não faça mais isso. Coma com calma e descanse. Poderia ter tido uma congestão.
- Só não queria atrasar o serviço.
- E poderia ter morrido por causa disso. Aqui está o seu crachá. A partir de hoje, o ônibus só sai daqui quando eu disser que pode.
- Eu não queria aborrecer vocês.
- Não estamos aborrecidos com você. Mas você poderia ter morrido. Você ainda é muito novo e tem cinco filhos pequenos. Precisa ter mais cuidado.
- Não vai acontecer de novo.
- Vai pra casa descansar e se sentir mais alguma coisa, toma um anti-acido.
- Depois do café eu fiquei melhor.
- Porque o café ajuda na digestão. Pode ir agora. Até amanhã.
- Até amanhã.
Depois que ele saiu, o mestre comentou:
- Parece que nome desse cara é trabalho. Trabalha mais que qualquer um na obra e o serviço dele é perfeito.
- Eu já tinha notado. E sabe que é analfabeto?
- Não brinca! Ele fala direito.
- A esposa estudou um pouco e os filhos estão na escola. Na certa ensinaram. É muito amigo de um amigo meu. Foi ele que me pediu a vaga. Parece que chegou a passar fome com as crianças. Vivia de b***s.
- Um profissional desse gabarito passando fome? Custo a acreditar.
- Foi muito explorado por pedreiros. Mas pelo menos aprendeu a profissão e agora é o melhor pedreiro que eu tenho.
- Eu gosto do trabalho dele. E não bebe e nem fuma. Os outros, param pra fumar, ele não interrompe trabalho nem pra ir ao banheiro.
- Vai ficar com a gente muito tempo. Talvez se aposente conosco.
- Tomara! Mas devia ter me obedecido e subido mais tarde.
- Não foi por teimosia, foi porque gosta do que faz e quer fazer perfeito e terminar a tarefa. Amanhã avisa ao motorista que ele só sai com o ônibus, quando eu liberar.
- Eu aviso. Até amanhã.
- Até amanhã.