Capítulo XIV

1826 Words
Chegando no hospital, aguardou um pouco o médico terminar um atendimento e pediu para falar com ele em particular. Entrou no consultório e falou: - Doutor, o senhor está lembrado de uma menina que operou o braço de uma queda que sofreu em casa? - A menina que caiu do beliche? - Essa mesma. - O que tem ela? Sofre agressões em casa? - Não, mas quase morreu. - O que houve com ela? - O senhor esqueceu que a medicação que estava receitando causa anemia e não passou nenhuma vitamina para ela. - Meu Deus! Eu fiz isso? - Fez. Os pais preocupados com a palidez que só aumentava, levaram ela no Souza Aguiar e lá passaram sulfato ferroso. Agora está bem. Mas o senhor tem que ter mais atenção. Ela poderia ter morrido. - Isso nunca aconteceu. Até agora eu não estou acreditando que cometi esse erro. Eu estava preocupado com a criança achando que poderia estar sofrendo agressões em casa. Na verdade, só fiquei tranquilo quando vi que estavam com a senhora. - Eu posso até entender, mas o senhor precisa tomar mais cuidado. Os pais dela são excelentes pessoas, somente muito pobres. Agora estão tendo que reforçar a alimentação dela. - Eu arco com a despesa. - Eles compraram tudo que era necessário. Eu só vim aqui, para lhe pedir que tenha mais cuidado. - Eles vão abrir processo? - Nem pensam nisso. - Quando ela voltar para a revisão eu falo com os pais. Cometi um erro e na medicina, isso pode ser fatal. Vou dar um jeito de compensar a família. - Não tem necessidade. São meus protegidos e nada lhes falta. Só que eu estava viajando e só voltei hoje. - Porque o pai não trouxe a menina aqui. Ela tem direito a consultas até receber alta depois da revisão. - São muito pobres e o pai nem sabe ler. Eles não sabiam disso, e levaram no hospital público. - Dona Marisa, eu estou passado. Cometi um erro grave e mereço ser punido. A senhora faça o que achar que deve fazer. - O assunto vai morrer entre a gente. Tenho certeza que o senhor vai ter mais atenção daqui pra frente. - Pode acreditar nisso e obrigado. Marisa saiu do consultório e reparou nos olhares de curiosidade das recepcionistas. Não falou com ninguém e foi embora. O médico, depois que ela saiu, ficou se recriminando pela falta de atenção que havia cometido. Quase havia sido responsável pela morte de uma criança. Começou a questionar se tinha como seguir com a profissão. Apesar de Marisa não querer dar queixa, ele mesmo procurou a direção do hospital e confessou seu delito. O diretor depois de ouvir tudo perguntou: - Eles vão processar o hospital? - Não. Dona Marisa, do conselho tutelar, falou que eles nem pensam em fazer isso. - O que a dona Marisa tem a ver com essa história? - Foi ela que trouxe a menina. A família é protegida dela. Ela falou que são excelentes pessoas, mas muito pobres e ela ajuda. Eu até queria arcar com as despesas do tratamento da menina, mas ela não aceitou. - Se não vai ter processo, então vamos seguir em frente. Você sempre foi muito bom no que faz. Esquece o assunto e bola pra frente. - Queria pedir uns dias de licença para reavaliar minha vocação. - Não precisa disso. Foi apenas um esquecimento. Todos podemos esquecer alguma coisa as vezes. - Não um médico. Eu poderia ter matado aquela criança. - É só ter mais atenção daqui pra frente. Eu tenho certeza que isso não vai acontecer de novo. Esfria a cabeça e segue em frente. O pediatra voltou para seu consultório mas não se confirmava com o erro que tinha cometido. Marisa retornou a casa de João e avisou: - Eu falei com o pediatra e ele ficou passado. Perguntou se vocês iam processar ele. - E o que a senhora falou? - Que não, mas que ele tinha que prestar mais atenção na hora de receitar. - Não aconteceu o pior. - Vamos passar uma borracha no assunto. Ela está bem agora. Vocês estão precisando de alguma coisa? - Não. Já tirei a carteira de trabalho. Só estou precisando disso. De trabalho. - Vou falar com o Ricardo. É melhor o senhor ir pra construtora. Seu serviço é muito bom. - Eu agradeço. O que a senhora conseguir eu vou. Obra ou limpeza. - Quando eu chegar em casa, ligo pra ele. Amanhã ou depois já vou ter a resposta. - Obrigado. - Agora eu vou indo. Marisa chegou em casa e ligou para o marido pedindo que ele arranjasse um emprego para Seu João na construtora do amigo. Ele perguntou: - Mas o serviço dele é bom mesmo? - É muito bom. Foi ele quem colocou o piso da casa toda e ficou perfeito. - Vou falar com ele agora mesmo. Bons profissionais são sempre bem vindos. A noite te dou a resposta. Marisa foi para o mercado e comprou algumas coisas que estavam faltando em casa. Com a viagem que demorou mais do que tinha previsto, muita coisa estragou. Comprou coisas para as crianças também e saiu chamando os dois. Deu duas bolsas para cada um e disse: - Entreguem para a mãe de vocês. A minha compra eu mesma levo hoje. Tem pouca coisa. As crianças agradeceram e foram pra casa levar as bolsas. Quando entregaram a mãe, ela falou: - Ela perguntou se a gente precisava de alguma coisa e nós respondemos que não. Pra que foi fazer compras? Seu João opinou: - Vai ver não acreditou na gente. Achou que a gente precisava e teve vergonha de dizer. - Pode ser. Ainda bem que agora tem o freezer. Mandou muito músculo e fígado. Vou guardar tudo já limpo para facilitar na hora de usar. Foi para a cozinha e limpou e cortou o músculo que guardou em diversos saquinhos, para descongelar só o que fosse usar de cada vez. A mesma coisa fez com o fígado. Marisa tinha mandado comida para mais de uma semana. As crianças tinham carregado muito peso. Voltou a sala para dizer que não voltassem para o mercado naquele dia, mas eles já tinham saído de novo. Ainda não tinha mexido no que sobrou do churrasco do fim de ano e estava com a geladeira e o freezer abarrotados. Ia combinar com João de fazer outro churrasco no fim de semana e convidar Marisa e Ricardo. Foi a ele e perguntou: - O que você acha de fazermos outro churrasco no Domingo e chamar dona Marisa e seu Ricardo? - Você acha que eles vem? - Dona Marisa fica bem a vontade quando vem aqui. - Tem tudo em casa? - Só falta uns refrigerantes, o resto tem tudo. Eu não fiz nem a quarta parte do que ela trouxe para o final do ano. Nem o carvão foi usado todo. Ainda tem três sacos fechados e outro com mais da metade. - Pergunta a ela se eles vem. Preciso ter uma ideia da quantidade de refrigerantes que tenho que comprar. Vai chamar o Paulo com a família também? - Você acha que eu devo? - A menina tomou conta dos pequenos quando fomos levar a Jurema no hospital? - Tenho medo de misturar dona Marisa com o povo daqui. - Com o Paulo não tem problema. Ele não pede nada a ninguém. Parece que está bem empregado. - Então a gente chama. - Pergunta só pra Dona Marisa se ela vem com o marido. Aí eu vou saber a quantidade de refrigerantes que tenho que comprar. - Vou ver a janta das meninas. A Jurema está mais coradinha. - Também, além do remédio, você turbinou a comida. Nunca se comeu tanta verdura aqui. Até no feijão você está botando folhas. - E pensar que podíamos ter perdido ela. Será que fazemos bem em deixar passar sem um processo? Esse médico cometeu um erro grave. E se matar outra criança? - Dona Marisa já resolveu isso. Vamos esquecer esse assunto. Eu vou ter que levar ela lá para a revisão daqui alguns dias. Ela deve tirar os ferros. - Vai operar de novo? - Acho que não. São só os de fora. Os de dentro vão ficar. - Talvez seja melhor esperar pra fazer o churrasco depois. - Também acho. Comemorar a recuperação dela. - Vai ser melhor. Deixa eu dar a janta dela que daqui a pouco os outros chegam e vem com fome também. Jandira deu a comida das meninas e ainda teve que esperar um pouco pela chegada de Jonas e Janaína. Estavam chegando cada dia mais tarde. Seu João reclamou: - Vocês estão vindo muito tarde. Quero vocês em casa assim que escurecer. Jonas respondeu: - Mas muita gente faz compras quando vem do trabalho. Vamos perder serviço assim. - Vocês estão perdendo a hora da janta. Assim que escurecer quero vocês em casa. É pra obedecer. As crianças não falaram mais nada. Foram tomar banho e jantaram caladas. No dia seguinte, logo cedo, Marisa veio falar com João. - É pro senhor ir nesse endereço aqui e procurar o senhor Renato. É o dono da construtora e vai lhe dar um emprego. Boa sorte. - É pra ir que hora? - Lá pelas noves horas ele deve estar lá. - Muito obrigado dona Marisa. Não tenho como agradecer tudo que a senhora faz pela gente. Vou me arrumar e vou agora mesmo. Fico esperando lá. João colocou sua melhor roupa e saiu com o papel na mão. Passou pela casa de Paulo e ele não estava. Já tinha saído para o trabalho. Pediu a Renata: - Lê pra mim esse endereço e se souber me explica como chegar lá? Renata apanhou o papel, leu o endereço e explicou que condução tomar e onde deveria soltar. João foi em busca daquela oportunidade rezando para que tudo desse certo. Chegou no endereço e o seu Renato já estava. Veio logo atender João. - Você é o indicado do Ricardo? - Sou eu sim. Foi a mulher dele que mandou procurar o senhor. - O que você sabe fazer? - Em obra, tudo. Trabalho nisso há muitos anos, só nunca tive carteira assinada. - Isso não é bom. No caso de uma doença ou acidente, sai sem nada. - Eu sei, mas tenho cinco filhos e pegava o que aparecia. Tenho que levar o sustento deles. - Estou com uma obra grande em andamento. Aceita fazer um teste lá agora? - Claro que aceito. - Vou pegar um macacão pra você colocar e vou te levar até lá. Se passar no teste está empregado. João trocou de roupa e voltou para junto de seu Renato perguntando: - Onde posso deixar isso? Renato deu uma sacola e falou: - Coloca aqui. Deixa dentro do carro. Ninguém vai mexer. Entraram no carro e foram para a obra.
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