Chegando no hospital, aguardou um pouco o médico terminar um atendimento e pediu para falar com ele em particular.
Entrou no consultório e falou:
- Doutor, o senhor está lembrado de uma menina que operou o braço de uma queda que sofreu em casa?
- A menina que caiu do beliche?
- Essa mesma.
- O que tem ela? Sofre agressões em casa?
- Não, mas quase morreu.
- O que houve com ela?
- O senhor esqueceu que a medicação que estava receitando causa anemia e não passou nenhuma vitamina para ela.
- Meu Deus! Eu fiz isso?
- Fez. Os pais preocupados com a palidez que só aumentava, levaram ela no Souza Aguiar e lá passaram sulfato ferroso. Agora está bem. Mas o senhor tem que ter mais atenção. Ela poderia ter morrido.
- Isso nunca aconteceu. Até agora eu não estou acreditando que cometi esse erro. Eu estava preocupado com a criança achando que poderia estar sofrendo agressões em casa. Na verdade, só fiquei tranquilo quando vi que estavam com a senhora.
- Eu posso até entender, mas o senhor precisa tomar mais cuidado. Os pais dela são excelentes pessoas, somente muito pobres. Agora estão tendo que reforçar a alimentação dela.
- Eu arco com a despesa.
- Eles compraram tudo que era necessário. Eu só vim aqui, para lhe pedir que tenha mais cuidado.
- Eles vão abrir processo?
- Nem pensam nisso.
- Quando ela voltar para a revisão eu falo com os pais. Cometi um erro e na medicina, isso pode ser fatal. Vou dar um jeito de compensar a família.
- Não tem necessidade. São meus protegidos e nada lhes falta. Só que eu estava viajando e só voltei hoje.
- Porque o pai não trouxe a menina aqui. Ela tem direito a consultas até receber alta depois da revisão.
- São muito pobres e o pai nem sabe ler. Eles não sabiam disso, e levaram no hospital público.
- Dona Marisa, eu estou passado. Cometi um erro grave e mereço ser punido. A senhora faça o que achar que deve fazer.
- O assunto vai morrer entre a gente. Tenho certeza que o senhor vai ter mais atenção daqui pra frente.
- Pode acreditar nisso e obrigado.
Marisa saiu do consultório e reparou nos olhares de curiosidade das recepcionistas. Não falou com ninguém e foi embora.
O médico, depois que ela saiu, ficou se recriminando pela falta de atenção que havia cometido. Quase havia sido responsável pela morte de uma criança. Começou a questionar se tinha como seguir com a profissão. Apesar de Marisa não querer dar queixa, ele mesmo procurou a direção do hospital e confessou seu delito.
O diretor depois de ouvir tudo perguntou:
- Eles vão processar o hospital?
- Não. Dona Marisa, do conselho tutelar, falou que eles nem pensam em fazer isso.
- O que a dona Marisa tem a ver com essa história?
- Foi ela que trouxe a menina. A família é protegida dela. Ela falou que são excelentes pessoas, mas muito pobres e ela ajuda. Eu até queria arcar com as despesas do tratamento da menina, mas ela não aceitou.
- Se não vai ter processo, então vamos seguir em frente. Você sempre foi muito bom no que faz. Esquece o assunto e bola pra frente.
- Queria pedir uns dias de licença para reavaliar minha vocação.
- Não precisa disso. Foi apenas um esquecimento. Todos podemos esquecer alguma coisa as vezes.
- Não um médico. Eu poderia ter matado aquela criança.
- É só ter mais atenção daqui pra frente. Eu tenho certeza que isso não vai acontecer de novo. Esfria a cabeça e segue em frente.
O pediatra voltou para seu consultório mas não se confirmava com o erro que tinha cometido.
Marisa retornou a casa de João e avisou:
- Eu falei com o pediatra e ele ficou passado. Perguntou se vocês iam processar ele.
- E o que a senhora falou?
- Que não, mas que ele tinha que prestar mais atenção na hora de receitar.
- Não aconteceu o pior.
- Vamos passar uma borracha no assunto. Ela está bem agora. Vocês estão precisando de alguma coisa?
- Não. Já tirei a carteira de trabalho. Só estou precisando disso. De trabalho.
- Vou falar com o Ricardo. É melhor o senhor ir pra construtora. Seu serviço é muito bom.
- Eu agradeço. O que a senhora conseguir eu vou. Obra ou limpeza.
- Quando eu chegar em casa, ligo pra ele. Amanhã ou depois já vou ter a resposta.
- Obrigado.
- Agora eu vou indo.
Marisa chegou em casa e ligou para o marido pedindo que ele arranjasse um emprego para Seu João na construtora do amigo. Ele perguntou:
- Mas o serviço dele é bom mesmo?
- É muito bom. Foi ele quem colocou o piso da casa toda e ficou perfeito.
- Vou falar com ele agora mesmo. Bons profissionais são sempre bem vindos. A noite te dou a resposta.
Marisa foi para o mercado e comprou algumas coisas que estavam faltando em casa. Com a viagem que demorou mais do que tinha previsto, muita coisa estragou.
Comprou coisas para as crianças também e saiu chamando os dois.
Deu duas bolsas para cada um e disse:
- Entreguem para a mãe de vocês. A minha compra eu mesma levo hoje. Tem pouca coisa.
As crianças agradeceram e foram pra casa levar as bolsas. Quando entregaram a mãe, ela falou:
- Ela perguntou se a gente precisava de alguma coisa e nós respondemos que não. Pra que foi fazer compras?
Seu João opinou:
- Vai ver não acreditou na gente. Achou que a gente precisava e teve vergonha de dizer.
- Pode ser. Ainda bem que agora tem o freezer. Mandou muito músculo e fígado. Vou guardar tudo já limpo para facilitar na hora de usar.
Foi para a cozinha e limpou e cortou o músculo que guardou em diversos saquinhos, para descongelar só o que fosse usar de cada vez. A mesma coisa fez com o fígado.
Marisa tinha mandado comida para mais de uma semana. As crianças tinham carregado muito peso.
Voltou a sala para dizer que não voltassem para o mercado naquele dia, mas eles já tinham saído de novo.
Ainda não tinha mexido no que sobrou do churrasco do fim de ano e estava com a geladeira e o freezer abarrotados. Ia combinar com João de fazer outro churrasco no fim de semana e convidar Marisa e Ricardo.
Foi a ele e perguntou:
- O que você acha de fazermos outro churrasco no Domingo e chamar dona Marisa e seu Ricardo?
- Você acha que eles vem?
- Dona Marisa fica bem a vontade quando vem aqui.
- Tem tudo em casa?
- Só falta uns refrigerantes, o resto tem tudo. Eu não fiz nem a quarta parte do que ela trouxe para o final do ano. Nem o carvão foi usado todo. Ainda tem três sacos fechados e outro com mais da metade.
- Pergunta a ela se eles vem. Preciso ter uma ideia da quantidade de refrigerantes que tenho que comprar. Vai chamar o Paulo com a família também?
- Você acha que eu devo?
- A menina tomou conta dos pequenos quando fomos levar a Jurema no hospital?
- Tenho medo de misturar dona Marisa com o povo daqui.
- Com o Paulo não tem problema. Ele não pede nada a ninguém. Parece que está bem empregado.
- Então a gente chama.
- Pergunta só pra Dona Marisa se ela vem com o marido. Aí eu vou saber a quantidade de refrigerantes que tenho que comprar.
- Vou ver a janta das meninas. A Jurema está mais coradinha.
- Também, além do remédio, você turbinou a comida. Nunca se comeu tanta verdura aqui. Até no feijão você está botando folhas.
- E pensar que podíamos ter perdido ela. Será que fazemos bem em deixar passar sem um processo? Esse médico cometeu um erro grave. E se matar outra criança?
- Dona Marisa já resolveu isso. Vamos esquecer esse assunto. Eu vou ter que levar ela lá para a revisão daqui alguns dias. Ela deve tirar os ferros.
- Vai operar de novo?
- Acho que não. São só os de fora. Os de dentro vão ficar.
- Talvez seja melhor esperar pra fazer o churrasco depois.
- Também acho. Comemorar a recuperação dela.
- Vai ser melhor. Deixa eu dar a janta dela que daqui a pouco os outros chegam e vem com fome também.
Jandira deu a comida das meninas e ainda teve que esperar um pouco pela chegada de Jonas e Janaína. Estavam chegando cada dia mais tarde.
Seu João reclamou:
- Vocês estão vindo muito tarde. Quero vocês em casa assim que escurecer.
Jonas respondeu:
- Mas muita gente faz compras quando vem do trabalho. Vamos perder serviço assim.
- Vocês estão perdendo a hora da janta. Assim que escurecer quero vocês em casa. É pra obedecer.
As crianças não falaram mais nada.
Foram tomar banho e jantaram caladas.
No dia seguinte, logo cedo, Marisa veio falar com João.
- É pro senhor ir nesse endereço aqui e procurar o senhor Renato. É o dono da construtora e vai lhe dar um emprego. Boa sorte.
- É pra ir que hora?
- Lá pelas noves horas ele deve estar lá.
- Muito obrigado dona Marisa. Não tenho como agradecer tudo que a senhora faz pela gente. Vou me arrumar e vou agora mesmo. Fico esperando lá.
João colocou sua melhor roupa e saiu com o papel na mão.
Passou pela casa de Paulo e ele não estava. Já tinha saído para o trabalho. Pediu a Renata:
- Lê pra mim esse endereço e se souber me explica como chegar lá?
Renata apanhou o papel, leu o endereço e explicou que condução tomar e onde deveria soltar.
João foi em busca daquela oportunidade rezando para que tudo desse certo.
Chegou no endereço e o seu Renato já estava. Veio logo atender João.
- Você é o indicado do Ricardo?
- Sou eu sim. Foi a mulher dele que mandou procurar o senhor.
- O que você sabe fazer?
- Em obra, tudo. Trabalho nisso há muitos anos, só nunca tive carteira assinada.
- Isso não é bom. No caso de uma doença ou acidente, sai sem nada.
- Eu sei, mas tenho cinco filhos e pegava o que aparecia. Tenho que levar o sustento deles.
- Estou com uma obra grande em andamento. Aceita fazer um teste lá agora?
- Claro que aceito.
- Vou pegar um macacão pra você colocar e vou te levar até lá. Se passar no teste está empregado.
João trocou de roupa e voltou para junto de seu Renato perguntando:
- Onde posso deixar isso?
Renato deu uma sacola e falou:
- Coloca aqui. Deixa dentro do carro. Ninguém vai mexer.
Entraram no carro e foram para a obra.