Capítulo 04: A Alma Esquecida

2586 Words
Nono Círculo do Inferno, o Lago Cocite, Inferno O lago congelado estendia-se diante de Nathanael exatamente igual à última vez em que estivera ali, três anos antes. As lembranças daquela ocasião atingiam sua mente, e sentiu raiva por isso. Ele precisava lembrar-se do que acontecera depois de Aztlan, e não de algo de três anos passados. Entretanto, o que estava perto da Mansão dos Mortos trouxe o presente para o foco. Milhares de demônios estavam reunidos ali. Havia dezenas diferentes, havia alguns de pele vermelha, alguns de pele azul, uns com chifres e carecas, e outros sem, mas peludos como macacos. Nathanael conhecia todas essas espécie, e sabia que elas tinham sido criadas por Lúcifer depois de sua conquista do Inferno, mesmo que durante sua aventura três anos antes, eles não tivessem encontrado com a maioria deles. Eles estavam em acampamentos improvisados em volta de fogueiras – eles não gostavam muito de frio, e aquele Círculo era um dos que era congelante. Felizmente, Nathanael não se incomodava com coisas supérfluas como essa. O anjo escondeu-se usando sua magia, mas também sabia que não podia se aproximar muito mais, ou poderia ser detectado. Procurou por sinais de prisioneiros, mas todas as tendas eram iguais; seria impossível descobrir em qual poderia estar Sabrina ou Phillip ou Aaron ou Ulster. Ele não tinha certeza de nada, nem mesmo se eles estavam ali. Um rapaz jovem, escoltado por dois demônios grandes e com chifres nascendo da testa e subiam mais de trinta centímetros e patas que pareciam ser de touros saiu de uma das tendas. Ele se destacava por ser humano, ou pelo menos, o era do lado de fora, e trajava um terno branco, com camisa e gravata da mesma cor; se naquela parte do mundo a luz do sol fosse tão forte quanto na superfície, ele a estaria refletindo. Seu rosto era belo para os padrões humanos; seus olhos eram azuis e seu cabelo loiro, quase branco, penteado com gel para trás. Nathanael o reconheceu imediatamente. Aquele era Nicolae Gottschalk, o único dos Cavaleiros de Lúcifer que sobrevivera a guerra de três anos antes. Agora, porém, era difícil saber o que ele estava fazendo, já que seu propósito havia terminado. Nicolae caminhou pelas tendas, entrou em uma que não era aquecida por uma fogueira e, depois de longos minutos, ele saiu arrastando uma Sabrina surrada pelos cabelos. Ela se debatia, tentando escapar do aperto de sua mão, em vão; ela era poderosa, mas ninguém era capaz de vencê-lo. De onde estava, Nathanael foi capaz de ver os hematomas no corpo da Nagara. Ela tinha sido torturada, mas o motivo, o anjo não sabia, ou não se lembrava. Considerando que, se fosse uma situação normal, ela teria sido morta assim que colocassem os olhos nela; em outras palavras, seja lá o que for que queriam, ainda não tinham. Ele abriu as asas, pronto para salvá-la. No entanto, parou para pensar melhor: ele podia ser um anjo, mas estava sozinho. Nathanael precisava de ajuda, e tinha que ser pessoas dispostas a morrer. Abriu um portal; do outro lado, uma floresta densa. Cruzou-o sem hesitar. Assim que o portal fechou-se atrás de si, sabia que não estava na Terra ou no Paraíso. De fato, como abrira um portão pensando em procurar por uma pessoa, ele não tinha como garantir com certeza onde sairia. Não esperava, mas ele estava em Khali. Olhou em volta e caminhou para o norte, sentindo a presença dela naquela direção. Ele viu os cachos ruivos um pouco sujos devido ao tempo que ela passou naquela floresta; antes que a perdesse de vista, ele chamou: – Melanie! – Ela virou-se para ele, surpresa por ter companhia naquele lugar remoto. – Nathanael? – O anjo não tinha certeza de como ela conhecia seu nome; talvez por causa de Aaron. – Eu preciso de sua ajuda. – Foi direto ao assunto; não tinha tempo a perder. _____________________________ Nova York, Paraíso Thais arrependeu-se imediatamente após o som da campainha soar de dentro da casa. Mesmo que ali morasse seu primo morto há tantos anos, o que diria para ele? Ele não se lembrava de sua vida terrena; não se lembrava dela e como, juntos, eles passaram pela escuridão do Julgamento e depois pelo Éden. Apesar de, depois disso, eles se separarem e ela lembrar-se dele apenas depois de seu resgate em Paris. Ela mexeu no cabelo, roeu uma de suas unhas, de tão nervosa que estava. Seja lá quem morasse naquela casa, estava demorando uma eternidade para abrir a maldita porta. Thais, então, virou-se e saiu da entrada da casa; Jensen, o simpático garçom que a tinha acompanhado até ali, encarava-a sem entender; e assim permaneceria, já que ela não podia contar sobre seu passado. Assim que ela disse para eles irem embora, a porta abriu atrás de si, rangendo, como tinha feito no dia do velório de Jonathan. Uma mulher morena, vestindo um roupão e uma toalha na cabeça, estava ali. Ela era muito linda; seus olhos castanhos eram de invejar; ela podia estar usando um roupão, mas Thais não pôde negar que tinha um corpo de uma modelo. – Desculpe a demora, eu estava no banho. – Ela falou, com um sorriso simpático. – Posso ajudar? – Oi... – Thais voltou a se aproximar da porta. – Desculpe incomodar. Eu estou procurando por Jared Blackwood, conhece? – Sim, é claro. – A mulher abriu um sorriso tão largo, que Thais pensou que os dois eram mais do que amigos, mesmo que relacionamentos dessa maneira não existissem no Paraíso, pelo menos até alguns meses antes, antes da Guerra Celestial; desde então, as coisas estavam mudando. – Quer entrar? – Sim, obrigada! – Thais entrou e foi seguida por Jensen. Por dentro, a casa estava diferente de como ela se lembrava, talvez pelos móveis, que agora eram modernos e belos, e pela pintura clara das paredes, naquela época, sua tia gostava de cores fortes e marcantes, como verde musgo ou azul. A mulher, cujo nome Thais não sabia ainda, indicou a sala de estar, onde uma TV estava pendurada em uma das paredes. Ela disse que iria se arrumar, mas que já descia para falar com ela. Thais e Jensen ficaram em um silêncio constrangedor enquanto esperavam; ele queria perguntar sobre a ansiedade da garota de alguns minutos atrás, mas não sabia como fazer sem ofendê-la. Já ela, pensava em uma história que precisaria criar para explicar essa mesma situação. A mulher voltou trajando um vestido colorido de pano largo e uma camiseta regata branca colada ao corpo; Thais achou aquela roupa bonita, apesar de lembrá-la de alguns ciganos que vira na cidade quando trabalhava de médica ainda viva. Mas não só estava arrumada, como ela havia trazido alguns biscoito e chá para eles; Thais bebeu e comeu, e Jensen também – as almas, mesmo mortas, viam o prazer em comer. – Eu não sei se me apresentei – ela falou enquanto servia – eu costumo esquecer. Meu nome é Analetta, muito prazer. – Eu sou Thais. – Ela falou, em seguida, apontou para Jensen. – E esse é Jensen... – Ah, eu o conheço. Vou ao café dele de tempos em tempos. – Ela sorria; então, tomou um gole do chá. – Então, estão procurando por Jared, não? – Sim. – Thais respondeu. – Como o conhece? – Ele me levou para andar de barco algumas vezes com um grupo de amigos em comum. – Analetta comeu um biscoito. – Ele é bem divertido, mas nos últimos meses ele estava agindo um pouco estranho. – Estranho? – Thais queimou a língua, pois não esperava que a mulher falasse algo assim, e por isso ela acabou tomando um gole muito rápido. – Como? – Bem, ele começou a contar histórias estranhas sobre um navio de madeira e uma cidade onde pessoas vestiam roupas extravagantes. E tudo isso em um espaço de um dia ou dois, não tenho certeza. Mas acho que ele realmente perdeu a cabeça quando ele inventou uma história sobre monstros marinhos. – Ela acrescentou, um pouco triste. – Nós até pensamos em falar para os anjos, mas essa Guerra horrenda atrapalha tudo. Thais ficou pensativa por um momento. Lembrou-se de que Jared fora um barqueiro durante o século XV, como a Morte havia dito quando ela e Leonard foram até seu Castelo tantos meses antes. Pelo que Analetta descrevia, parecia que ele estava tendo flashs de memória, recuperando-a sem saber. É claro que para os outros ele seria um louco. – E tem notícias dele? – Thais perguntou, tentando arriscar. – Dá última vez que eu soube, ele estava passando bastante tempo nas docas, olhando o muro. – Eu estive lá, mas ele não está mais. E ninguém sabe aonde ele pode estar. – Talvez você encontre uma pista na casa dele. Sabe onde é? – Ela perguntou; Thais respondeu negativamente com a cabeça, enquanto a mulher pegava dentro de uma gaveta um bloco de anotações e uma caneta. – Aqui está. Thais agradeceu e, junto a Jensen, eles deixaram a casa. Ela mostrou o endereço para o garçom que, com um sorriso, afirmou que conhecia o lugar, mas precisariam pegar o metrô até lá. Ela concordou, e, então, desceram até a estação mais próxima. _____________________________ Seu carro acelerava o máximo que o motor era capaz. Ele, com habilidade, trocava as marchas e fazia as curvas com perfeição, ao mesmo tempo em que evitava que o carro afundasse nas dunas do deserto em que a corrida acontecia. O copiloto, um jovem de vinte e poucos anos, olhava o mapa imenso aberto em seu colo e indicava a direção na qual deviam ir. O piloto pensou em algo que precisava dizer ao copiloto, mas por alguma razão não lembrada de seu nome, apenas das iniciais: J.K. Ele tentou, e tentou, mas não conseguia tirar algum significado delas; parecia até que as tinha visto em um sonho. Ele notou um carro à frente. Naqueles tipos de corridas, principalmente no ponto em que estavam, era um pouco difícil ultrapassar os carros que estavam mais a frente, a não ser que eles batiam ou quebravam ou se perdiam no meio daquelas dunas infinitas. Com um sorriso, ele pisou fundo no acelerador; o motor roncou ainda mais alto e as areias que saiam de sua roda subiam tão alto, que era possível ver pelas janelas. Estava a uma velocidade insana. Quando eles ultrapassaram aquele carro, ele assumiu o segundo lugar da corrida, apesar de que seria um pouco complicado de manter essa posição se eles não parassem para abastecer nos próximos trinta minutos. Ao perderem o terceiro lugar de vista pelo retrovisor, eles pararam e em, minutos, reabasteceram. Logo, estavam outra vez avançando em velocidade pelo deserto. – Se continuar assim, vai conseguir. – J.K. falou, entretanto sua voz era muito estranha; ele soava ao mesmo tempo humano, mas por trás, havia uma voz sombria, rouca e grave como o motor de um caminhão. Quando eles menos esperavam, passaram pelo carro que estava em primeiro lugar. Ele estava parado, trocando um dos pneus que tinha sido destruído pela temperatura do solo. O piloto não deixou de pensar que, se não tivesse com pneus especiais, ele mesmo estaria naquela situação. As três pirâmides surgiram no horizonte à frente, com o sol vermelho do crepúsculo atrás delas. Ele não podia estar mais feliz; em mais de quarenta anos correndo, ele chegaria em primeiro lugar pela primeira vez. Seu patrocinador, a multinacional DemonHead, sempre o obrigavam a ficar para trás nas corridas quando era novo, e agora, depois de velho, eles diziam que ele era velho demais para fazer carreira. Eles tinham razão neste último quesito. Estava velho para fazer carreira, de fato, estava no fim dela. E era por isso mesmo que ignorara todos eles; era por isso que iria ganhar aquela corrida, depois disso, iria para algum lugar no Caribe viver curtindo seus filhos e gastando a fortuna que tinha acumulado. Ver a linha de chegada sabendo que nenhum outro carro tinha passado por ali ainda era a melhor sensação que já tivera. Danem-se os patrocinadores, ele pensava, enquanto a linha quadriculada se aproximava, quando sua carreira acaba, eles não te dão mais nenhum centavo; não importa. A bandeira balançou ao seu passar em alta velocidade. O piloto parou ao lado do palanque que tinha o pódio. Mas ao invés de subir nele, ele subiu primeiro no carro, para que todos da arquibancada pudessem soltar gritos de alegria por sua vitória. Todos gritavam seu nome! Pela primeira vez, não gritavam o nome de outra pessoa, mas sim o seu! Ao subir no lugar mais alto do pódio, uma mulher vestindo apenas um biquíni veio trazer seu troféu. Ele quase caiu ao ver os olhos dela: eram pretos onde deviam ser brancos e laranja de íris, e não tinham pupilas. Seu sorriso era bonito e, ao mesmo tempo, arrepiante, pois guardavam um desejo de morte que ele nunca tinha visto em seus mais de quarenta anos de vida. Ele começou a ofegar, desesperado. Outras pessoas se aproximaram dele, e todas tinham os mesmos olhos e sorrisos nos rostos, até mesmo seu copiloto. Mesmo que horas atrás, quando corriam, ele estava normal, ou não estava? Ele não se lembrava. As pessoas nas arquibancadas passaram a escalar e invadir a pista, indo na direção dele lentamente, o que deixava tudo mais assustador. – Concentre-se. – A voz de seu copiloto veio, como antes. – Ignore-os. Ele tentou, mas não conseguiu. Todas as pessoas começaram a falar ao mesmo tempo, dizendo coisas sem sentido, até mesmo em uma língua que ele não conseguia identificar. Tentou correr para seu carro, mas seus pés estavam presos ao pódio. Fechou os olhos, concentrou-se, mas as vozes estavam cada vez mais intensas e poderosas. Senti-as como se agarrassem seu corpo com mãos grudentas e escamosas. Então, o silêncio. Ao abrir os olhos, estava em um lugar escuro, cujas paredes eram de pedra, entretanto, não parecia ser uma masmorra, pois tinha um guarda-roupa, uma cama confortável e uma mesa, com alguns livros sobre ela. Diante de si, seu copiloto, com os olhos pretos e laranja, o encarava. – Você lembra-se de mim? – Ele perguntou, mas sua voz estava normal dessa vez. – Você é J.K. – Ele respondeu, ofegante, com medo. – Não. – O outro retrucou. – Você é J.K. Sabe o que essas iniciais significam? – Não. Desculpe. – Ele olhou para o chão, envergonhado consigo mesmo. – É o seu nome. Ao dizer isso, sua voz mudou de tom, mas apenas dentro da cabeça do piloto. Ele soou como uma mulher, uma mulher que estava na lembrança dele. Ao olhar em volta outra vez, estava em um corredor imenso, cujas nuvens eram o teto. Nas paredes, dezenas de quadros pendurados de imagens que não reconheceu e com molduras de ouro. Um tapete vermelho estendia-se de onde estava parado até onde sua vista era capaz de ver e mais além. Uma mulher com olhos belos, cabelo loiro e duas asas de pardal branco nascendo em suas costas. Vestia uma túnica branca que parecia brilhar, como as estrelas em um céu noturno. O piloto sorria, enquanto ela o ajudava a vestir-se; depois, apontou para um pedaço de papel que tinha em mãos. Depois do campo “profissão” estava escrito: entregador; depois de “lugar”, Roma. Mas, no topo de tudo, o nome que ele usaria dali em diante em sua nova vida eterna: Jeremy Keeler.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD