Capítulo 03: Nós

2610 Words
Nova York, Paraíso O dia seguinte foi gasto apenas com treinamento. Lana e eu trocamos golpes, e eu tomei menos choque. Talvez o alívio de ter colocado para fora tudo o que tinha acontecido com Elena me deixou mais concentrado; eu era capaz de ver com mais clareza onde ela atacaria, quando usaria seu poder ou quando o soco era convencional. Contudo, eu ainda estava longe de vencê-la. Em um desses momentos em que eu bati a cara na lona do ringue, eu vi meu avô parado em uma das esquinas, observando tudo. Assim que ele percebeu que eu o olhava, ele sorriu como se achasse graça de minhas derrotas vergonhosas. Eu ainda não tinha acostumado ver meu avô com quarenta anos, considerando que as poucas lembranças que tenho dele, ele era um velho de cabelo branco e costas encurvadas. No entanto, ali estava ele, com uma pequena linha de expressão na testa e uma ruga quase invisível ao lado dos olhos. Ele também estava em boa forma, com os músculos bem definidos e maiores do que seriam em seu estado natural. – Lana, Taavi quer falar com você. – Ele falou para minha ex-namorada. Lana deixou o ringue, pegou uma toalha para secar o suor e uma garrafa de água. Foi estranho vê-la tendo reações de um corpo físico já que ela era uma alma. Entretanto, quando eu cheguei ao Paraíso, os Heartless não apenas recuperaram suas memórias, como, aos poucos, recuperaram reações de um corpo mortal. Batimentos cardíacos, suor e cansaço. Isso aconteceu por causa de minha conexão com eles. Mesmo eu não tendo os poderes de um, eu ainda estava conectados a eles pelo sangue. – Você está ficando bom em enfrentar um Heartless de Eletricidade. – Ele, para minha surpresa, entrou no ringue. – Mas como se sai contra um de Água? – Vô Ben tinha um sorriso esperto no rosto. Antes que eu pudesse me dar conta de que iria lutar com ele, um jorro de água veio pela minha lateral e me atingiu no ombro, me jogando de lado no chão. Levantei, um pouco irritado e com dor. Avencei contra ele antes que pudesse me atacar outra vez, no entanto, eu não consegui alcançá-lo. Um cinturão de água me envolveu e me jogou do outro lado. Durante as horas seguintes, eu descobri que era muito difícil chegar perto de um Heartless de Água. Ele tinha um estilo rápido e imprevisível, mas ao mesmo tempo fluído, como um verdadeiro rio. Centenas de vezes me senti frustrado por se quer acetar um soco nele, mas seu estilo era um de longa distância. Eu parei, ofegando. Aquela não era uma luta que eu venceria pela força bruta, mas sim com inteligência. Claro que tendo um estilo de longa distância, sua fraqueza era combate a curta distância, mas a questão era atingi-lo. A fluidez de seus movimentos era sincronizada com a água que ele manipulava. Se eu pudesse avaliar os padrões e descobrir onde atacaria em seguida, eu seria capaz de chegar até ele. Infelizmente, como uma pessoa que não tinha muita experiência própria em combatente eu não sabia detectar esses padrões – exceto se eu estivesse com minha espada encantada, o que não era caso. O segredo também estaria em movimentar-me imprevisivelmente, usar os arredores, usar a elasticidade das cordas do ringue, como faziam aqueles lutadores de luta livre. Obviamente, eu falhei miseravelmente. Meu avô morreu velho, em outras palavras, ele tinha anos e anos de experiência lutando contra anjos Caídos. Minhas chances eram menores ainda considerando que eu nunca tinha lutado contra alguém usando água como arma. Por fim, joguei a toalha. Estava cansado de apanhar. Meu avô me levou para os andares superiores – o que significava que estávamos mais perto do solo, já que a base dos Heartless ficava no subsolo –, até um salão imenso onde eles faziam as refeições. Depois de pegarmos nossas comidas, sentamos um pouco isolados dos outros. Desde que meu treinamento começara eu vinha tentando contar para meu avô sobre meu encontro com Marcella em Godheim. Era uma situação extremamente complicada, considerando que eu teria que contar sobre a existência de Týr, o que ela me pediu para não fazer. Quanto menos pessoas soubessem, melhor. Entretanto, ele tinha de saber. Era o certo. – Vô. – Comecei. – Tem algo que preciso te contar, mas antes, vou te pedir para não perguntar sobre os detalhes. – Ele ficou um pouco desconfiado, mas por fim, concordou. – Marcella não está morta. – Ah – eu não sabia como uma única palavra monossilábica pudesse conter tanta tristeza e dor; ao ouvir o nome dela, ele deve ter se lembrado da tempestade e do barco, quando ela desaparecera; e desde aquele momento, até sua morte dois anos depois, ele deve ter se culpado – eu imaginei quando ela não apareceu aqui quando todos nós recuperamos a memória. – Mas ela também não está na Terra. – Acrescentei; meu avô foi genuinamente pego de surpresa. – Eu ouvi falar sobre a existência de outros mundos, mas nunca achei plausível. Muito menos fui a um deles ou sei seus nomes. – O avô retrucou. – Bem, ela está em lugar chamado Godheim. Não me pergunte como eu sei. – Ele apenas confirmou com a cabeça; ele parecia um pouco mais feliz, mas ainda assim, levaria um tempo para processar; mas o tempo não era aquele, pois antes que o silêncio pudesse tomar conta, ele falou: – Leo, o que você sabe sobre essa guerra pela qual estamos passando? E sobre os Filhos do Abismo? Então contei tudo que eu sabia sobre eles, o que Hayley havia me contado em Londres e o que Týr informara durante nossos meses viajando juntos. Por alguma razão, tive a impressão de que o propósito daquela pergunta era militar, como se os Heartless fossem entrar na guerra. – Quantos de vocês ainda estão vivos? – Eu perguntei; eles eram numerosos aqui no Paraíso, mas eu sabia que ali havia Heartless de todas as gerações, até o primeiro, no caso, Taavi. – Bem, pelos dados que conseguimos dos mais recentes chegados ao Reino dos Mortos, apenas um: seu pai. Isto é, sem contar Marcella, é claro. – Mas... O que aconteceu? – De todas as respostas que eu esperava, essa não era uma delas. – Apesar de sermos quase duzentos mil aqui no Paraíso – ele acrescentou ao ver minha cara de surpresa – e não, todos eles não cabem nesse complexo, mas existem vários de nossos esconderijos espalhados na Terra que foram criados com o passar dos séculos e, como o Paraíso é um reflexo da Terra, eles existem aqui também. – Ele tomou um gole de seu suco para molhar a garganta. – Enfim, somos muitos aqui, mas quando vivos, não passamos de cento e cinquenta convivendo simultaneamente. – Ok. Mas isso não explica por que apenas meu pai restou. – Perguntei, interrompendo-o. – Bem, o mais recente chegou aqui em dezembro de 2008. E nós datamos os mais recentes até agosto deste mesmo ano, incluindo as crianças. Foi exatamente quando a Guerra de Lúcifer terminou. – Eu nunca tinha ouvido falar de tal evento, mas preferi não perguntar, pois o problema não era esse. – Aparentemente nós fomos caçados por uma mulher, ou pelo menos foi o que suas vítimas relataram. O motivo, porém, não fomos capazes de saber. – Foi assim que Lana morreu também? Assassinada? – Não. Lana morreu por que seu treinamento não estava completo e não tinha controle total de seus poderes. – Está dizendo que ela morreu por causa de um curto-circuito ou algo assim? – Eu estranhei; se ela não tinha morrido como os outros, então, como? – Lógico que não. O que a matou era muito mais sombrio. – Ele fez mistério; quando eu era criança, ele costumava contar muitas histórias quando eu o visitava, e sempre ele parava nos melhores momentos ou usava palavras indiretas apenas para atiçar minha curiosidade, exatamente como ele estava fazendo naquele momento. – Mas, se ela não te contou, eu não posso. Cada um deve contar sua própria história de morte, e é por isso também que ela não me contou a sua. Nós conversamos mais um tempo, até que ele decidiu me levar de volta à sala de treinamento. Dessa vez, porém, o ringue não estava a nossa disposição, e por isso ele resolveu me dar uma lições teóricas – em outras palavras, ele me mostrava alguns movimentos característicos de seu estilo, mas que ao mesmo tempo melhorariam o que eu já sabia, que era o estilo de Lana. Ele notou que, apesar da concentração de mais cedo, agora eu estava um pouco distraído e com os movimentos mais duros. Talvez fosse o cansaço, mas eu sabia, no fundo, que tinha muito mais a ver com algo psicológico. Conversar sobre a morte de Lana trouxe muitas lembranças e dúvidas na minha cabeça, principalmente a respeito da minha própria morte e, como os acontecimentos de quase três meses antes, mudava tudo. Cerca de trinta minutos de treinamento passaram quando um dos Heartless veio na nossa direção. Ele informou que Taavi queria falar comigo. Estranhei; eu estava ali há bastante tempo, mas nunca o misterioso Pai de Todos os Heartless quisera falar comigo. Eu tinha a impressão de que ele não gostava da presença de um humano normal em seu domínio. Meu avô me guiou, surpreendentemente, para mais fundo no subsolo. Aparentemente, abaixo da sala de treinamento, havia outros sete níveis e, no último, estava à sala de reunião. Os Heartless não tinham uma realeza ou algo assim, entretanto, eles tinham uma liderança, apesar de não haver título. Taavi era o líder, mas havia sob ele um conselho de cinco outros, um de cada tipo; esses, também, eram os mais sábios e habilidosos dos Heartless, independente se eram os mais antigos ou não. A sala de reunião era um lugar amplo, feito de pedra, mas com uma única mesa de madeira do outro lado de onde entramos. Havia seis cadeiras, e elas estavam ocupadas pelos membros do conselho e Taavi; todas as cadeiras estavam do lado de lá, ou seja, todos eles olhavam diretamente para mim. Taavi era impressionante. Ele era um pouco diferente dos que eu tinha visto até então. Sua pele era morena, como se tivesse queimado de sol, mas ao mesmo tempo emitia um brilho avermelhado. Ele era completamente careca e seus olhos de um tom de amarelo e azul misturados; uma cor que nunca tinha visto antes, e provavelmente nunca mais veria. – Leonard Ross. – Apenas meu nome na voz estrondosa como uma tempestade e grave como um sino me causou medo. – O primeiro humano a caminhar entre os nosso. Muitos de nossos segredos foram confiados a você, mesmo que, sem você, nós não o saberíamos. Nós decidimos chamá-lo aqui para interrogá-lo; queremos saber tudo que você sabe sobre os inimigos do Paraíso. – Repeti o que tinha contado para meu avô. – Espere alguns minutos do lado de fora, por favor. Acompanhado de meu avô, nós esperamos. Eu sabia que eles discutiam a entrada dos Heartless na Guerra Celestial, e a forma como ele colocou: inimigos do Paraíso, me dizia que eles, sim, entrariam. Afinal, eles foram criados milhares de anos atrás para enfrentar e manter anjos Caídos na linha, e estes também eram “inimigos do Paraíso”. A voz estrondosa de Taavi ordenou que entrássemos. – Nós chegamos a uma decisão, mas antes de informá-la, temos algo para presentear-te. – Sem tirar os olhos de mim, como se desconfiasse, ele chamou: – Lana! Ela entrou por uma porta que eu não tinha notado atrás do conselho. Porém, ela usava algo que atacou meu lado nerd quase tanto quanto meu casaco, quando o vi pela primeira vez ainda em Tel-Aviv. Era algo parecido com um sobretudo, porém ele era diferente, pois não parecia ser feito de pano. Começando pelo b***o, ele tinha detalhes em um azul vibrante nos prendedores, que estavam fechados, no contorno, indo do pescoço até a cintura; havia, na parte cinza, desenhos aleatórios. Uma faixa também azul amarrava-se na cintura e, no centro dela, o brasão com os símbolos dos Heartless: um coração com desenhos tribais. Na junção dos ombros com o tronco, um arco feito de metal que introduzia uma espécie de armadura para os braços de um metal também cinzento. A touca que escondia os olhos dela eram da mesma cor, com desenhos aleatórios e a borda azul. Sem dúvida era a roupa de combate mais linda que eu já vi. – Então, você gosta? – Taavi disse, com um sorriso. – Um anjo tem nos ajudado a construir essa armadura. Com alguns feitiços, eles transformaram o metal resistente aos Filhos do Abismo, mas ainda não conseguimos descobrir uma forma deixar o Fogo Celestial utilizável conosco. – Espera – ousei interromper – se os anjos estão ajudando, isso significa que eles já contam com vocês para batalha? – Sim. – Taavi respondeu. – Não era isso que estávamos discutindo, como você aparentemente pensou. Nós estávamos discutindo outra coisa. Siga a moça, que você ganhará uma exatamente como essa. Lana me levou para uma sala, onde outras roupas como a dela estavam penduradas. Haviam cinco cores diferentes: azul, como a de Lana; azul claro, que eu imaginei ir para os de Água; marrom, para os de Terra; vermelho, para os de Fogo; e verde, que devia para ser os de Ar, já que não se tem como fazer de cor transparente. Entretanto, a que Lana trouxe para mim era de uma sexta cor: vermelho escuro, quase vinho. Outra Heartless me ajudou a vestir a armadura por cima das roupas, o que foi um pouco desconfortante, já que eu estava suado. Independente, quando eu me vi vestindo aquela armadura, eu me senti ainda mais épico do que com meu casaco; eu sorri. – Nós estamos correndo com a produção dessas armaduras. – Lana falou; sua voz doce uma melodia nos ouvidos. – Além daqui, nossas outras bases também trabalham nisso com ajuda de outros anjos. Já temos mais da metade da quantidade de Heartless que temos aqui. – Isso é quanto? – Dez mil armaduras. – Ela respondeu; um número surpreendente. De volta à sala de reunião, eu encontrei-os discutindo o que parecia ser estratégias de combate, mesmo que eles ainda precisassem de mais dez mil armaduras para efetivamente poderem lutar. Quando meu avô me viu, ele abriu o maior sorriso de orgulho que eu já tinha recebido na vida. Mas quando os outros olharam, eu senti vontade de me esconder de volta no vestiário. – Combina com você. – Uma das mulheres, de duas, que faziam parte do conselho falou. – De fato, combina. Pode se aproximar e ficar diante de nós, por favor. – Taavi pediu, entretanto, eu sabia que não era nem um pouco sábio negar um pedido ao líder de mais de duzentos mil homens com superpoderes. – Leonard Ross, você pode não possuir nossos poderes ou ter nosso treinamento – eu pensei retrucar, afinal, eu estava treinando ali nos últimos dois meses e pouco, mas o bom senso falou mais alto –, entretanto, você carrega nosso símbolo nos últimos cinco meses e, sem dúvida, não causou vergonha a ele. Seus feitos na guerra chegaram aos nossos ouvidos. – Ele olhou para Lana. – Portanto, eu, Taavi Meir, Pai de Todos os Heartless, concedo a você a honra de colocar o seu nome entre os nossos. Ele fez uma pausa, ao contrário do meu coração, que batia acelerado. – Você agora é um de nós.
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