Nova York, Paraíso
Apesar de ser feita de um metal desconhecido por mim, à armadura que Lana e eu usávamos era extremamente leve e permitia uma mobilidade inesperada. Eu me movimentava quase como se estivesse usando as roupas de treino – camiseta e calça de moletom. Lana, também, estava conseguindo lutar, apesar de que seus golpes estavam mais duros e ela não usava seus poderes. Talvez, por causa do metal, a eletricidade ficava mais difícil de controlar.
Trocamos socos e chutes; pulávamos de um lado para o outro, a armadura batendo e chacoalhando ao nosso arredor. Era um pouco estranho o barulho, como se eu estivesse com milhares de moedas nos bolsos e elas chocassem-se umas com as outras enquanto caminhava. Finalmente, depois e quase duas horas de treinamento, nós paramos para descansar.
O esconderijo dos Heartless ficava em Staten Island, praticamente no centro dela. Para chegar até o subsolo, onde estávamos, eles precisavam entrar em uma casa nos subúrbios e descer um elevador que ficava escondido atrás de uma parede no porão. E o que mais precisava naquele momento, era ver a luz, tomar um vento e sair daquele lugar tão fundo no subsolo.
Eu tirei a armadura e a deixei sobre minha cama em meu alojamento, para que não ficasse com cheiro de suor. Então, fui para o elevador, que subiu até o porão. Uma vez que estava do lado de fora, eu sentei no gramado e observei a movimentação na rua. Ainda estávamos na hora do almoço, então não havia muitas pessoas ali, pois elas deviam estar trabalhando em seus empregos dos sonhos em algum lugar por aí.
Contudo, vi algumas almas que estavam na forma de crianças brincando em seus quintais. Era impossível deduzir se elas eram almas Nascidas no Paraíso – ou seja, crianças ou bebês que morreram na Terra antes de saberem o que é o bem e o m*l – ou se eram almas que tinham morrido há muito tempo, mas decidiram ficar naquela forma para se divertirem. De um jeito ou de outro, era legal assistir; fazia lembrar-me de casa.
Meus pensamentos flutuavam como se estivessem no oceano, indo de um lado para o outro. Pensei em Lana e nossos dias juntos, pensei em Elena e no Colégio, pensei na minha morte e nas pessoas que tinha conhecido desde então: Týr, Thais, George, Abraão, Sara, as pessoas em Roma, Solomon e sua tripulação. E agora, todos os Heartless que me acolheram e me aceitaram como um deles.
Pensei nas batalhas e nos Filhos do Abismo, e como eles tinham mudado o Paraíso, trazido dor e destruição à perfeição que era aquele lugar, mesmo que eu tenha culpa parcial em alguma dessas mudanças. Pensei na Morte e em como ela vinha planejando aquela destruição desde tempos imemoráveis. Odiei-o com toda minha força, mas logo eu já não odiava mais; algo naquele mundo não deixava que as emoções ruins tomassem conta de você por muito tempo.
Tudo isso resignava na decisão que eu tinha de fazer. Eu havia feito um acordo com a Morte e troquei minha vida pela a de Elena. No começo, eu sabia que estava fazendo o que a Morte mandava para tentar descobrir uma forma de voltar para ela, isso, até eu imaginar que ela estava seguindo em frente com a vida e que ver um namorado morto de volta à vida não seria a melhor coisa para seu psicológico.
Aos poucos, parei de pensar nisso e na promessa, mas ainda continuei seguindo com minha jornada e cumprir meu acordo com a Morte, pois, de fato, eu tinha trocado minha vida pela dela, independentemente do que ela escolhesse fazer. Tudo mudou quando a reencontrei quase três meses antes. Ela não apenas havia feito o possível para me ter de volta, como havia se transformado; caminhado em um caminho verdadeiramente sombrio de magia e sangue, e ela pagou por isso com sua própria vida, ou melhor, ela não estava morta, estava em um estado muito pior: em coma, incapaz de ver o mundo ao seu redor ou seguir em frente para o Paraíso.
Ali, no lugar mais improvável do mundo, eu tive uma ideia que não tinha me ocorrido antes: o Reino dos Sonhos. Sim, Elena estava em coma, ou seja, ela dormia. Talvez eu pudesse ser capaz de vê-la uma última vez; conversar com ela, o que com certeza ajudaria em minha decisão de: continuar lutando pela Morte, mesmo sem saber quais são as intenções dela, ou desistir, já que o outro lado da barganha – a vida de Elena – não mais existia.
Fechei os olhos e me concentrei, sentando como se fosse um Jedi na sala de meditação. Eu tinha uma conexão especial com Týr, nós somos Druga Dushi. Através dessa conexão, eu poderia falar com ela usando apenas a mente – mesmo que nos últimos meses nós não tivéssemos nos visto com muita frequencia. Um ligamento Druga Dushi não se desfaz com a distância nem com o tempo; é uma conexão para vida – ou morte – inteira.
Quem é morto sempre aparece!, ouvi sua voz, sempre rabugenta e bem-vinda. Como está, Leo?, Týr não costumava chamar-me por um apelido que não fosse “animal”, mas ela sabia o preço que o reencontro com Elena custou em mim; ela sabia melhor do que ninguém.
Estou melhorando, falei a verdade. Ela saberia se estivesse mentindo. Você acha que é possível eu encontrar Elena no Reino dos Sonhos? Afinal, ela está dormindo.
Não é possível, Leo. Você sabe muito bem disso. Você sabia desde o momento em que eles tiraram a Ọkan que ela não estava no Reino dos Sonhos. Ela tinha razão, eu sabia muito bem disso; mas eu queria ter esperança de que poderia salvá-la.
Ela... Ela está... Como em todas às vezes anteriores em que disse aquelas palavras, fosse para mim mesmo ou para qualquer pessoa, eu chorei como uma criança que cai de uma bicicleta. Ela está além da salvação, não está?
Týr hesitou, e eu pude sentir a hesitação nela. Ela costumava ser indelicada com muitas das emoções humanas alheias, mas quando as emoções vinham de mim, ela não sabia como lidar. Sim, ela respondeu.
Eu sentir um par de braços me abraçando por trás, em seguida, todo o peso de Lana sobre minhas costas. Se fosse uma situação comum, com certeza eu ficaria irritado e feliz ao mesmo tempo, mas dadas as circunstâncias, eu fiquei agradecido de ter ela ali. Ficamos muitos minutos em silêncio, naquela posição, atraindo a atenção de quem passava, mas que rapidamente desviavam o olhar de nós.
– Filho – era a voz serena de meu avô, a mesma que ele usou durante os dois anos desde o desaparecimento de Marcella, e eu sabia que era uma voz que carregava dor, apesar de, naquele momento, a dor estava em mim – posso ver a luta que acontece dentro de você. Posso ver suas dúvidas, posso ver suas razões para querer desistir. Mas antes que tome uma decisão, diga: por que você luta? – Ele olhou de cima para mim, parado ao meu lado.
Era uma pergunta estranha, considerando que meu avô não conhecia em detalhes tudo que eu tinha passado até ali. Lana saiu de cima de mim e sentou ao meu lado. Fiquei pensativo por um momento, sem saber o que responder, então, perguntei:
– O que o senhor quer dizer?
– Eu te vi lutar, vi seus movimentos, cada soco que trocou com Lana. Entretanto, você atingiu um nível do qual não sai mais. Faz duas semanas que você não evolui, mesmo com as dicas que lhe dei. – Apesar de suas palavras, eu me considerava ainda evoluindo, já que Lana tinha começado a usar seus poderes contra mim; ou será que ela passou a usá-los numa tentativa de me fazer avançar?, eu não tinha ideia. – Nós, os Heartless, lutávamos por uma causa em que acreditávamos: manter os inimigos do Paraíso sob controle. E agora, essa mesma razão nos fez decidir entrar na guerra. Você é um de nós, mas não serve nossa causa. Então, lhe pergunto: por que você luta?
– Eu não sei. – Foi minha única resposta.
Týr surgiu diante de mim em uma explosão de luz. Lana e meu avô não se deram conta do ocorrido, afinal, eles não podiam vê-la. Eu notei, com dificuldade, que seu pequeno rosto tinha um sorriso terno, algo que eu nunca tinha visto até então. Lembrei-me de quando a Morte tirou o fio dourado que nos unia, dando a ela a oportunidade de voltar para Godheim e sair de uma guerra a qual não pertencia, mas ela ficou; e suas razões? Apenas uma: eu. Týr escolheu lutar em uma guerra por minha causa, um ato completamente altruísta.
– Responda essa pergunta, e então...
– No começo – interrompi – eu lutava por ela, mesmo que às vezes, eu duvidava disso. – Minha voz já não estava chorosa. – Agora, não há nada que eu possa fazer por ela, mas eu posso fazer pelas pessoas que conheci aqui, pelos amigos que encontrei no caminho. Eu não sou um herói – eu, por alguma razão, encarava Týr; talvez por ela ter sido minha primeira amiga desde minha morte ou talvez por ela ter ficado ao meu lado quando pôde ir embora e ela, acima de Lana ou de meu avô ou de qualquer outro, merecia ouvir essas palavras – nem quero ser; eu não tenho magia nem os poderes de um Heartless, mas eu sou a pessoa que está mais próxima de descobrir os planos da Morte, e eu sei que “conseguir a Chave do Reino dos Mortos” não é seu objetivo final. – Meus três ouvintes sorriam. – Eu vou lutar pelos meus amigos que estão aqui.
Eu me levantei num pulo, o que assustou Lana e meu avô. A tristeza de perder Elena ainda estava em mim, como a tristeza de me perder esteve nela durante os meses que ela buscou minha ressurreição, mas, ao contrário dela, eu não podia deixar que a tristeza consumisse minha alma. Eu tinha uma missão a cumprir.
– Lana, vamos lutar. – Eu disse, determinado como nunca antes; com a mente, pedi para Týr não interferir de maneira alguma.
– Aqui? – Ela olhou em volta.
– Sim! Mas se quiser, podemos ir para o quintal dos fundos.
Ela concordou e fomos até lá, seguidos de meu avô e Týr. Lana assumiu sua posição de luta imediatamente, eu me posicionei diante dela e assumi uma também, mas diferente da dela. Coloquei as duas mãos a frente do corpo, a esquerda um pouco mais a frente do que a direita. Então, ela atacou.
Defendi-me com movimentos muito mais suaves e rápidos do que antes, bloqueando e evitando os raios com habilidade – ela estava sem a armadura agora, o que facilitava o manuseio de seus poderes. Ela até mesmo ficou surpresa com a mudança de meus socos e chutes; então, finalmente, depois de longos minutos eu finalmente consegui tirá-la do chão. Naquele momento, eu sabia que não podia usar seus poderes; perder sua conexão com o solo era sua fraqueza. Então, com um chute, ela caiu de costas; eu venci.
Mas não acabou aí; imediatamente, uma rajada de água veio na minha direção. Com um giro ligeiro para o lado, eu desviei, mas outra veio em seguida. Uma lição importante é que todos os Heartless de água sempre carregavam um cantil consigo.
Aos poucos, sempre desviando e com os olhos de Týr e Lana em cima de mim, eu consegui avançar até meu avô e acertar um golpe nele, mas, em seguida, ele lançou outra rajada de água que me jogou longe outra vez. Eu podia sentir que meu avô não estava liberando todo seu poder e experiência sobre mim, mas eu não me importei; aquele único golpe já era para mim uma vitória.
Lana e meu avô fizeram um único movimento positivo com a cabeça, como se quisessem indicar que eu estava pronto para retomar minha jornada. Desci, acompanhado de Týr, até meu alojamento, onde tomei banho. Enquanto eu me lavava, Týr, do lado de fora do box, contava as novidades sobre o que acontecia com meus companheiros em Nova York.
Thais havia encontrado uma pista sobre o paradeiro de Jared, enquanto Desmond e sua recém-encontrada Ally passavam bastante tempo juntos, se conhecendo outra vez, afinal, ela não tinha as memórias – e Desmond sabia que os pedaços de Fruto Proibido eram para os quatro escolhidos da Morte restantes.
– O que Thais descobriu sobre Jared? – Perguntei, enquanto me vestia.
– Ela não falou. Quando ela chegou a casa, ontem à noite, ela não disse nem boa-noite. Simplesmente dormiu, e quando você falou comigo hoje, ela ainda estava dormindo, incluindo quando saí.
Estranhei, Thais não costumava guardar segredos, ou talvez, estivesse apenas cansada de andar por ai procurando por uma alma que nunca tínhamos visto antes. Independente disso, eu saberia assim que voltasse para a casa que tínhamos escolhido.
Por cima da roupa, eu coloquei a armadura. Týr ficou me olhando como se eu fosse algum tipo estranho de humano, mas nada falou até eu lhe perguntar.
– Achei legal, mas tem necessidade?
– Bem, os Heartless dizem que protegem dos Filhos do Abismo. – Ela concordou; coloquei a mão sobre meu peito, mais especificamente, sobre a armadura; então, acrescentei: – Driuk.
A armadura tornou-se ** em volta de mim, circulou meu corpo até chegar às marcas que eu tinha no meu braço desde que me encontrei com a Morte pela segunda vez. O ** tornou-se símbolos como os que eu já tinha, entrando em harmonia com os que já estavam ali. Sorri. Seria melhor se não ficasse andando para lá e para com aquela armadura.
Týr pousou em meu ombro e nós saímos do quarto. Eu passei pela maioria das salas do esconderijo; encontrei alguns dos Heartless com quem conversei durante aqueles meses e me despedi. Taavi cruzou comigo quando eu já estava no nível mais alto antes da casa sobre a superfície.
– Boa sorte. – Ele disse, dando tapinhas nos meus ombros; então ele foi embora e eu segui para casa.
Meu avô e Lana estavam ali. Ela trajava sua armadura com detalhes azuis. Ben me chamou, e eu fiquei diante dele. Ele pousou ambas as mãos em meus ombros, o que obrigou Týr a voar acima da minha cabeça. Olhando-me no fundo dos olhos, ele falou:
– Estou orgulho de você. – Ele disse. – Os anjos, os Heartless e as almas têm sorte de ter você lutando ao nosso lado. – Nos abraçamos por longos minutos; era uma sensação reconfortante ter meu avô de volta, depois de perdê-lo durante tanto tempo; eu esperava que, após toda aquela confusão, eu poderia curtir um pouco mais minha morte com ele, enquanto esperávamos o resto de nossa família chegar por aqui; ele entrou na casa, e voltou para companhia de seus Heartless.
– Você vai para guerra ou algo assim? – Perguntei para Lana, que abriu um sorriso que eu não via há três anos.
– Depende.
– Do que?
– Você vai para guerra? – Foi minha vez de sorrir.
– Provavelmente.
– Então, eu também vou.
Nós nos abraçamos. Sentir o corpo dela junto ao meu sem dúvida foi reconfortante, e eu torci para que a armadura cobrisse o som do meu coração batendo rápido como um carro de Fórmula 1. Uma vez que estávamos na rua, eu estiquei minha mão e, apenas por pensar, fiz minha moto surgir em segundos. Lana ficou muito surpresa.
– Então é pra isso que serve essas tatuagens. – Ela comentou, algo que não tinha feito desde que cheguei ao esconderijo. – Isso é magia? Onde conseguiu? – Eu abri um sorriso zombeteiro.
– Você não sabe de nada, Lana Ruggieri. – Retruquei, lembrando-me da frase de um livro que li quando ainda estava vivo.