Joaquim
É inevitável não pensar nos meus irmãos quando vejo a irmãzinha de Beatriz machucada nessa cama de hospital. A pequena dorme alheia a partida dolorosa de seu pai e de sua mãe. Vejo quando Beatriz luta contra as lágrimas enquanto acaricia os cabelos de Raquel e tento aliviar o clima com comentários leves. Até consigo que ela esboce um sorriso mediano, mas meus esforços vão pelo ralo quando o médico entra no quarto.
_ Você deve ser a irmã mais velha da Raquel. – Diz num tom simpático estendendo a mão para um aperto e ela aceita. – E você também é parente?
_ Sim. – Respondo antes que Beatriz diga alguma coisa. – Sou o namorado da Beatriz. – Repito a pequena mentira que contei ao médico que tratava do senhor Nogueira para conseguir a acompanhar até a UTI.
Sei que se disser que sou apenas um amigo eles vão me mandar sair e não quero deixar Beatriz sozinha aqui para ouvir o que o médico vai dizer.
_ Como a minha irmã está, doutor? – Pergunta um tanto afobada.
_ De modo geral está evoluindo bem. – Ao ouvir isso percebo o corpo de Beatriz relaxar um pouco. – Ela fez um corte na parte superior da testa onde precisou levar quatro pontos e quebrou a perna direita. Mas não será necessário fazer cirurgia. Acredito que dentro de três semanas, no máximo, ela já vai poder remover o gesso.
_ Isso é bom. – Comento e ele assente com um maneio de cabeça.
_ Mas por que ela está dormindo? – Questiona Beatriz olhando de relance para a irmã antes de voltar a sua atenção para o médico.
_ Porque administramos remédios para dor e eles tendem a dar sono. – Explica o médico.
_ Tem alguma ideia de quando vou poder levar ela daqui?
_ Vamos a manter em observação essa noite e acredito que se tudo correr bem amanhã mesmo ela recebe alta. – Diz ao mesmo tempo que fisga o celular do bolso. – Preciso ir. Mas qualquer coisa que precisarem é só chamar a enfermeira. – Fala começando a caminhar em direção a porta.
Ele deixa o quarto ao mesmo tempo que a mãe de Beatriz entra. Ela se demora alguns segundos observando a criança acamada antes de voltar sua atenção para a filha perguntando sobre o estado da pequena e Beatriz repete tudo o que acabamos de ouvir do médico.
_ Bom. Agora que já sabe que a sua irmã está bem nós podemos sair desse hospital. Você sabe como eu detesto esses lugares. – Fala guardando o celular de volta em sua bolsa. – A família da mãe dela já deve estar chegando e tenho certeza de que vão cuidar dela.
_ Não vou a lugar algum, mãe. – Diz em tom firme.
_ Você já é muito grandinha para fazer birra, Beatriz. – Fala semicerrando os olhos em algum tipo de advertência silenciosa.
_ Não estou fazendo birra, mãe. – Rebate sem se deixar intimidar. – A Raquel é a minha irmã e prometi ao meu pai que cuidaria dela. E é isso que vou fazer.
_ O quer dizer com cuidar da outra filha do seu pai? – Suas palavras deixam claro que não concorda com isso.
_ Quero dizer que vou assumir a guarda da minha irmã e que a partir de hoje ela estará sob minha responsabilidade. – Beatriz fala com o queixo erguido.
_ Mas como vai fazer com o seu trabalho e com a sua vida? – Argumenta tentando fazer a filha desistir de sua decisão. – Você ainda é muito jovem. Não deveria assumir uma responsabilidade como essa.
_ Vou adaptar tudo o que for preciso para cuidar dela.
_ Isso não é justo.
_ Realmente não é justo. – Beatriz fala entredentes. – O justo seria ela ter o pai e a mãe vivos para cuidar dela. – Seus olhos se enchem de lágrimas. – Mas ela não os tem mais. Sou a única família que restou para ela e você sabe disso. E não vou me afastar dela só porque você ainda guarda ressentimentos de uma separação que aconteceu a mais de dez anos. – Desabafa com a voz um pouco mais elevada.
Vejo como o seu peito sobe e desce de forma ofegante. Suas palavras deixam sua mãe em choque. Acho que as duas nunca tiveram uma conversa como essa e decido intervir antes que falem coisas pelas quais possam se arrepender.
_ Acho melhor vocês conversarem uma outra hora quando as duas estiverem mais calmas. – Digo ficando entre as duas.
_ Você tem razão, Joaquim. Quem sabe a minha filha não pensa melhor com a cabeça fria. – Alfineta antes de sair do quarto.
_ Desculpa pela cena. – Beatriz pede ao apoiar as mãos na cintura.
_ Tudo bem. – Garanto com um meio sorriso. – Desentendimentos acontecem em todas as famílias. Principalmente quando as emoções estão na flor da pele.
_ Não sei como ela pode pensar que eu deixaria minha irmã sozinha aqui. – Fala deixando os ombros um pouco curvados como se estivesse carregando um enorme peso.
_ Na cabeça dela, ela estava apenas pensando no que era melhor para você. – Argumento pousando uma mão em seu braço.
_ Um pensamento bastante egoísta para o momento. – Pontua com certa raiva e prefiro não tocar mais no assunto.
_ Papai. – Uma vozinha doce nos faz correr para perto da cama.
_ Oi, minha lindinha. – Beatriz fala acariciando os cabelinhos dourados da irmã.
_ Bibi! – Exclama ainda sonolenta. – Cadê o papai?
_ O papai virou uma estrelinha que brilha lá no céu. – Conta com a voz embargada tentando conter o choro sem muito sucesso.
_ Isso é quando a pessoa morre? – A pequena pergunta buscando os olhos da irmã. Beatriz apenas assente. – E a mamãe? – Pergunta com voz chorosa.
_ Ela também virou uma estrelinha, meu amor. – Diz tentando secar o rosto com as costas da mão, mas as lágrimas não cessam.
As duas choram abraçadas uma a outra. Não sei o quanto Raquel conseguiu entender da situação, mas posso ver o quanto dói. Decido deixar as duas sozinhas para que a pequena não se sinta coagida pela minha presença. Assim que saio do quarto sinto meu celular vibrar no bolso da calça. Atendo quando vejo o nome do meu pai estampado no visor.
_ Como estão as coisas por aí, filho? – Pergunta sem esconder a preocupação.
_ Nada boas, pai. – Digo demonstrando fraqueza pela primeira vez desde que tomei as rédeas da situação. – O pai da Beatriz faleceu assim que chegamos.
_ Nossa, filho! – Exclama e ouço a voz da minha mãe ao fundo perguntando o que houve. – O pai da Beatriz faleceu, ruivinha. – Repassa a informação para ela. – Como ela está agora?
_ Devastada. – Falo me escorando na parede ao lado da porta. – No carro também estavam a madrasta, que morreu no local, e a irmãzinha dela.
_ E como está a irmã dela?
_ Bem na medida do possível. – Suspiro com pesar. – Fora uma perna quebrada tudo está bem.
_ Ela já sabe da morte dos pais? – Questiona em tom soturno.
_ Beatriz acabou de contar. Foi h******l assistir de perto a dor das duas.
_ Imagino. Mas como fica a situação da criança? Com quem ela vai ficar a partir de agora?
_ Beatriz tomou para si a responsabilidade e como ela é a parente mais próxima acredito que não será um problema. – Exceto pela mãe dela, completo mentalmente.
_ Vocês tem alguma previsão de quando voltam?
_ Ainda não, pai. – Digo afastando da parede e endireitando a postura. – Sei que estou prestes a lançar minha linha de queijos e que a fazenda precisa de um de nós dois no comando, mas não penso em deixa-la aqui sozinha em meio a esse furacão de coisas que estão acontecendo na vida dela.
_ Não esperava de você. – Saber que ele não se opõe a minha decisão é um grande alívio. – Fique o tempo que achar necessário. Quanto a fazenda, não precisa se preocupar. Esse pode não ser o meu ramo e nem o da sua mãe, mas nós cuidaremos de tudo enquanto estiverem fora.
_ Obrigado, pai. Eu preciso desligar agora. Manda um beijo para a minha mãe e meus irmãos e fala que eu amo muito todos eles.
_ Pode deixar. E diga a Beatriz que toda a nossa família sente por sua perda.
_ Vou dizer.
_ Se cuida, filho.
Torno a guardar o celular no bolso e conto até dez antes de entrar no quarto. Já não tem barulho de choro. Me aproximo da cama onde Beatriz está deitada na ponta abraçada a irmã. Raquel voltou a dormir, mas ainda soluça um pouco devido ao choro excessivo. Beatriz acaricia o rosto da irmã enquanto vela seu sono.
Toco em seu braço para conseguir chamar sua atenção. Porém o que consigo é a assustar e a fazer se desequilibrar um pouco. Mas com um movimento rápido a seguro em meus braços evitando sua queda.
Com cuidado e lentamente a coloco no chão. Mas mantenho minhas mãos envoltas em sua cintura. As mãos dela espalmam em meu peito e seus olhos sobem de encontro ao meu. Eles estão carregados de tristeza e dor deixando claro a fragilidade de Beatriz no momento. Queria a beijar até essa tristeza ir embora, mas sei que esse não é o lugar e nem o momento para isso. Então, ao invés de a beijar, eu a abraço apertado.
Ela afunda seu rosto em meu peito, mas não chora. Acaricio suas costas em movimentos circulares e deposito um beijo no topo da sua cabeça antes de conduzi-la até o sofá bege que fica próximo a porta. E mesmo estando sentados a mantenho em meus braços.
_ Como foi? – Pergunto lhe fazendo cafuné.
_ h******l. – Conta com os olhos fixos na irmã. – Ela chorou até voltar a dormir por conta dos remédios para dor que colocaram no soro.
_ Sei que não parece agora. Mas garanto que vai ficar tudo bem.
_ Realmente não parece. – Suspira antes de erguer um pouco a cabeça para me olhar melhor. – Achei que tivesse ido embora.
_ Por que pensou isso?
_ Porque saiu do quarto e demorou a voltar.
_ Saí porque achei que vocês precisavam de um momento a sós. E quero deixar claro que não vou embora desse hospital sem você e a Raquel comigo. – Digo afastando uma mecha de cabelo que cai em seu rosto. – E demorei porque tive que atender uma ligação do meu pai. Ele mandou as condolências em nome de toda a família D’Angelo.
_ Eles são muitos gentis. – Comenta voltando a deitar em meio peito. – O que eu faço agora? – Pergunta novamente com os olhos focados na irmã.
_ Vai viver um dia de cada vez. – Falo também observando o sono da pequena. – Vai ser forte pela sua irmã, mas sem se privar da sua dor. Chorar faz parte do luto.
Ela assente com um maneio de cabeça e não demoro a perceber que chora de modo silencioso. Fico ali com ela em meus braços até a hora que Raquel acorda chorando e chamando pelo pai e Beatriz corre para junto dela.
Dessa vez não saio do quarto. Fico observando como as duas interagem. Em questão de minutos Beatriz consegue fazer o choro da irmã diminuir e é nessa hora que a pequena parece me notar e pergunta a irmã quem eu sou.
_ Esse é o Joaquim, Raquel.
_ Ele é seu namorado, Bibi? – Pergunta com um pequeno brilho sapeca no olhar deixando a irmã tão vermelha quanto um tomate.
_ Ainda não, Raquel. – Respondo quando Beatriz permanece acalada. – Por enquanto sou apenas um amigo da Bibi.
_ Ah! – Exclama com um maneio de cabeça como se compreendesse. – Você sabia que ela é minha irmã? – Pergunta e assinto com um meio sorriso. – Mas ela não é filha do meu papai e da minha mamãe. É só do meu papai com a mamãe dela. – Explica sorrindo, mas seu rosto logo volta a ganhar traços de tristeza. – Sabia que o meu papai e a minha mamãe morreu por causa do carro?
_ Sim, princesa. – Digo acariciando o seu rosto. – Eu soube e sinto muito.
_ A Bibi disse que ela que vai cuidar de mim agora.
_ Isso mesmo. – Bia reforça beijando a testa da irmã. – Eu vou cuidar de você e você vai cuidar de mim.
_ E eu cuido de vocês duas. – Digo alterando o olhar de uma para a outra.
Nossa conversa é interrompida pela chegada da enfermeira que vem trocar o soro. Raquel fica um pouco assustada por achar que vai precisar tomar alguma injeção, mas se acalma quando a moça garante que não fará isso.
Trazem o jantar para ela e o acompanhante assim que a enfermeira saí. É preciso fazer um pouco de chantagem e barganhar para fazer a menina comer tudo. Quando não resta mais nenhuma gota da sopa que trouxeram para ela Raquel está caindo de sono e não demora a dormir.
_ Agora é a sua vez de comer alguma coisa. – Digo entregando o prato com sopa e torradas para ela.
_ Pode comer se quiser. Não estou com nenhum pingo de fome.
_ Sei que deve estar difícil de engolir, mas você precisa se alimentar e se manter forte para a sua irmã.
_ Chantagem emocional é um golpe muito baixo. – Comenta enchendo a colher com sopa.
_ Mas sempre funciona. – Revido e recebo uma careta em resposta quando ela leva uma colherada de sopa a boca.
_ Você também precisa comer. – Fala tomando mais um pouco de sopa.
_ Vou até a cantina comer algo depois que você acabar.
Enquanto ela come procuro conversar sobre assuntos leves e diversos para a fazer esquecer um pouco todo o ocorrido. Depois que termina a sopa ela praticamente me obriga a ir comer algo e acato a sua vontade mesmo não tendo qualquer apetite.
Como apenas um sanduiche natural de franco com suco de laranja antes de voltar para o quarto. Beatriz está encerrando uma ligação quando chego. Pelos olhos vermelhos e rosto molhado sei que esteve chorando.
_ Quem era no telefone? – Pergunto temendo ser a sua mãe e que as duas houvessem discutido novamente.
_ Era a Dani. – Comenta atirando o celular no sofá e abraçando o próprio corpo.
_ Aquela que é sua amiga e não seu namorado? – Pergunto em tom brincalhão e consigo arrancar um sorriso dela.
_ Não sei de onde tirou essa história. – Diz sentando no sofá e ocupo o lugar ao seu lado.
_ Estava passando em frente ao seu quarto uma noite dessas e acabei ouvindo uma ligação das duas sem querer. – Pelo olhar que ela me lança fica claro que não acredita que foi sem querer. – Ouvi quando disse que a amava e que ela era insubstituível e como você é linda desse jeito deduzi que era o seu namorado. – Acaricio seu rosto com um certo receio de que se afaste, mas ela não faz isso. – Quando descobri que estava enganado me senti super feliz. Isso significava que eu tinha alguma chance. – Me aproximo um pouco mais ficando apenas a alguns centímetros de distância dos seus lábios. – Ainda tenho chance?
_ Isso não é certo. – Diz com a voz mais alta que um sussurro, mas não se afasta nenhum centímetro sequer. – Você é o meu chefe.
_ E eu já disse que não dou a mínima para isso. – Afirmo no mesmo tom eu ela e a vejo engolir em seco. – Eu estou apaixonado por você, Bia.
_ Apaixonado! – Exclama surpresa.
_ Sim. – Digo olhando em seus olhos. – Sei que o momento não pede declarações, mas não consigo mais esconder o que sinto. Estou apaixonado por você e sei que também sente algo por mim.
_ Isso é uma loucura. Faz apenas um mês que nos conhecemos.
_ O tempo para esse tipo de sentimento é relativo. – Digo encostando minha testa na sua. – Não existe muito cedo ou muito tarde. Existe o agora. E agora tudo o que eu quero é beijar você, mas não sei se você quer.
_ Quero. – Sussurra de forma quase inaudível. – Eu quero que me beije.
E não preciso de muito para encostar meus lábios nos seus. Não é um beijo quente como os primeiros. É algo mais lento e calmo. Mas que trás a sensação de estar de volta em casa. Encerramos o beijo com um selinho delicado. Queria continuar a trocar beijos com ela por horas a fio, mas hospital não é lugar para isso e me obrigo a me conter.
Uma enfermeira nova vem dar uma olhada em Raquel. Ela faz alguns exames de rotina com a garotinha ainda dormindo e anota tudo em seu relatório antes de nos deixar sozinhos novamente.
O final da noite e início da madrugada é agitado. Raquel acorda várias vezes com pesadelos que arrisco dizer que são lembranças do acidente. Bia se mantem o tempo todo ao lado dela para a tranquilizar. Mas ela continua agitada e só consegue voltar a dormir de forma pesada depois que toma a nova rodada de medicação às 03hrs20min da madrugada.
E só depois de ter certeza de que Raquel vai dormir o resto da madrugada é que Bia se permite deitar no pequeno sofá comigo e descansar um pouco e aos poucos o sono acaba a vencendo. Ainda fico um tempo velando seu sono antes de também adormecer com ela em meus braços.