Guga Narrando
Aqui no Vidigal, a gente cresce aprendendo rápido o que é a vida de verdade. Não tem meio termo, não tem escolha fácil. Cê aprende na marra, no corre, no sufoco. Meu nome é Gustavo, mas quem me conhece desde moleque chama de Guga. E eu sou cria daqui, da terra que me moldou e me fez ser quem sou.
Minha história começa como a de muita gente por aqui: pai sumido, mãe ralação pura pra botar comida na mesa. Quando eu era pivete, passava o dia jogando bola no campinho, descalço, rachando o pé na pedra, sem me importar com nada. Era eu e o Gabriel, que hoje é conhecido como Arcanjo. A gente é parceiro desde que se entende por gente.
— Ô, Guga! Vamos correr atrás da bola, p***a! — ele gritava, no meio de uma pelada na laje.
— Vai tomar no cu, Gabriel! Tu que tá dormindo no jogo! — eu respondia, zoando.
Ele sempre foi mais cabeça quente, mas isso já era o jeito dele. Enquanto eu tava de boa, fazendo graça, ele sempre tava pensando dois passos à frente, querendo ganhar até no par ou ímpar. E olha que a gente só tinha uns dez anos, mas já parecia que o mundo tava nas costas dele.
Crescer aqui nunca foi fácil. A escola era zoada, as oportunidades, quase nenhuma, e o tráfico tava ali, do nosso lado, como se fosse parte da paisagem. Quando fiz uns 13, já tava vendendo umas paradinhas na esquina pra ajudar minha mãe. Não era vida que eu sonhava, mas era a que tinha.
O Arcanjo foi quem primeiro me puxou pro bonde, mesmo sem querer. Ele tava nessa antes de mim, e quando viu que eu tava vacilando, vendendo no lugar errado, veio logo:
— Guga, cê tá maluco, c*****o? Isso aqui não é pra qualquer um, não. Quer trampar, fala comigo. Pelo menos vai tá no esquema certo.
De início, eu fiquei meio puto. Quem ele pensava que era pra mandar na minha vida? Mas a verdade é que ele tava certo. E, com o tempo, eu percebi que ter ele como amigo era a melhor coisa que podia ter acontecido.
A gente subiu junto no corre. Primeiro, só entregando parada, depois segurando os corres mais pesados. Hoje, eu sou gerente do morro. Não cheguei onde ele tá, mas também não quero, não. O trono é pesado demais, e eu prefiro viver um pouco mais leve, se é que dá pra chamar de leve.
— Guga, o Arcanjo tá chamando na base. Disse que quer falar contigo. — Um moleque veio me avisar.
— Beleza, já tô descendo.
Na base, era sempre aquela mesma energia tensa. Todo mundo de olho em tudo, atento a qualquer movimento estranho. E lá tava ele, o Arcanjo, sentado no canto, com aquele olhar de quem já viu coisa demais.
— E aí, irmão, que que manda? — perguntei, sentando na cadeira ao lado.
— Nada de mais, só queria trocar uma ideia. O bagulho tá ficando mais sinistro a cada dia. Preciso saber que cê tá comigo, Guga.
— Sempre tô, p***a. Tu sabe disso.
E era verdade. Eu e ele, a gente é tipo família. Não tem traição, não tem vacilo. Se ele precisar de mim, eu tô lá, e sei que ele faria o mesmo por mim.
Mas, vou te falar, viver essa vida não é só adrenalina, não. Tem muito peso também. Já vi amigo meu tombar, já carreguei corpo de parceiro. A gente se acostuma? Nunca. Mas aprende a lidar, a engolir o choro e seguir em frente.
Nos poucos momentos que eu tenho pra mim, tento levar uma vida mais normal. Gosto de colar nos pagodes, de dar uns rolês, e, às vezes, me perco no sorriso de umas minas. Tipo a Letícia.
Essa mulher é f**a. Tem um jeito todo dela, de quem não leva desaforo, mas ao mesmo tempo é doce. Conheci ela num baile, e desde então, sempre que a gente se cruza, o clima esquenta.
— Guga, cê não tem jeito mesmo, né? — ela me disse uma vez, depois de eu dar em cima dela pela milésima vez no mesmo dia.
— Fazer o quê? Cê me deixa sem opções. — Respondi, com aquele sorriso que sei que desarma qualquer uma.
Mas eu sei que ela não é qualquer uma. Letícia é diferente, e talvez seja isso que me prende. Mas, ao mesmo tempo, sei que não posso prometer nada pra ela. Essa vida que eu levo não é a que ela merece.
E assim vou vivendo, dividindo meu tempo entre o corre no morro, as broncas do Arcanjo, e os poucos momentos em que posso esquecer de tudo e ser só o Guga, aquele moleque do campinho que só queria jogar bola e rir com os amigos.
Se eu me arrependo de alguma coisa? Não. Fiz o que tinha que fazer pra chegar até aqui. E, enquanto eu puder segurar as pontas, vou continuar sendo o cara que o morro pode contar. Porque, no fim das contas, isso é tudo o que importa.
A noite tava tranquila, ou pelo menos do jeito que dá pra ser no Vidigal. Eu e o Arcanjo, sem camisa, só de bermuda e chinelo, encostados na base. Cada um com um fuzil atravessado no peito, como se fosse parte da roupa. No alto, as luzes da cidade brilhavam como se fossem outra realidade, mas a gente sabia onde tava. A boca tava movimentada, os moleques correndo de um lado pro outro, rádio chiando, e o cheiro da erva no ar.
— Ô, Guga, passa o isqueiro aí, c*****o. — Arcanjo me cutucou, segurando o baseado no canto da boca.
— Peraí, p***a. Tu vive com um cigarro na mão e nunca tem isqueiro, que isso cara — Peguei o isqueiro no bolso e joguei pra ele.
Ele deu uma risada daquelas que só ele sabe dar, soltando a fumaça devagar. A vibe era essa: zoação e adrenalina misturadas no mesmo lugar. E as mulheres? Passavam de um lado pro outro, rebolando com aquele jeito que só elas têm, jogando charme, sabendo que a gente tava olhando.
— Olha aquela ali, Guga. — Arcanjo apontou com o queixo pra uma morena que passou com um short tão curto que parecia pintado no corpo. — Tá piscando a b****a de propósito, parceiro. Essa sabe o que quer.
— Aí, irmão, para de babar, tu tem mais o que fazer. — Eu ri, mas também dei aquela olhada rápida, porque, né, ninguém é de ferro.
Enquanto a gente tava ali, de boa, o rádio começou a chiar.
— Arcanjo, na escuta? — Era o dono do morro, aquele que só aparece pra dar umas ordens e some de novo.
— Na escuta, chefia. Qual foi? — Arcanjo respondeu, já mudando o tom de brincadeira pro sério. Quando o homem falava, não tinha espaço pra gracinha.
— Reforça os moleques no beco do Mirante. Tão dizendo que a polícia tá sondando lá.
— Pode deixar, vou mandar os moleques. Mais alguma coisa? — Arcanjo perguntou.
— Só fica esperto. Não quero surpresa. — O rádio desligou, seco, do jeito dele.
— Bora, Guga. Vai lá avisar o Neguinho e o Leleco pra subirem pro Mirante. Eles tão vacilando muito esses dias, quero eles na contenção. — Arcanjo já voltou a falar comigo, soltando a última tragada do baseado.
— Demorou, tô indo. — Me levantei, ajeitei o fuzil no ombro e fui na direção dos moleques.
Neguinho e Leleco tavam no canto, jogando conversa fora com outras duas mulheres. Aí cê entende porque o Arcanjo fica puto às vezes. O bagulho sério e os caras dispersando.
— Ô, seus arrombados! Bora levantar a b***a e ir pro Mirante. Chefia mandou. — Chamei, já com aquele tom de quem não quer discutir.
— p***a, Guga, tá na moral aqui... — Neguinho começou a resmungar, mas parou quando me viu sério. — Beleza, tamo indo.
Eles pegaram as coisas e saíram, deixando as mulheres reclamando baixinho. Voltei pra base, onde o Arcanjo já tava com outro baseado na mão.
— Moleque, cê vive com isso aí na boca. Vai morrer fumando. — Brinquei, sentando de novo.
— Melhor morrer fumando do que comendo grama pela raiz por causa desses otários que não levam o trampo a sério. — Ele deu uma risada seca, mas eu sabia que, no fundo, ele tava falando sério.
Passaram uns minutos e tudo parecia tranquilo de novo. A boca tava funcionando, os moleques na correria, e a gente só observando. Era assim que a coisa funcionava: cada um no seu lugar, cada um com sua função. E nós dois, no topo da hierarquia, garantindo que o esquema não desandasse.
— Aí, Arcanjo, cê já pensou em sumir dessa vida? — Perguntei do nada, mais pra provocar do que esperando uma resposta séria.
— Sumir pra onde, Guga? O que eu sei fazer é isso aqui. Tá no sangue, parceiro. E, se eu sumir, quem vai segurar essa p***a aqui? Tu? — Ele me olhou com aquele sorriso meio debochado.
— Nem fudendo, irmão. Essa coroa é tua. Eu tô de boa só de gerente. — Respondi, rindo.
A gente ficou ali, trocando ideia, zoando os moleques, observando a noite passar. As mulheres continuavam desfilando, algumas parando pra dar uma palavra, outras só jogando um olhar antes de seguir. Era uma noite como qualquer outra, mas, no fundo, a gente sabia que qualquer coisa podia mudar o cenário num piscar de olhos.
O Vidigal é assim. Beleza misturada com perigo, zoação misturada com tensão. E a gente? A gente faz o que pode pra continuar respirando.
Tava lá, encostado na esquina, fumando meu baseado, só vendo o movimento. A noite no Vidigal é sempre um espetáculo, mas quem tá dentro sabe que também é campo minado. De longe, vi ela subindo a viela, Letícia, toda empinada, metida naquele vestido tubinho colado no corpo. O bagulho parecia pintado, irmão. Cada curva dela gritava. E o silicone? Quase pulando pra fora. Tava um escândalo.
Os moleques que tavam do meu lado começaram a quebrar o pescoço, tudo disfarçando. Mas, como aqui o respeito é lei, eu logo mandei:
— Aê, cês tão olhando pra onde, seus arrombados? — Dei um tapa de leve no ombro do Neguinho. — Quem olhar pro lado vai tomar uma só no meio do peito, hein! Nem brinca.
Os moleques riram, mas disfarçaram rapidinho. Letícia chegou mais perto, andando como se tivesse o mundo inteiro aos pés, sem nem olhar na minha direção. Atitude pura. Era isso que me deixava bolado nela.
— Ô, ô, ô! — Chamei, mexendo com ela.
Ela deu uma olhada de lado, só com o canto do olho, mas continuou andando devagar, rebolando de propósito, tá ligado? Eu vi que ela queria me provocar. Joguei o baseado no chão, pisei em cima e fui atrás dela, que nem cachorro farejando osso. Alcancei rápido e me coloquei na frente dela, cortando o caminho.
— Qual foi, Letícia? Depois que meteu esse peito aí, nem me dá confiança mais? — Falei com aquele sorriso que sei que ela não resiste.
Ela parou, cruzou os braços e deu uma risadinha debochada.
— É, te vi com aquela ruiva outro dia. Já tá esquecido, né? — Ela levantou a sobrancelha, toda cheia de marra.
— Que ruiva, Letícia? Tá maluca? Tu só me viu trocando ideia, pô. Para de graça, sabe que minha vida é tu. — Sorri, já colando mais perto dela.
Ela gargalhou, daquele jeito gostoso que faz até eco na viela.
— Vida é o c*****o, Guga. Tu é igual a gato, deve ter umas sete vidas pra dividir com todas essas tuas "amigas". — Ela falou, balançando a cabeça.
Tentei botar a mão no peito dela, só pra brincar, mas ela foi rápida, deu um tapa na minha mão e se afastou.
— Tira a mão daí, Guga! Não tem dinheiro teu aqui, não. Nem encosta. — Ela virou o rosto e deu um sorriso de canto, já virando pra ir embora. — Tchau, hein.
Fiquei parado, vendo ela saindo, o vestido dela balançando com cada passo, o cabelo jogado pro lado.
— Gostosa! — Gritei, sem nem me importar se ela ouviu. Ela nem olhou pra trás, mas jogou o cabelo, daquele jeito de quem sabe que tá dominando a situação.
Antes dela sumir na esquina, falei mais alto:
— Quando eu sair do plantão, vou parar na tua casa. Pode me esperar!
Letícia nem respondeu, só continuou andando. Eu não aguentei e, antes de deixar ela ir, bati de leve na b***a dela. A danada só ajeitou o cabelo e foi embora, me deixando ali, rindo sozinho.
Voltei pra base, e os moleques já estavam rindo, sacando a zoação.
— p***a, Guga, a Letícia te tem na coleira, hein? — Neguinho falou, gargalhando.
— Cala a boca, seu arrombado. Quem manda na situação sou eu. — Respondi, mas sabia que eles iam continuar pegando no meu pé.
— Sei, sei. Manda tanto que ela nem te deu moral. — Arcanjo entrou na brincadeira, recebendo risada de geral.
— Cês tão de s*******m comigo? — Falei, fingindo raiva. — Espera ela me ver sem farda de plantão. É pra acabar com o psicológico.
Os moleques caíram na gargalhada de novo, e eu só ri junto, porque era isso. A Letícia era diferente. Não era mulher de se impressionar com qualquer merda. Mas também sabia que, quando eu quisesse, ela não resistia. Era um jogo, e a gente jogava bem.