Leticia

1918 Words
Leticia Narrando Olha, vou te falar, a vida nunca foi fácil pra mim, não. Nasci e cresci no Vidigal, lugar onde a gente aprende cedo que o bagulho é correr atrás ou ficar pra trás. Minha mãe, guerreira, sempre deu o sangue pra gente ter o mínimo, e eu cresci com isso na cabeça: não podia vacilar. Estudei, trabalhei desde nova, peguei firme. Aí, um belo dia, consegui um emprego de vendedora numa loja chique lá no shopping. Pensa numa loja que só de olhar você já sente que não tem dinheiro pra pagar nada ali dentro. Era essa. E foi lá que eu conheci a Lívia. No início, mano, eu achava que ela era daquelas patricinhas nojentas, sabe? Loirinha, olhos verdes, carregando bolsa que devia custar mais do que o aluguel de três meses lá de casa. Entrei muda e saí calada no primeiro dia, só fazia o que me mandavam, com medo de falar alguma coisa errada. Mas aí, aos poucos, fui conhecendo ela, e... c*****o, como eu tava errada. Lívia é diferente. Humilde pra caramba. Logo que a gente começou a trocar ideia, percebi que ela não era só a filha de um milionário que administra umas lojas pra passar o tempo. Ela era firme, decidida, sabia o que queria. E, principalmente, tinha um coração gigante. — Letícia, você tá de olho nesse cliente aí? — Ela perguntava, rindo, quando via que eu tava nervosa. — Tô, tô sim, só não sei se ele tá de olho na loja ou nos preços — eu brincava, e ela caía na risada. A gente foi se aproximando aos poucos. Eu nem sei como virei gerente da loja, pra ser sincera. Quando me ofereceram a vaga, achei que era pegadinha. Mas a Lívia falou: — Você merece, Letícia. Não tem ninguém melhor pra isso. E foi aí que nossa amizade começou de verdade. A Lívia nunca me tratou diferente por eu ser do morro, tá ligado? Ela sempre me viu como igual, e isso, pra mim, vale mais que qualquer coisa. Uma vez, tava todo mundo zoando na loja porque eu falava todo santo dia que queria colocar silicone e não tinha grana, na verdadem com as coisas lá em casa, não sobrava. Lívia chegou, séria, e disse: — Quanto tá faltando? — Tá doida? Não precisa disso, não. Eu dou um jeito. — Tentei desconversar, mas ela insistiu. — Letícia, você quer isso há anos. Deixa de besteira. Eu te adianto seu salário e faço em parcelas pra ir descontando E ela ajudou e as parcelas de desconto nunca chegaram, eu todo mes olhava o contracheque e tava meu salário lá limpinho e eu ia falar com ela e ela desconversava. Não só com isso, mas com várias outras coisas. Quando meu celular quebrou e eu não tinha como comprar outro, fiquei uma semana sem celular ate ela perceber que realmente eu tava sem foi ela quem me deu um novo. E quando eu perguntei por quê, ela só respondeu: — Porque eu posso, cala boca que você merece. A galera olha pra Lívia e vê só a menina rica, metida, que nunca precisou de nada. Mas quem conhece sabe que ela tira a roupa do corpo pra ajudar os outros. É o tipo de pessoa que faz e não conta pra ninguém, sabe? Agora, deixa eu falar uma coisa: eu vivo tentando arrastar a Lívia pra favela. — Lívia, vamos subir no Vidigal? Só um dia, pra você conhecer. — Eu insisto. — Tá maluca, Letícia? Meu pai me mata! — Ela sempre responde, rindo. O Álvaro, pai dela, realmente surta só de ouvir falar nisso. Ele é do tipo que protege a filha como se ela fosse de vidro. E eu entendo, mas, pô, queria tanto que ela visse como é a minha realidade, conhecesse o que tem de bom no morro. Em compensação, ela já me levou em uns rolês de rico que, sinceramente, não fazem minha cabeça. Uma vez, fomos a um jantar numa casa gigantesca na Barra. Tudo chique, sabe? Mas, mano, parecia que ninguém ali sabia como se divertir. — Letícia, tá gostando? — Ela perguntou, animada. — Ah, tá legal, mas cadê o pagode? — Eu brinquei, e ela morreu de rir. Mesmo assim, às vezes consigo convencer ela a ir em uns rolês diferentes, fora da bolha dela. Um samba aqui, um barzinho ali. Nada muito roots, porque sei que ela não se sente confortável. — Eu gosto disso, mas você me deve uma ida ao Vidigal. — Sempre cobro, só de s*******m. — Tá bom, Letícia, o dia que meu pai não estiver na cidade, a gente sobe. Lívia é dessas que surpreende. Todo mundo acha que ela é uma coisa, mas ela é outra totalmente diferente. E talvez seja isso que faz a nossa amizade funcionar. A gente vem de mundos completamente opostos, mas se entende como poucas pessoas conseguem. Ah, e tem uma coisa: Lívia pode ser rica, mas ela também é esforçada pra c*****o. A loja dela não é só um passatempo. Ela trabalha pra caramba, rala mesmo. Se preocupa com tudo, desde o estoque até os clientes. Outro dia, tava na loja resolvendo uma treta de fornecedor, e ela me olhou séria: — Letícia, você acha que eu sou muito chata com as meninas aqui? — Chata, não. Exigente. Mas é assim que tem que ser. — Respondi, e ela sorriu. Eu sei que, pra ela, trabalhar não é uma necessidade. O pai dela pode bancar tudo que ela quiser. Mas ela gosta de se sentir útil, de ter algo que é só dela. E eu admiro isso demais. No fim das contas, o que importa pra mim é que a Lívia tá sempre do meu lado, e eu tô do lado dela. Já passamos por altos e baixos juntas, e sei que nossa amizade é pra vida toda. — Você é mais que uma amiga, Letícia. É como uma irmã que eu nunca tive. — Ela me disse uma vez, e eu nunca vou esquecer. Sei que, por ela, eu faria qualquer coisa. E sei que ela faria o mesmo por mim. Essa é a nossa amizade: forte, verdadeira, e cheia de histórias pra contar. A Lívia me chama de irmã. Irmã que ela nunca teve, já que é filha única. E, mano, ouvir isso dela me deixa cheia de orgulho. Porque, olha só, eu, Letícia, do Vidigal, sou praticamente a família que ela escolheu. E ela também é a minha, tá ligado? Uma amizade dessas não é qualquer coisa. É parceria pra vida toda. Mas deixa eu te contar uma coisa que só as minhas melhores amigas sabem: eu tenho um rolinho no morro. E, quando digo "rolinho", tô falando do Guga. Ah, Guga... Ele é aquele tipo de cara que chega no baile e todo mundo para pra olhar. Moreno, corpo fechado, sorriso de canto que parece um convite pro pecado. Guga é gerente do morro, tá sempre na correria, mas quando ele desce pro pagode ou pinta no baile, o homem domina o ambiente. A gente se conheceu numa dessas festas. Eu tava com as meninas no canto, rindo e zoando, quando ele chegou do nada, já soltando uma: — E aí, princesa? Tá rindo de quê? Quero rir também. Achei a abordagem meio manjada, mas vou te falar: aquele olhar dele não deixou espaço pra eu dizer não. — Tô rindo de você achando que tem graça, isso sim. — Respondi, tentando ser difícil, mas já tava entregando o ouro. Ele riu, e foi assim que a gente começou. Não tem nada sério entre nós, tá ligado? É só aquele lance de quando a gente se encontra no pagode ou no baile. Um flerte aqui, um beijo ali, e depois cada um segue a sua vida. Porque, vou te falar, eu sei que o Guga não vale nada. Ele é lindo, gostoso, tem aquela pegada que faz qualquer mulher suspirar, mas não é o tipo de cara pra levar a sério. Eu vejo como ele é no morro. Vive cercado de mulher, sempre soltando aquelas conversinhas que a gente sabe muito bem onde vão dar. Outro dia, ele tentou vir com esse papo: — Letícia, cê sabe que eu gosto de você, né? — Gosta, Guga? Sei... Do mesmo jeito que gosta de todas as outras que você fica atrás. — Dei uma risada e virei a cara. Ele tentou se justificar, mas, sinceramente? Não preciso. Eu sei o que é. Guga é o tipo de homem pra viver o momento, não pra fazer planos. E eu tô de boa com isso. — Mas cê não acha ele perigoso, não, Letícia? — Perguntou a Lívia uma vez, preocupada. — Ah, Lívia, ele é gerente, né? Faz parte da vida dele. Mas comigo ele nunca desrespeitou. Eu sei até onde posso ir. Lívia sempre fica meio apreensiva com essa história de eu me envolver com alguém do morro, mas ela entende que é o meu mundo, é o que eu conheço. E, além disso, Guga não é qualquer um. Ele é respeitado lá em cima, e isso faz toda a diferença. Agora, deixa eu te contar como foi que rolou a primeira vez. Tava no baile, dançando com as meninas, quando ele chegou por trás e segurou minha cintura. Não vou mentir: o coração deu aquela disparada. Ele sussurrou no meu ouvido: — Tá gostosa demais hoje, hein? E pronto, foi dali pra frente. Não vou entrar nos detalhes porque, né, deixa pra imaginação. Mas vou te dizer uma coisa: o homem sabe o que faz. — E você não tem medo de se apaixonar, não? — Perguntou a Lívia quando contei sobre o rolo com o Guga. — Por ele? Nunca! O Guga pra sentar, as mulheres querem amar, por isso que sofrem. — Respondi, rindo. E é isso mesmo. Ele sabe que a gente tem algo especial, mas não é o tipo de cara pra formar família, nem pra me levar a sério. E, pra ser sincera, eu também não tô procurando nada disso. Minha vida já é complicada o suficiente sem um relacionamento pra bagunçar tudo. A gente se vê quando dá. Às vezes, no pagode, ele aparece com aquele sorriso de canto e já sei que a noite vai ser boa. Outras vezes, ele só manda mensagem, tipo: — Ta em casa né? Vou passar ai pra te pegar, vamos da um rolê. E, quando eu posso, eu vou. Não tem pressão, não tem cobrança. É só isso: leve, divertido, sem amarras. Mas, mesmo sendo assim, vou te confessar uma coisa: Guga é o tipo de cara que mexe com a gente. Às vezes, me pego pensando nele, lembrando de alguma coisa que ele falou, ou de como ele me olha quando tá tentando me convencer de alguma besteira. É f**a, porque ele tem esse jeito que faz a gente querer acreditar nele, mesmo sabendo que é furada. No fim das contas, é isso: Guga é meu escape, meu jeito de desligar das responsabilidades, do trabalho, de tudo. E, por mais que eu saiba que ele nunca vai ser mais do que isso, também não trocaria esses momentos por nada. A vida no Vidigal já é dura o suficiente. Às vezes, a gente só precisa de alguém pra dividir um sorriso, um beijo, e esquecer do resto, nem que seja por algumas horas. E, pra mim, esse alguém é o Guga, mesmo que ele nem saiba.
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