Lívia Narrando
A brisa do mar subia leve até a varanda do meu apartamento, mas eu nem sentia. Estava ali sentada, descalça, com o celular na mão, rolando pelo i********: sem prestar muita atenção. Era uma noite tranquila, silenciosa, só com o som das ondas ao fundo e as luzes da cidade piscando ao longe. Meu pai? Nem sinal. Desde o almoço ele tinha sumido, provavelmente estava com alguma mulher, mas isso já nem me incomodava mais.
O celular vibrou na mesa, e eu abri o w******p: mensagem da Letícia.
— "Bora, amiga! Pagode aqui no Vidigal tá bombando. Vem viver um pouquinho, p***a! Só glamour cansa, sabia?"
Ri sozinha, como sempre fazia com os absurdos da Letícia. Peguei o telefone e respondi.
— "Miga, desiste disso, mulher. Eu tenho pavor de favela, você sabe. Meu pai me mata se souber que tô cogitando isso, e olha que eu nem tô em."
Mas ela insistiu. A Letícia tinha um jeito todo dela de quebrar minhas barreiras.
— "Ah, pavor, né? Tá bom... continua aí sozinha na tua cobertura, com o vento no cabelo, curtindo sua solidão enquanto eu me divirto horrores. Mas não esquece: só vive quem se arrisca, dona Lívia. Tá perdendo!"
Soltei um suspiro e me joguei no sofá. Ela estava certa. Minha vida parecia perfeita, mas era tão vazia às vezes. E meu pai? Sumiu mesmo dia inteiro, então não tem nem como ele saber o que eu vou fazer. Uma vozinha lá no fundo começou a me cutucar. Por que não?
Peguei o celular e mandei a mensagem:
— "Tá bom, Leti. Me convenceu. Vou me arrumar e vou praí. Me espera!"
Ela mandou audios gritando de felicidade, parecia ate que tinha ganhado na loteria. Ela me ajudou a escolher uma roupa, um vestidinho colado de alcinha bem fina e uma rasteirinha, eu tava me sentindo bem simples, mas ela disse que pe assim mesmo né?Então tudo bem. Passei meu gloss e arrumeu meu cabelo bem liso, passei um perfume e peguei a chave do meu carro.. 30 minutos depois, lá estava eu, subindo a ladeira do Vidigal no meu carro importado. Meu coração parecia que ia sair pela boca. Cada curva era um novo susto, cada olhar curioso na rua me fazia questionar se aquilo era uma boa ideia. Quando cheguei ao lugar marcado, Letícia já estava me esperando. Vestido tubinho preto, uma rasteirinha, dona de si, como sempre sacudindo aqueles cabelos dela.
— Sabia que eu ia te convencer! — disse ela, me puxando pelo braço.
— Letícia, eu não sei se isso é uma boa ideia... — comecei a reclamar, olhando em volta.
O lugar estava cheio. Gente dançando, rindo, bebendo. A música do pagode tocava alto, e o cheiro de churrasquinho misturado com cerveja dominava o ambiente. Era animado, sem dúvida, mas eu ainda estava nervosa. Principalmente quando vi os homens armados espalhados pelo canto, conversando como se segurassem brinquedos e não fuzis.
— Relaxa, amiga. Ninguém vai mexer contigo aqui. Você tá comigo, tá em casa! — Letícia disse, segurando minha mão.
Enquanto ela me puxava pra entrar, um cara alto, moreno e sem camisa apareceu no meio da roda. Fuzil atravessado no peito, sorriso branco e um jeito que exalava perigo.
— E aí, morena chegou? Já tava com saudade! — ele falou, parando na frente dela.
— Ai, Guga — ela respondeu, rindo.
Fiquei paralisada por um momento. Era ele, o Guga que ela sempre comentava. Mas nada me preparou pra vê-lo ao vivo, com aquele fuzil enorme pendurado no corpo e o olhar predador. Ele me olhou de cima a baixo e sorriu.
— Quem é a amiga aí, Letícia?
— Uma amiga medrosa. Essa é a Lívia. — Letícia respondeu, rindo, enquanto dava um tapinha no braço dele.
— E ai medrosa, não fica com medo não. Só se você for policial, ai fica com medo sim . — Ele piscou me olhando, riu e se virou, falando com um dos moleques ao lado.
O clima pra Letícia parecia normal, quase familiar. Mas pra mim? Era sufocante. As armas, os olhares, as risadas altas. Tudo era demais. Eu só conseguia pensar no quanto aquilo era perigoso.
— Letícia, meu pai tá ligando. Preciso atender. Já volto, tá? — falei, fingindo pegar o celular.
Ela me olhou desconfiada, mas não insistiu.
— Tá bom, vai lá. Mas não demora!
Me afastei rapidamente, sem olhar pra trás. Caminhei o mais rápido que pude até o meu carro, sentindo os olhos de algumas pessoas me seguindo. Minha respiração estava acelerada, e meu coração parecia um tambor dentro do peito. Quando cheguei ao carro, destravei e entrei, batendo a porta com força.
Antes que eu pudesse ligar o motor, Letícia apareceu na janela.
— Ei, cê tá fugindo, né? Fala logo!
— Amiga, não dá. Meu pai ligou, sério. Ele tá voltando pra casa e quer falar comigo. Preciso ir.
Ela suspirou, cruzando os braços.
— Tá bom, Lívia. Vai lá. Mas sabia que cê tá perdendo, né? Aqui é vida de verdade, e você tá presa na bolha de vidro.
— Prometo que compenso depois. Me desculpa, amiga
Ela balançou a cabeça, decepcionada, mas deu um sorriso pequeno.
— Vai lá, princesa. Depois a gente se fala.
Liguei o carro e saí, descendo a ladeira com cuidado. Só quando cheguei na avenida, com as luzes da cidade de novo ao meu redor, consegui respirar. Aquele lugar era intenso demais pra mim. Mas, ao mesmo tempo, não conseguia tirar a cena da cabeça: Letícia rindo, à vontade, como se fosse a dona do mundo. Cheiro de homem armado ali, as armas enormes gente, como que conseguem?
De volta ao meu apartamento, tirei os sapatos, me joguei no sofá e fechei os olhos. Eu sabia que não era minha praia, mas por algum motivo, parte de mim queria ter ficado. Talvez fosse o fascínio pelo desconhecido. Ou talvez... fosse só a Letícia, com aquele jeito dela de me fazer sair da minha zona de conforto.
Mas uma coisa era certa: eu não estava pronta pra aquele mundo. Não ainda.