Guga Narrando
O sol tava rachando na cabeça quando cheguei na boca. Era dia de reabastecer o estoque, e a movimentação tava sinistra. Moleque subindo e descendo o morro, mochila nas costas, suor escorrendo na cara. Eu já tinha deixado meu baseado no jeito, porque se tem uma coisa que eu preciso pra aguentar esse corre, é um bom tapinha pra relaxar a mente.
— Qual foi, Guga? Vai ficar chapado logo cedo? — gritou o Jorginho, enquanto passava correndo com um tijolo na mão.
— Qual foi, moleque? Faz teu corre e para de encher o saco — retruquei, soltando a fumaça devagar.
Na moral, ser gerente da maconha não é só contar dinheiro e distribuir. A responsa é pesada. Se algo der errado, o Arcanjo me come vivo. O cara é brabo, a frente do Vidigal. E o Dono? Esse aí só aparece pra dar ordem e sumir de novo. É tipo um fantasma, mas o respeito dele é absoluto. Ninguém ousa questionar.
Eu tava de olho nos pivetes novos, porque sempre tem um vacilão achando que tá na Disney. Dei um grito pra chamar o Boca, meu braço direito.
— Boca, chega aí! — falei, chamando o moleque que tava encostado, mexendo no celular.
— Fala, chefia. Qual é a missão? — Ele veio na moral, sempre esperto.
— Quero que tu dá um papo nos novatos. Tem que ensinar que aqui é Vidigal, não é playground. Qualquer vacilo, quem paga sou eu, e quem apaga são eles. Entendeu?
— Deixa comigo, Guga. Vou botar ordem nessa p***a.
Boca saiu, e eu continuei fumando. O movimento tava intenso, o fluxo de turista no morro também ajudava. O Vidigal tinha essa parada, né? O contraste. De um lado, gringo tirando foto como se fosse safári; do outro, o corre pesado, vida ou morte.
Arcanjo chegou logo depois, vestido de bermuda e chinelo, mas com a presença de quem mandava na p***a toda. Ele tava tranquilo, mas só de olhar dava pra sentir o peso da aura do cara.
— Fala, Guga. Tá tudo sob controle? — perguntou, enquanto acendia o cigarro.
— Tranquilo, chefia. Reabasteci os pontos, fiz a contagem. Tá tudo certinho. Só tô de olho nos novatos, tem uns que ainda não pegaram o espírito.
— Isso é normal. Mas deixa eu te falar uma coisa: não quero notícia r**m. O Dono não gosta de saber que tem problema na maconha. Ele quer tudo redondo. Então, fica esperto.
— Pode deixar. Aqui é disciplina.
Arcanjo assentiu e deu um tapa no meu ombro antes de seguir o caminho. Eu sabia que ele confiava em mim, mas também sabia que um deslize e eu tava fudido. O Dono não era de aparecer, mas quando vinha, era pra resolver. E resolver, no dicionário dele, significava morte.
O dia foi passando, e eu tava ali, coordenando tudo. Contando dinheiro, conferindo o peso da carga, organizando o delivery da favela. Tinha umas tias que compravam direto com a gente, e eu mandava sempre os moleques de confiança fazer a entrega.
— Guga, tá faltando 500 conto aqui na contagem! — gritou o Boca, voltando da ronda.
— Como assim, c*****o? Quem tá metendo a mão?
— Parece que foi o Pedrinho. Aquele o****o tava no fluxo hoje mais cedo e agora sumiu.
Minha paciência acabou na hora. Peguei o rádio e mandei o chamado:
— Atenção, geral na escuta. Quero o Pedrinho na minha frente em dez minutos. Se esse moleque não aparecer, vou subir na casa dele e arrastar ele pela orelha.
O clima ficou pesado. Quando um gerente manda um recado assim, o morro inteiro para pra ver no que vai dar. Dez minutos depois, lá tava o Pedrinho, tremendo que nem vara verde, com dois moleques escoltando ele.
— Qual foi, Pedrinho? Tá achando que aqui é bagunça? — perguntei, encarando ele.
— Não, chefia, juro que não. Foi engano. Eu tava contando o dinheiro e acho que caiu no chão...
— Caiu no chão, p***a nenhuma! — gritei, pegando ele pela gola. — Aqui ninguém é trouxa, moleque. Ou tu devolve, ou vou ensinar como funciona no Vidigal.
— Tá aqui, tá aqui! — Ele puxou o dinheiro do bolso, com a mão tremendo. — Foi m*l, Guga. Nunca mais vou fazer isso.
Soltei ele e dei um tapa no rosto, não muito forte, mas o suficiente pra deixar ele sem graça na frente de todo mundo.
— Essa é tua última chance. Vacila de novo e tu some daqui, entendeu?
— Entendi, chefia. Não vai mais acontecer.
Dei um passo pra trás, respirei fundo e tentei me acalmar. A última coisa que eu queria era manchar o dia com sangue. Mas se fosse necessário, eu não hesitaria.
Quando a noite caiu, o movimento começou a diminuir. Era hora de fazer o fechamento do caixa e repassar os números pro Arcanjo. Boca trouxe os relatórios, e eu conferi tudo.
— Tá certinho, chefia. Pode mandar pro Arcanjo — disse ele.
— Beleza. Agora vou subir, porque amanhã tem mais.
Saí da boca e fui pra casa, com a cabeça cheia. Esse corre não era pra qualquer um. Era adrenalina o tempo todo, mas também era responsabilidade. No Vidigal, você não sobrevive só com força. Tem que ser inteligente, estratégico, e, principalmente, leal.
Cheguei em casa, tirei a camisa e me joguei no sofá. Meu celular vibrou, e eu vi uma notificação no i********:. Era uma foto da Letícia, com um copo de chope na mão e um sorriso de lado que me fez arrepiar.
"Essa mulher ainda vai me matar", pensei, enquanto abria o direct pra responder.
— Tá bonito, né? Bebendo por aí e deixando os outros te olharem. Espera eu te ver.
Ela respondeu com um emoji rindo, o que me deixou ainda mais irritado. Letícia sabia como mexer comigo, e eu sabia que ela fazia de propósito.
Tava jogado no sofá, sem camisa, só de bermuda, com a p***a do celular na mão, olhando aquele feed do inferno. Letícia postando foto atrás de foto, copo de chope na mão, sorriso de canto, e o c*****o é que ela não mostrava com quem tava. Só via o fundo do bar, uma p***a de luz colorida, e o que parecia ser a mão de alguém ao lado. Eu tava puto, cego de ciúmes, já imaginando a desgraça.
"Deve tá com algum arrombado", pensei, enquanto puxava o baseado pra dar uma acalmada. Só que não adiantava. Cada tragada só fazia minha cabeça rodar mais.
Peguei o rádio e chamei os moleques que tavam na entrada.
— Qual foi, tropa? Quem tá na escuta?
— Fala, Guga! Tô aqui na contenção — respondeu o Paulinho.
— Ó, é o seguinte: quando a Letícia subir, tu me avisa. Na hora, hein? Não enrola.
— Pode deixar, chefia. Qualquer coisa, dou o toque.
Joguei o rádio pro lado, me levantei e fui pro banheiro. Liguei o chuveiro, a água gelada batendo no corpo pra tentar esfriar a cabeça. Mas a p***a da imagem dela naquele bar não saía da minha mente. Letícia tinha esse dom de me deixar transtornado. Quando saí do banho, já tava com aquele ar de que alguma coisa ia dar r**m.
Me joguei de novo no sofá, tentando desviar o pensamento. O celular vibrou. Olhei rápido, mas era só um meme que o Boca mandou no grupo. Ignorei. Passei a mão no cabelo, peguei outro baseado e acendi.
Foi aí que ouvi a porta abrindo com força. Era o Arcanjo, como sempre, chegando na maior moral, com duas caixas de pizza na mão.
— Coé, viado! Bora amassar isso aqui, tô com a larica do tamanho do Vidigal — falou, jogando as caixas no sofá.
— Tu só aparece pra comer, né, desgraçado? — retruquei, rindo.
— p***a, cê sabe que eu sou útil, né? Alguém tem que alimentar o gerente da maconha. Tu parece que não come nada além de fumaça.
Arcanjo sentou, puxou uma fatia e abriu o isqueiro.
— Cadê o baseado? Tu já deixou no jeito, né?
— Tá aqui, ó. Só no esquema.
Passamos a próxima meia hora ali, comendo pizza e fumando. A larica era real, e eu tava na vibe de esquecer o mundo. Só que toda vez que eu olhava pro relógio, a p***a do ciúme voltava. Já era mais de meia-noite, e nada da Letícia. A cabeça começou a rodar de novo.
— Qual foi, mano? Tá com cara de quem vai explodir — comentou Arcanjo, dando risada.
— Tô bolado, p***a. Letícia tá lá postando foto, rindo, bebendo... Mas não diz com quem tá. Tu sabe como é, né? Dá logo pra imaginar a merda.
— p***a, Guga, tu é muito emocionado. Vai ver tá só com as amigas.
— Amiga o c*****o! Se fosse, mostrava. Essa p***a de esconder é porque tem macho no meio. Já tô cansado dessa palhaçada.
Peguei o celular e comecei a ligar pra ela. Tocou, tocou, até cair na caixa postal. Minha paciência já tava no limite. Arcanjo só ria, achando graça na minha desgraça.
— Letícia, atende essa p***a! — falei, ligando de novo.
Dessa vez, ela atendeu. A voz dela já veio meio impaciente.
— O que foi, Guga? Tô no bar com as meninas.
— Com as meninas? p***a, Letícia, para de graça. Tá achando que eu sou o****o? Cadê elas? Me mostra.
— Tá maluco, cara? Eu tô aqui de boa, bebendo. Qual é a necessidade disso?
— Necessidade é tu parar de fazer marola com a minha cara, c*****o! Mostra com quem tu tá, p***a. Ou tá com medo de eu ver o corno aí do lado?
Arcanjo quase se engasgou de tanto rir. Ele tava sentado do meu lado, com a pizza na mão, achando aquilo tudo um grande entretenimento.
— Guga, tu tá doente. Eu já disse que não tem ninguém aqui além das meninas. Para de ser paranoico, p***a.
— Paranoico o c*****o! Faz o seguinte: muda pra chamada de vídeo. Quero ver tua cara e o ambiente.
— Guga, para com isso. Parece ate que a gente namora, eu em que loucura é essa?
— f**a-se. Muda pra vídeo, ou eu vou aí te buscar, sua vacilona.
Arcanjo gargalhava, dando tapa na própria perna.
— Essa novela tá boa demais. Quero ver o final disso, hein! — ele provocou.
Eu liguei em video mil vezes cara, mil vezes e ela não atendeu a chamada de video. Que vontade de surtar, c*****o! joguei o celular no sofá e encarei Arcanjo, que ainda tava rindo.
— Qual é a graça, p***a?
— A graça é tu, mano. Parece até que é o dono do Vidigal todo, mas perde a linha por causa de mulher. Tu é brabo no corre, mas no coração é um bosta.
— Vai tomar no cu, Arcanjo.
Ele deu de ombros, ainda rindo, e puxou mais um baseado. Eu tentei relaxar, mas a verdade é que aquele ciúme ainda tava martelando na minha cabeça. No Vidigal, a gente comanda tudo. Mas, no amor, a gente vira refém.
Quando eu desisti, ela me ligou em video. Eu peguei na hora o celular atendi. Letícia finalmente mudou pra chamada de vídeo. O rosto dela apareceu na tela, com aquele sorriso cínico que me tirava do sério.
— Tá vendo? Eu tô aqui de boa, ó. Nem tem homem.
— Mostra o resto. Quero ver o bar, as mesas.
— Tu tá me tirando, né? — Ela virou a câmera, mostrando as amigas rindo e acenando. — Tá satisfeito agora, doido?
Apereceu uma loira do lado dela que o Arcanjo ficou branco na mesma hora, calou ate a p***a da boca dele.
— Coé Leticia, deixa eu ver essa loira ai mano — ele falou arrancando o celular da minha mão
Leticia virou a camera pra amiga dela, a Lívia, e o Arcanjo ficou maluco, ate levantou do sofá
— Coé mano, manda essa menina falar comigo ai mano
Eu comecei a ri. É bom, né? o****o.