Álvaro Narrando
A noite já tinha caído quando entrei na minha sala e encontrei a secretária ainda lá, sentada diante do computador, concentrada num relatório que eu nem lembrava de ter pedido. A empresa tava vazia, o corredor só com uma luz de emergência acesa, e o silêncio era quase total. Todo mundo já tinha ido embora, mas ela continuava ali, firme e forte, teclando sem parar.
— Caramba, você ainda aqui? — falei, encostando na porta. — Não achei que alguém ia ficar tão tarde.
Ela levantou o olhar, um pouco surpresa. Tava tão focada que nem notou minha presença.
— Ah, seu Álvaro... desculpa, não ouvi o senhor chegar. Tô terminando o relatório do terceiro trimestre. Falei que ia deixar tudo pronto antes do final de semana.
Sentei na poltrona de couro, cruzando as pernas, observando. Ela era diferente da maioria das pessoas que trampava comigo. Não tinha aquela pose arrogante, nem ficava puxando meu saco por interesse. Simples, cabelo preso num r**o de cavalo, maquiagem leve, roupa social básica. Mas, por trás daquela simplicidade, eu via uma determinação rara.
— Rapaz, você tá realmente empenhada, hein. — dei um sorrisinho. — Não precisa se matar por isso. Amanhã de manhã seria suficiente.
Ela deu um leve sorriso, meio sem graça.
— Eu sei. Mas eu prometi que terminaria hoje, e gosto de cumprir o que digo. Sabe como é, não curto deixar coisa pendente.
Havia algo nela que me deixava curioso. Não era só a beleza — embora fosse linda, com um olhar meio doce — mas uma aura diferente, uma leveza no jeito de falar. Parecia não se abalar com a minha presença. A maioria dos funcionários com cargo menor agia feito estátua na minha frente, ou tentava me impressionar. Ela não. Tava ali, tranquila, focada na missão dela.
— E você não vai embora, não? — perguntei, inclinando a cabeça. — Tá tarde pra isso.
Ela deu de ombros, sem drama.
— Daqui a pouco eu vou, seu Álvaro. Só quero finalizar isso aqui. Moro longe, então se eu sair agora ou em trinta minutos, não faz tanta diferença. Vou pegar ônibus de qualquer jeito.
Ônibus. Por um segundo, essa palavra me pegou. Eu não lembrava a última vez que tinha ouvido alguém, dentro da minha empresa, admitir que ia embora de ônibus, principalmente tão tarde. A maioria ou vinha de carro próprio ou chamava um motorista de app, ou algum esquema. Ela não. Se vira no coletivo, do jeito dela.
— Você pega ônibus essa hora? E não é perigoso? — perguntei, realmente interessado.
Ela deu um risinho curto.
— É perigoso qualquer hora do dia, né? Mas eu tô acostumada.
— Caramba… — cocei o queixo, pensativo. — E você tá aqui, sozinha, adiando a hora de ir embora só pra não deixar um relatório pendente. Admiração é pouco.
Ela ficou meio sem jeito com o elogio, ajeitando a postura.
— Obrigada, seu Álvaro. Eu gosto do meu trabalho, gosto de fazer as coisas bem feitas. Isso me faz sentir útil, sabe?
— Sei, sim. — concordei, sincero. — E gosto desse teu jeito, verdadeiro. Na maioria das vezes, a galera aqui só quer mostrar currículo, título, MBA no exterior... pouca gente fala de empenho real. Tu já jantou né?
Ela balançou a cabeça.
— Não, não. Só tomei um café lá pelas seis. Depois esqueci de comer. Quando chegar em casa, como qualquer coisa. Tem sempre um restinho de arroz e feijão me esperando.
Arroz e feijão esperando... Enquanto eu tinha um chef particular me servindo praticamente todos os dias, ela chegava em casa e esquentava a comida na panela. Esse contraste me bateu forte. Não um choque de desgosto, mas de admiração. Ela era pé no chão.
— Quer que eu peça algo pra gente beliscar aqui na empresa mesmo? — ofereci, levantando. — Um lanche, uma pizza, sei lá. Não quero te segurar faminta. E eu também to com fome.
Ela sorriu, surpresa.
— Ih, seu Álvaro, não precisa. De verdade. Mas se o senhor for comer, posso aceitar um petisquinho. Tô de boa com qualquer coisa, não sou fresca não.
Fui até a mesinha no canto da sala, onde tinha uns menus de entrega.
— Tem um barzinho que entrega uns espetinhos, uns bolinhos. Pode ser?
— Pode, com certeza. — ela deu um sorriso contente. — Já tá ótimo.
Enquanto ligava pro delivery, pensei em como era raro compartilhar um momento desses com alguém da minha equipe, ainda mais uma secretária. Depois de fazer o pedido, voltei pra perto dela.
— Daqui a pouco chega. — comentei, apoiando as mãos no bolso. — E me conta, como você veio parar aqui? Não lembro de ter conversado contigo direito antes.
Ela respirou fundo, arrumando um pouco o cabelo. Não era normal eu perguntar essas coisas, é logico que eu não conheço todo mundo que trabalha dentro dessa empresa, cada setor tem um contratado cuidando de tudo pra mim, e eu relmente nunca tinha visto ela antes no meu andar, se não com certeza me lembraria.
— Bom, eu entrei na empresa faz uns meses. Vim da área administrativa, a antiga secretária desse setor saiu pra viajar e acabei assumindo o posto dela. Tô gostando, aprendo todo dia, apesar do ritmo ser punk.
— Ah, ela não foi viajar, eu mandei demitir — falei sorrindo de lado
— Ah, serio? Desculpe.
— Que nada! Espero que goste de trabalhar direto comigo, eu não sou muifo facil. Mas, você mora com quem? — perguntei, curioso. — Família grande?
— Moro sozinha — ela riu — Eu lá tenho idade pra morar com outra pessoa? Gosto de paz.
— Entendi… — disse, baixinho. Era um mundo diferente do meu, mas ao mesmo tempo tão real, tão presente. — E como você se diverte, então? Só trabalha e estuda, ou arruma tempo pra sair?
Ela deu uma risadinha, cruzando as pernas.
— Eu tento, né? Às vezes, pego um cineminha dia de segunda feira que é mais barato, quando da tempo, encontro com umas amigas num bar pra tomar cerveja, ouvir um pagodinho de leve. É muito legal. Acho que a felicidade tá nesses detalhes.
continua......