Conhecendo o novo lar

1293 Words
Mesmo sendo uma criança complicada, eu amava profundamente a diretora. Ela foi a única que realmente se importou comigo, oferecendo apoio e consolo quando eu mais precisei. Não queria partir e magoá-la de forma alguma. A ação dela, como sempre, era clara: ela queria me proteger. Mas, mesmo nova, percebi que proteção nem sempre é o que precisamos. Era necessário enfrentar a vida de cara limpa. Precisava deixar claro para ela quais eram minhas intenções e como me sentia. — Eu fui rejeitada. Ninguém nunca me procurou no orfanato, nunca fui adotada. Não há como me ferir mais do que já aconteceu. A vida me calejou. Só quero saber a verdade. Viver me questionando sobre isso tem me incomodado há muito tempo. As lembranças que tenho são de uma mãe amorosa, mas também de uma mulher fria. As peças nunca se encaixaram. Vou ficar bem. Agradeço todo carinho e preocupação. Cuide de todos. E não se esqueça de cuidar de você. Adeus, diretora. Espero um dia crescer e me tornar alguém como a senhora. — Me despedi, já sabendo que era a próxima, antes que ela tentasse me impedir novamente. Se havia alguém capaz de me parar, era ela. Me aproximei do balcão, mostrei os documentos e a passagem. Não tive coragem de olhar para trás; tinha medo de desistir. Mesmo animada com a ideia, o receio ainda me acompanhava. Estava prestes a começar uma nova vida em um lugar completamente desconhecido, com pessoas que eu nunca tinha visto. Sentia que nunca mais voltaria ao Brasil, mas isso podia ser só coisa da minha cabeça. A viagem durou dezessete horas. Consegui carregar meu celular e ainda dormir um pouco. Quando acordei, já estávamos pousando. Desembarquei à procura da pessoa que viria me buscar, e não demorou a encontrar. Uma freira baixinha, com um enorme sorriso, segurava uma placa com o nome do programa. — Olá, você deve ser a Jennifer. Eu sou Camille, sua orientadora na primeira fase do programa. Vamos esperar sua colega de quarto, que chegou no mesmo voo. — Camille disse em português, me surpreendendo, pois pensei que todos falariam italiano. — Olha, lá está ela. Camille apontou para uma mulher de cabelos pretos até a cintura, vestindo uma saia longa e uma blusa de mangas. Usava óculos enormes que não combinavam com seu rosto, e, mostrando para que veio, segurava uma Bíblia grande e vários terços. — Jennifer, esta é Débora. Débora, esta é Jennifer. Vocês são colegas de quarto e devem se apoiar durante o programa. Haverá momentos difíceis, e ter alguém ao seu lado sempre ajuda. Por isso, preferimos formar pares. — Camille apresentou, sorrindo, enquanto Débora me avaliava da cabeça aos pés. — Tenho certeza de que vocês vão se dar bem. — Eu duvido. — respondemos as duas ao mesmo tempo, criando um clima tenso. Camille nos olhou confusa, sem saber o que estava acontecendo. A diferença entre nós era evidente. Débora, com toda certeza, poderia se tornar um obstáculo para meus planos. Dividir o quarto dificultaria tudo que eu havia planejado para escapar. Será que conseguiria convertê-la em minha aliada de alguma forma? Isso não seria nada fácil. Talvez eu tivesse que tentar algo mais ousado, como um leite quente batizado antes de dormir. Camille tentou de todas as formas puxar assunto durante o trajeto, mas nem eu, nem Débora estávamos no clima para responder. O silêncio desconfortável nos acompanhou desde o aeroporto até pararmos diante de uma pequena casa, onde finalmente o carro estacionou e Camille desceu. — Esta será a casa de vocês nas próximas semanas. Como já sabem, é parte do processo de adaptação. Vocês só poderão morar no mosteiro com as outras candidatas depois dessa fase inicial, que funciona como uma introdução. Aos poucos, vão se acostumar com a rotina e as atividades. Nesta etapa, vocês começam a abandonar alguns hábitos e manias. Agora, peço que me entreguem qualquer aparelho eletrônico ou livros que tenham trazido. Buscamos uma vida mais humilde, de comunhão com Deus, e é importante deixar para trás os aspectos mundanos da vida. — Camille estendeu a mão na nossa direção antes mesmo de entrarmos na casa. — Eu morava num orfanato até algumas horas atrás. Não temos autorização para ter celular, muito menos condições financeiras. — Respondi. Não era exatamente uma mentira. — Só trouxe minha Bíblia, posso ficar com ela? — Entendo. Sim, pode ficar com sua Bíblia. Geralmente, temos anotações e estudos pessoais nelas, por isso, incentivamos que cada um mantenha a sua. — Camille então voltou sua atenção para Débora. Débora suspirou, tirando um celular de última geração do bolso e o entregando a Camille, que sorriu, agradecendo enquanto guardava o aparelho em uma caixa de acrílico e o trancava com um cadeado. — Vamos subir, vou mostrar o quarto de vocês. A casa tem três quartos, um banheiro compartilhado, cozinha e sala. Vocês vão dividir o espaço com mais quatro meninas. Duas já estão aqui e as outras ainda vão chegar. Não há comida na cozinha, pois todas as refeições serão feitas no refeitório, assim como para todas as outras. — Camille explicou enquanto subíamos a escada estreita que levava a um corredor com três portas. — Este é o quarto de vocês. Era um quarto simples, com paredes brancas. Havia um beliche, um pequeno guarda-roupa de madeira e uma cômoda, tudo iluminado por uma janela grande. O espaço era tão apertado que só podíamos entrar duas por vez. — Podem guardar suas coisas. Hoje é um dia de folga, então vocês estão livres para explorar a redondeza, mas a partir de amanhã, só poderão sair com autorização. A rotina começa às cinco e meia da manhã. Estão dispensadas até as seis. Deixarei comida para o jantar. — Camille disse da porta. — Alguma dúvida? — O que acontece se quebrarmos uma regra sem querer? — perguntei. Afinal, eu tinha um talento natural para esse tipo de coisa. — A madre superiora avaliará o erro. Pode variar de penitências e tarefas até expulsão, dependendo da gravidade. Sabemos que a adaptação pode levar um tempo, mas peço que se esforcem. Estarei por perto para tirar qualquer dúvida. — Camille respondeu, já descendo as escadas. — Tenho um compromisso agora. Até mais tarde. — Eu fico com a cama de cima e o guarda-roupa. — Débora anunciou assim que Camille saiu. Não quis brigar com ela, ainda. A cama de baixo seria ideal para escapar à noite sem chamar atenção. — Pode ser. — Respondi, organizando minhas poucas roupas na cômoda. Segundo as regras, só podíamos trazer uma bolsa com itens essenciais. Não levou muito tempo. Tudo o que trouxe coube em duas gavetas. Assim que terminei, coloquei a carta da minha mãe no bolso do casaco e desci as escadas. Meu objetivo era ir até o endereço no envelope, mas antes, eu precisava encontrar um lugar para carregar meu celular. Precisaria dele para usar o GPS. Assim que saí da casa, parecia que tinha entrado em um filme. As ruas estreitas da Via Santa Cecília, com a Basílica ao fundo, eram como uma pintura. Os edifícios antigos, coloridos, com varandas cheias de flores, misturavam-se ao aroma de café fresco no ar, enquanto músicos de rua tocavam uma melodia encantadora. Era como viver em um conto de fadas romano. Segui o cheiro de café até encontrar uma pequena cafeteria. Ainda distraída com a beleza ao meu redor, acabei esbarrando em um homem alto, de cabelos castanhos e barba bem aparada, vestindo um terno azul. O impacto foi o suficiente para derrubar o café que ele segurava direto na minha roupa. — Sei cieca? Cosa pensi di fare? (Você é cega? O que pensa que está fazendo?) — O homem gritou, me olhando com irritação.
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