Mia XII

2546 Words
Eu não tinha planos de falar de Bill para ninguém, mas nessa última semana as lembranças tem vindo me atordoar com mais frequência e bastou apenas uma pergunta de Eric para ser engolida por elas sem qualquer aviso prévio. Só não contava que Logan fosse aparecer justo agora. Sinto todo o meu corpo formigar enquanto ele me encara a espera da resposta para a sua pergunta. Não queria que ele ouvisse o que vivi. Primeiro por vergonha de falar em voz alta que enquanto ele vivia uma vida de contos de fadas a minha mão vivia uma história de terror. Segundo por medo. Medo dele não acreditar em mim como Bill disse muitas vezes que aconteceria quando ameaçava com a polícia. _ O que eu preciso saber, filha? – Repete a pergunta, mas não consigo dizer nada. As palavras parecem ter fugido da minha cabeça. De repente tudo começa a girar, meu corpo parece flutuar, pontos escuros dançam diante dos meus olhos e minhas pernas perdem as forças. Sou amparada por Eric que impede a minha queda e logo Logan se apressa em me erguer nos braços. Estou tão atordoada que não protesto. Apenas respiro fundo tentando me recuperar do m*l-estar enquanto ele me carrega para dentro. _ O que houve? – Chloe pergunta assustada quando ele me coloca deitada no sofá com cuidado. _ Ela se sentiu m*l. – Ele responde arrumando as almofadas sob minha cabeça. – Pode pegar um copo com água para ela, querida. – Pede e ouço seus passos se afastarem apressados. – Respira fundo, filha. – Ele me pede acariciando meu rosto. _ Aqui está a água. – Ela diz estendendo o copo para o marido. _ Consegue sentar, querida? – Pergunta e afirmo lentamente com a cabeça com medo de que qualquer movimento brusco faça a tontura voltar. Com a sua ajuda me sento. Ele me entrega o copo, bebo um pouco da água e depois estico o braço para o colocar sobre a mesinha de centro. _ Está se sentindo melhor? – Ele questiona e assinto. – Ótimo. Será que agora podemos conversar sobre o que vocês dois estavam falando e que eu preciso saber? _ Não foi nada. – Digo tão baixo que m*l consigo ouvir a minha voz. _ Não minta, Amélia. – Fala cruzando os braços. – Se não houvesse nada você não teria passado m*l e não estaria tão nervosa como está agora. _ Você passou m*l, Mia? – Andy pergunta correndo para perto de mim e me abraça tão apertado que me tira quase todo o ar. _ Não foi nada. – Repito acariciando seus cabelos. – Já estou melhor. _ O que acha de irmos jogar videogame lá na minha casa, amigão? – Eric questiona apoiando as mãos sobre seus ombros. – Sua irmã e seus pais precisam conversar. _ Aquelas conversas de gente grande que nunca posso ouvir? _ Essas mesmas. – Eric confirma rindo da cara de desânimo que Andy faz. – Vamos? _ Que jeito. – Diz dando de ombros. – Se cuida. – Pede me dando mais um abraço. Os dois seguem lado a lado até a saída. Sento direito quando ouço o som da porta da frente fechando. Chloe e Logan sentam no sofá de dois lugares e me encaram esperando que comece a falar. Poderia inventar qualquer história, mas não aguento mais guardar isso tudo para mim. _ Quando mamãe começou a namorar com Bill as coisas eram normais. – Começo olhando para as minhas mãos. – Ele até tinha ciúmes dela. Em especial quando ela ia trabalhar ou estava com amigos. Mas nada exagerado ou explosivo. Foi só quando eles se casaram que tudo mudou. _ Como assim mudou? – Pergunta Chloe. _ Ele passou a ser mais agressivo. Mamãe não podia sair de casa se não estivesse com ele. Depois de um tempo exigiu que ela largasse o emprego com a desculpa de que era o homem que deveria cuidar da família. – Falo sentindo cada palavra arranhar minha garganta ao sair. – Um dia ele simplesmente decidiu que tínhamos que nos mudar e sem sequer nos perguntar se queríamos nos arrastou para viver na sua antiga casa. Depois disso as coisas só pioraram. _ Pioraram de que forma? – Logan questiona com um tom de voz pesado. _ Ele começou a nos bater. – Fecho os olhos ao ser atingida em cheio pelas terríveis memórias. – No início eram apenas tapas, mas depois vieram os socos e chutes. Mamãe era a que mais sofria. Já que apanhava mais por tentar me proteger. Mas depois de cada explosão vinha a onda de promessas e ela relevava. Vivemos assim até o dia em que o pior aconteceu. – Digo sentindo o coração apertar. _ O que está tentando dizer, Mia? – Chloe pergunta. _ Que foi ele quem matou a minha mãe. – Digo erguendo o olhar pela primeira vez desde que iniciamos a conversa. _ A polícia disse que foi invasão. – Logan rebate. – Descartaram a violência doméstica depois que o álibi do seu ex padrasto ter sido confirmado. _ Acontece que a polícia não conseguiu falar com a minha mãe, mas eu consegui. Ela estava debilitada, mas conseguiu falar que o Bill estava louco e que... que eu deveria te procurar antes de morrer. – Digo olhando diretamente para ele. _ Você a viu morrer? – Chloe questiona com um olhar horrorizado e assinto. – Meu Deus! – Exclama deixando o seu lugar ao lado do marido para sentar ao meu lado e me abraçar. E ali, envolvida por seus braços, removo a armadura de garota forte e apenas choro entregue a toda a dor que as lembranças me trazem. Chloe sussurra palavras de conforto em meu ouvido enquanto Logan segue calado digerindo o que acabou de escultar. Talvez tenha acreditado em minhas palavras ou simplesmente está me achando uma mentirosa como Bill disse que achariam quando eu contasse o que ele fazia conosco. _ Maldito! – Grita socando o móvel ao lado do sofá me assustando. – Como me deixei enganar por ele? – Fala ao levantar e começa a andar de um lado para o outro passando as mãos na cabeça. – Como fui tão i****a? – Esfrega o rosto com força e descansa as mãos na cintura. – Sei que não acredita em mim, mas eu juro que vou caçar esse homem até no fim do mundo e vou fazer com que pague por tudo o que te fez sofrer. – Diz olhando nos meus olhos. Então agacha diante de mim e segura minhas mãos entre as suas. – Sei que fui o pior pai que você poderia ter, mas te peço que me dê uma segunda chance. Uma chance de concertar tudo o que fiz. Me jogo em seus braços em resposta. Estou cansada de sentir raiva. Estou cansada de carregar todo este fardo sozinha. No fundo Eric tinha razão. Falar com eles fez o peso parecer menor. Volto a chorar, mas dessa vez é alívio. Leva um tempo até conseguir controlar o choro e então me acalmar. Quando por fim as lágrimas cessam por completo sinto a cabeça pesar e doer. _ O que acha de um bom banho? – Chloe sugere acariciando meu rosto. – Assim você relaxa um pouco. _ Pode ser. – Digo com um meio sorriso. _ Daqui a pouco subimos para saber como está se sentindo. – Ela assegura e assinto subindo para o meu quarto. Sigo direto para o banheiro. Atiro minha roupa suada do treino no chão e entro debaixo do chuveiro. Chloe tinha razão. A água morna realmente relaxa meus músculos tensos pelo momento difícil que acabei de passar. Flashes dos últimos dez anos da minha vida rodeiam a minha cabeça a todo instante. Memórias que lutava para não trazer à tona, mas que agora parecem estar ainda mais vivas do que nunca. Assim que passo em frente ao espelho do banheiro vejo que tenho os olhos inchados e o rosto ainda traz resquícios das lágrimas a pouco derramadas. Visto algo confortável e me sento na cama pegando a foto da minha mãe e a abraço apertado contra o peito. Fecho os olhos tentando recordar seu cheiro e a sua voz. Viver com a sua ausência tem sido cada dia mais difícil. _ Posso entrar? – Logan questiona parado próximo a porta com uma xícara nas mãos. Assinto devolvendo a foto ao seu lugar. – A Chloe fez um chá e me mandou trazer para você. _ Valeu. – Digo pegando a xícara que ele me estende. – Pensei que ela fosse subir junto com você. _ Ela disse que iria buscar o seu irmão, mas acho que também queria nos dar um pouco mais de espaço. – Diz sentando ao meu lado. _ Imagino que você queira conversar sobre tudo o que contei a vocês, mas agora não consigo mais falar sobre esse assunto. – Falo encarando a fumaça que sai do chá. _ Acredite. Eu entendo e também não quero falar sobre esse assunto por enquanto. Mas quero pedir que não esconda mais nada de nós. Pode prometer isso? _Posso tentar. _ Já é um começo. – Fala passando o braço sobre meu ombro para ficar mais próximo e deixo minha cabeça cair sobre seu ombro. _ Vai mesmo fazê-lo pagar? _ Por cada lágrima que ele fez vocês duas derramarem. – Garante. _ Obrigada. – Sussurro com a voz embargada. _ Shh! Não precisa agradecer. Eu deveria ter feito isso bem antes. Mas não vamos mais falar sobre isso. Toma o seu chá e tenta dormir um pouco. – Ele deposita um beijo no topo da minha cabeça e então me deixa sozinha. Bebo um pouco do chá e a bebida parece aquecer meu coração e me acalmar por completo. Deixo a xícara sobre o móvel ao lado da cama e me deito encolhida. Não percebo quando adormeci, mas quando acordo o relógio ao lado da minha cama já marca 14hrs e meu estômago ronca um pouco. Ainda desorientada pelo sono fora de hora desço as escadas e encontro toda a família reunida na sala assistindo a um filme de super-heróis. O primeiro a me notar é Andy que salta do sofá e corre para me abraçar. Ainda não me acostumei cem por cento com esses seus gestos, mas mesmo assim retribuo o abraço. _ Por que esse abraço tão apertado? – Pergunto acariciando os seus cabelos. _ Porque eu te amo. – Responde de forma simples, mas que me deixa sem reação. – Agora é a sua vez de dizer que também me ama. – Diz fazendo todos rirem. _ Eu também te amo. – Falo com um sorriso nos lábios. Sorriso que apenas ele consegue provocar em mim. _ Essa cena está lindo, mas imagino que esteja com fome. – Chloe comenta quando Andy por fim solta a minha cintura, mas não sai do meu lado. Assinto em resposta. – Fiz um prato para você e deixei no microondas. É só esquentar. _ Valeu. Aqueço a minha comida e a como na cozinha sendo rondada por Andy, que tenta me convencer a ensiná-lo futebol. E como não consigo negar nada para seus olhos de gatinho pidão acabo cedendo. Depois de lavar a louça que sujei pego a bola que Logan me deu para ajudar com os treinos e vamos jogar no pequeno gramado que temos na frente da nossa casa. Ficamos chutando a bola um para o outro e também faço algumas gracinhas com a bola que o deixam eufórico. Quando entramos estamos imundos e o sol está quase se pondo. Depois de um banho merecido nos sentamos em torno da mesa para jantar e encerramos a noite assistindo a uma animação escolhida por Andy. A hora de dormir me assusta um pouco e demoro um pouco a cair no sono. Tenho uma noite tranquila e sem pesadelos. Pela manhã o clima ainda está meio estranho. Exceto Andrew, ninguém sabe muito bem como agir depois das duras revelações do dia anterior. Estou terminando de comer a minha salada de frutas quando a campainha toca. _ Deve ser o Eric. – Digo recolhendo minha mochila ao lado da mesa e me apresso em direção a porta. Ele está de costas para a porta esfregando as mãos para aplacar o frio, mas se volta em minha direção quando ouve o som da porta sendo fechada. Ele me sorri fraco quando me aproximo e começamos a andar. _ Como você está depois do que rolou ontem? – Pergunta quando já fizemos metade do caminho. _ Estranha. – Digo arrumando a mochila sobre os ombros. – Mas confesso que tinha razão. Foi bom ter contado tudo para o Logan. _ As coisas ainda estão ruins entre vocês? – n**o com um movimento de cabeça. – Então por que ainda o chama de Logan? _ Porque ainda não consigo chamar ele de pai. – Falo dando de ombros. – Acho que vai levar um tempo para conseguir o chamar dessa maneira. – Ele simplesmente assente silencioso. O que é bem incomum para ele. Normalmente ele rebate e tenta me incentivar a fazer qualquer coisa que me aproxime de Logan e restaure a nossa relação mãe e filha. – Você está legal? _ Por que a pergunta? _ É que você está estranho. _ Só estou cansado. – Fala quando finalmente chegamos na escola. – Passei a noite desenhando e só consegui dormir três horas. – Força um sorriso quando subimos as escadas da entrada. Encontramos com Dylan e Jane no corredor dos armários e como de costume Dylan está implicando com Jane, que revira os olhos irritada enquanto ele ri de algo que, com certeza, acabou de falar. Porém o seu riso morre quando encara o amigo. _ Você tá legal, cara? – Pergunta preocupado. _ Sim. Só estou com sono porque passei a noite desenhando. – Repete o que disse para mim a pouco enquanto guarda o livro de álgebra no armário e pega o livro de história. _ Tem certeza? – Insiste Dylan. _ Sim. – Responde fechando a porta do armário ao mesmo tempo que o sinal toca e todos começam a se dirigir as salas. Enquanto seguimos o grupo noto que Dylan e Jane trocam um olhar de preocupação. Durante as aulas os dois se reversam em perguntar como ele está se sentindo. Coisa que o deixa bastante irritado. Na hora do almoço ele m*l encosta na comida e tem um ar cansado e, arrisco dizer, doente. O que deixa os amigos mais preocupados mesmo que agora eles apenas se olhem em silêncio em uma conversa sem palavras. Depois do almoço Dylan tenta convencer o amigo a fugir do treino para jogarem videogame em casa, mas Eric recusa o convite e segue em direção ao ginásio. O treino com as meninas é puxado e ainda precisamos lidar com o gramado molhado e escorregadio. Ao final estamos cobertas de lama. Depois de um bom banho sigo para o ponto de encontro onde Eric me espera encostado na parede. Talvez cansado da demora. Mas o assisto escorregar lentamente até sentar no chão com uma mão sobre o peito e apenas corro ao seu encontro para tentar ajudá-lo.
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