Mia VIII

3141 Words
Voltar a entrar em campo e jogar um pouco de bola, mesmo sendo em um ritmo reduzido, foi maravilhoso. Mas em compensação estou exausta e isso só mostra que ainda preciso entrar em forma. Amanhã tento dar mais do que duas voltas correndo no quarteirão. O teste da equipe de futebol é na próxima semana e quero muito conseguir uma vaga no time. Eu preciso disso. Ainda sonho em conseguir entrar em uma boa universidade com uma bolsa de esportes e depois começar a trabalhar para juntar dinheiro. Agora que não tenho mais o Bill no meu pé posso fazer mais planos como esse. E também não quero depender do Logan por muito tempo. Sei que ele está apenas me tolerando e não vê a hora de se livrar de mim. Só penso em com vou sofrer ao me afastar do meu irmão. O garoto acabou me ganhando o coração pela insistência de sua parte. Meus olhos recaem sobre a foto da minha mãe e pego o porta-retrato. _ Quem diria que um dia teria um irmão. – Falo com um meio sorriso ao sentar na cama. – Queria que a senhora pudesse conhecê-lo. Tenho certeza de que iria amá-lo. Ele é uma graça. – Comento alisando o seu rosto através do vidro fino. – Sinto saudades, mãe. – Abraço a sua foto enquanto me deito encolhida. Fecho os olhos e sinto lágrimas teimosas escorrerem por meu rosto enquanto me esforço para lembrar a voz dela como faço todas as noites, mas com o passar dos dias começo a esquecer e isso me dói mais que qualquer surra que já levei de Bill. Em meio a esse mar de dor acabo adormecendo. A princípio é um sono tranquilo. Estou em meio ao campo jogando com o meu antigo time e mamãe está sorrindo e gritando por mim na arquibancada, mas quando estou prestes a marcar um gol esbarro em uma espécie de paredão e caio no gramado. De repente tudo fica escuro e todos somem exceto o homem que esbarrei. Ergo meus olhos lentamente para ver quem me derrubou. É apenas uma sombra, mas sinto todo o meu corpo tremer quando reconheço aquele sorriso asqueroso. Tento correr e gritar por socorro, mas a voz não sai. Acordo banhada em suor e com o grito preso na garganta. A escuridão do quarto me assusta e tento acender a luz do abajur, mas acabo derrubando o despertador no chão que faz o maior barulho e me assusto ainda mais. _ Filha, o que houve? – Logan questiona ao mesmo tempo que entra no quarto e acende a luz. _ Não foi nada. – Digo com a voz mais alta que um sussurro e o coração tão acelerado que parece que estive correndo uma maratona. _ Como não foi nada? – Pergunta sentando na cama ao meu lado. – Você está pálida e chorando. – Fala e toco meu rosto me dando conta das lágrimas. _ Foi apenas um sonho r**m sem importância. – Minto tentando me recompor. _ Me parece ter sido mais que um pesadelo. – Diz acariciando meu rosto. – Pode falar, filha. _ Por que? – Questiono e ele me olha confuso. – Por que está fingindo que se importa comigo? _ Eu realmente me importo com você. – Afirma cobrindo minhas mãos com as suas, mas me apresso em afastá-lo. _ Não foi o que dez anos de ausência mostraram. – Explodo cansada de guardar tudo para mim. – Você não dá a mínima para mim. Não dava antes e muito menos agora. Sou apenas uma responsabilidade que você aguenta, mas que está contando cada segundo para se livrar e voltar a ter a sua família perfeita de comercial de refrigerante. – Levanto me mantendo longe. _ As coisas não são assim, Amélia. – Diz em tom firme. _ Então, como são? – Falo sem me importar com meu tom de voz elevado. – Vai me dizer que sempre me procurou e que me ama? – Questiono sem esconder a ironia em minha voz. _ Vou dizer que te amo e que, sim, te procurei. – Fala parando na minha frente. – Mas admito que não fiz o bastante. – Diz com os olhos cheios de lágrimas. – Quando me separei da sua mãe e vim para Chicago buscava conseguir algo melhor para te oferecer. Todas as noites ligava para falarmos, mas as coisas começaram a ficar apertadas na academia e as ligações passaram a ter um intervalo de uma semana. _ Até que conheceu a Chloe, começaram a ser uma família feliz e esqueceu de mim. – Completo seu raciocínio. _ Não! – Praticamente grita e me encolho assustada. – Eu nunca esqueci de você. Muito pelo contrário. Quando comecei a namorar a Chloe e vi que as coisas estavam ficando sérias eu fui até lá para te contar e, quem sabe, te trazer para a conhecer, mas quando cheguei a casa onde vivia com sua mãe foi o seu padrasto quem atendeu. Ele fez questão de deixar claro que você estava muito bem com eles, que o via como um pai e que não precisava mais de mim. _ E acreditou nisso? _ Achei que ficar longe seria melhor para você. – Fala e sinto a raiva aumentar em meu peito. – Não sabe quanto me arrependo. – A essa altura ele também chora, mas as suas lágrimas não diminuem minha raiva. – Depois quis te encontrar novamente e correr atrás do tempo perdido, mas vocês não moravam mais lá e ninguém sabia do paradeiro de vocês. De forma involuntária as lembranças do dia da mudança me toma de golpe. Saímos daquela casa apressados. Deixamos amigos, coisas de valor sentimental e uma vida em paz para trás. Lembro de ter chorado por não ter trazido a minha boneca preferida e que isso resultou no primeiro castigo pesado que Bill deu a minha mãe e a mim. _ Comecei uma busca mais intensa com a ajuda de amigos, mas vocês pareciam ter sido tragadas pela terra. – Continua o seu relato. – Foi assim até aquela manhã que recebi a ligação do meu amigo do departamento de Buffalo Grove dizendo o que havia acontecido com você e sua mãe e corri para encontrá-la. _ Chega. – Digo tapando os ouvidos. – Não quero ouvir mais nada. Me deixa sozinha. – Falo apontando a porta ainda aberta. Ele faz menção de se aproximar e tentar falar mais alguma coisa, mas me afasto. – Eu preciso ficar sozinha, por favor. _ Tudo bem. – Ele diz antes de sair. Quando fecho a porta do quarto as lembranças me engolem e as paredes me sufocam. Abro a janela na esperança de que a brisa fria da madrugada me faça sentir melhor, mas não ajuda muito. A angustia ainda aperta meu peito e a conversa com Logan continua a se repetir em minha cabeça. Ele ligava para falar comigo durante a noite e não lembrava disso até o ouvir falar. Acho que de tanto ouvir o Bill falando que ele não queria saber nada de mim apaguei essas ligações da memória. Agora não entendo o motivo dele ter dito ao Logan que eu o via como pai quando podia aproveitar a oportunidade para se livrar da enteada que, segundo ele, só atrapalhava a sua relação com minha mãe. O ar começa a faltar e sinto a necessidade de correr por aí para não pensar em mais nada. Em passos trôpegos calço o tênis largado ao lado da cama e deixo o quarto apressada. Ainda ouço alguém me chamar quando estou perto da porta da frente, mas não paro para ver quem é. Arranco em uma corrida meio desorganizada, mas aos poucos começo a acertar os passos junto com a respiração e assim não penso em nada além disso. Na terceira volta sinto a perna começar a doer e sei que já é hora de parar ou vou colocar a minha recuperação a perder. Vou diminuindo o ritmo de forma gradativa à medida que me aproximo de casa. Os primeiros raios de sol despontam no horizonte quando subo os degraus da varanda e entro ignorando a presença de Chloe e Logan e subo direto para o banheiro para tomar um banho e me vestir para me preparar para o dia na escola. Só quando me dispo para entrar na ducha é que me dou conta de que ainda estava de pijama. A ducha morna faz meus músculos relaxarem e me acalmam. Enrolada em uma toalha deixo o banheiro usando a porta que dá acesso direto ao meu quarto. Visto algo confortável e quente já que uma garoa começa a cair. Desço apenas quando ouço o som a voz animada de Andy. Só mesmo com ele junto consigo enfrentar aqueles dois sem surtar. Me mantenho calada durante todo o café da manhã e continuo assim durante boa parte da manhã. Nem mesmo Jane consegue me fazer falar mais que meia dúzia de palavras quando treinamos chute livre depois da aula. Sigo calada na volta para casa com Eric. _ Você geralmente não costuma falar muito, mas hoje o seu silêncio está diferente. – Eric fala quando chegamos em frente a nossas casas. – Aconteceu alguma coisa? – Fico calada olhando para a rua. – Pode falar comigo. Vai ver que as coisas vão parecer melhores depois de falar. _ Duvido. – Digo ainda com o olhar vago. _ Tenta. – Insiste entrando no meu campo de visão. – Me conta o que aconteceu de errado? _ A minha mãe morreu e agora tenho que viver com um estranho. Foi isso que aconteceu de errado. _ Mas o tio Logan não é um estranho. – Argumenta. – Ele é o seu pai. _ Não. Ele não é o meu pai. Ele perdeu o direito de ser chamado assim por mim quando decidiu me deixar de lado porque teve o orgulho ferido. _ Você não acha que está sendo muito dura com ele? – Pergunta me fazendo rir sem humor. – Ele te ama. Quer correr atrás do tempo perdido. _ Esse é o erro dele. Nada que ele faça pode o fazer recuperar esse tempo. – Digo com um gosto amargo na boca ao lembrar de tudo o que mamãe e eu passamos nas mãos do Bill. – Nada. _ Mas vocês podem viver coisas novas no presente. – Sugere erguendo levemente os ombros. – Podem criar o famoso laço entre pai e filha. _ E o Papai Noel existe e está terminando de arrumar a lista de entregas para o Natal. – Respondo em tom irônico. _ Estou falando sério, Mia. – Diz com o semblante sério. – Você deveria dar uma segunda chance vocês. _ Não consigo. – Falo com prendendo o choro na garganta. – A escolha que ele fez de se manter longe fez dos últimos dez anos os piores da minha vida. Nunca fiz parte desse mundo cor de rosa que você pertence. O meu mundo sempre foi cinza, triste e cheio de dor e medo. – Lágrimas começam a embaçar minha visão. – Não vai ser um simples pedido de desculpas ou um choro de arrependimento que vão apagar esses anos. Ele ainda tenta falar alguma coisa, mas não dou ouvidos. Não preciso o ouvir defendendo o titio querido. Só quero ficar sozinha e quieta no meu canto sem ter que trazer o meu passado à tona a todo momento. O silêncio da casa denuncia que não tem mais ninguém e agradeço mentalmente por não precisar responder a perguntas. Subo direto para o meu quarto, deixo a minha mochila num canto ao lado da minha escrivaninha, tomo um banho rápido e me deito encolhida em minha cama. Sinto a cabeça a ponto de explodir e o cansaço começa a cobrar seu preço. Mesmo com sono resisto. Não quero dormir e ter um novo pesadelo. Já está escuro lá fora quando ouço o som de passos apressados subindo as escadas, que reconheço serem de Andy. É engraçado como ele é o meu oposto. Ele é um menino feliz e sem preocupações enquanto sou a garota que está sempre triste e preocupada com o próximo passo. _ Posso dormir na casa do Matt no sábado depois do jogo? – Pergunta quando chegam ao corredor dos quartos. _ Vou conversar com o papai e se ele concordar aí combino tudo com a mãe do Matt. – Chloe responde parando em frente a porta do meu quarto. – Agora direto para o banho que vou ver como a sua irmã está antes de cuidar do jantar. Viro de costas para a porta quando a vejo girar a maçaneta e fecho os olhos para fugir de uma eventual conversar. Ouço quando se aproxima da cama e sinto o seu olhar sobre mim, mas em nenhum momento abro os olhos. Cerca de dois minutos depois ela sai fechando a porta e respiro aliviada. Sei que em algum momento terei que confrontar a todos, mas agora não consigo e não quero que Andy presencie a uma briga entre o seu pai e eu. Não desço para o jantar. Prefiro ficar no quarto fazendo a lição de casa. Além disso, não tenho apetite. O meu estômago dói e tenho um nó em minha garganta que não se desfaz desde a minha conversa com Logan nessa madrugada que não deixa a comida descer. _ Mia. – Chloe chama antes de abrir a porta do quarto e entra com uma bandeja com comida. Dessa vez não consigo fingir que estou dormindo. – Já que não desceu para o jantar trouxe a sua comida. – Diz colocando a bandeja sobre a cama. _ Não estou com fome. – Digo abraçando minhas pernas e apoiando a cabeça sobre os joelhos. _ Não perguntei se estava com fome ou não. – Responde de modo simples aproximando mais a bandeja de mim. – Você m*l tocou no café da manhã e tenho certeza que também não comeu direito durante o resto do dia. – Fala erguendo o prato de sopa. – Ainda está se recuperando e precisa estar forte para o seu teste na próxima semana. _ Como sabe do teste? – Pergunto cruzando as pernas sobre a cama. _ Vi a data marcada no calendário sobre a sua escrivaninha quando vim guardar as suas roupas. Não sabia que era um segredo. _ Não é. _ Agora vamos deixar de enrolação e comece a comer. – Me estende o prato de sopa que pego sem qualquer ânimo. _ Pode ir, Chloe. Levo tudo para a cozinha quando terminar. _ Vou ficar para ver que vai comer toda a sopa. – Diz com um sorriso que não mostra os dentes. Sem muita escolha levo uma colherada a boca e até que depois da primeira as próximas foram mais fáceis. Ao final resta apenas um pouco de sopa no prato e Chloe me sorri mais abertamente quando deixa o prato vazio sobre a bandeja e me entrega um copo com suco de maçã. _ Agora que comeu pode dormir um pouco. Está acordada desde as três horas da manhã. – Ela fala recolhendo a bandeja para me dar mais espaço na cama. _ Não sei se consigo. – Suspiro me enfiando debaixo das cobertas. _ Sei que sua cabeça deve estar bastante confusa e num misto de sentimentos, mas você precisa dormir. Garanto que as coisas vão parecer um pouco mais calmas quando acordar amanhã. Não existe melhor consolo ou conselheiro que o travesseiro. _ Vou tentar. _ Qualquer coisa pode nos chamar. – Diz antes de me deixar sozinha outra vez. Apenas o abajur está aceso, mas é o mínimo para não deixar o quarto no mais completo breu. Sei que estou bastante crescida para ter medo do escuro, porém não posso evitar. A escuridão traz de volta lembranças que havia enterrado a muito tempo e que agora insistem em perturbar meu sono. _ Posso entrar, Mia? – Andy pergunta com apenas a cabeça para dentro. _ Claro. – Ele não espera muito para entrar e pular na cama ao meu lado. – Veio me dar um beijo de boa noite? _ Não. – n**a ficando de joelhos e sentando sobre as pernas. – Vim saber porque você está triste. – Diz tocando meu rosto. – Não gosto de ver você assim. _ Agradeço a sua preocupação, mas estou bem. – Minto forçando um sorriso. _ Você mente m*l igual o papai. – Comenta com um sorriso sapeca. – Ele também estava triste quando liguei para desejar boa noite, mas quando perguntei ele disse a mesma coisa. – Ele descansa as mãos sobre as minhas. _ Por que ligou para desejar boa noite para ele? _ Hoje é dia dele dar plantão na delegacia. – Responde se arrumando debaixo das cobertas ao meu lado. _ O que está fazendo? _ Me arrumando para dormir. – Diz Como se fosse óbvio. – Prometi ao papai que iria cuidar de você essa noite. Agora deita aqui do meu lado. – Fala e o obedeço sem mais questionamento. No fundo estou gostando de ser cuidada por ele. Ele me abraça e começa a fazer cafuné em minha cabeça. Fecho os olhos aproveitando seu carinho e antes que perceba adormeço. Só que dessa vez não tenho pesadelos. Na verdade, nem mesmo sonho. Acordo apenas quando o despertador toca às seis da manhã para que a gente levante para ir à escola. Acho que desde que cheguei aqui essa é a primeira noite que consigo dormir sem que o fantasma do meu Ex padrasto venha para me assombrar. Estendo a mão para fazer o som irritante quando Andy resmunga algo que não consigo entender enquanto se aninha mais em meus braços. _ Hora de levantar. – Sussurro em seu ouvido. _ Só mais cinco minutinhos, por favor. – Diz em um tom manhoso ao puxar as cobertas até a altura do pescoço. Sorrio para a cena antes de deixar a cama e ir ao banheiro para me arrumar para sair. Antes de descer para procurar alguma coisa para comer volto para o meu quarto e faço Andy acordar. Ele faz um pouco de manha, mas no final deixa a cama e segue para o banho. Chloe está preparando ovos mexidos para o café da manhã quando desço e ajudo colocando a mesa. Não demora e Andy se junta a nós. Chloe me vigia de perto para ter certeza de que estou comendo direito. Só encontro com Logan quando estou de saída para a escola e agradeço mentalmente por não ter que encará-lo agora. Por mais que o choque maior da nossa conversa tenha passado tudo ainda está muito agitado em mim e enquanto estiver me sentindo assim o melhor para todos é que nossos encontros ocorram o mínimo possível.
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