Capítulo 15

2735 Words
Eu tinha outra escolha além de obedecê-lo? O que ele me pedia não era nenhum esforço, pelo contrário, eu estava até animada em ir a algum lugar longe do escritório. Conforme o automóvel acelerava e se aproximava da praia, o cenário foi se modificando. Existiam montes que foram dominados por muitas barracas e casas aglomeradas. Era extremamente pobre. - Por que estas pessoas vivem ali? – perguntei - Aquilo parece ser perigoso. - E realmente é! Depois das reformas, muitas pessoas que moravam em cortiços e acampamentos foram expulsas, enquanto suas casas foram destruídas. Não tinham outra opção senão buscar abrigo noutro lugar já que os aluguéis aumentaram muito depois disso. - explicou ele. Eu apenas assentia, pois não sabia o que comentar depois do que ele dissera. - Acho que chegamos. - declarou encostando o automóvel em um lugar seguro. O Sol estava escaldante e a praia estava totalmente deserta. Com o passar dos dias eu imaginei que uma hora me acostumaria, mas não tinha acostumado e tão pouco achava que iria. Tínhamos acabado de descer em uma praia e o calor mais parecia um fogaréu. - A senhorita, provavelmente, não conheceu o Rio de Janeiro de fato. Apesar de ser gentilmente conhecido como túmulo dos estrangeiros, é um belíssimo lugar! Então tomei a liberdade de apresentá-la antes que a mesma se arruíne. - disse ele estendendo a mão para que eu pudesse descer. - Oh Mio! É realmente muito lindo! - e quente também, quase acrescentei. - Sim, Ipanema é linda. - disse ele me acompanhando na caminhada até a baía da praia. - Diga-me, a senhorita é italiana, não é? - Sim! Como descobriu meu segredo? - disse sarcástica. - Não foi tão difícil assim. - deu de ombros. - Além do seu sotaque, eu a vi comendo aqueles deliciosos biscoitos no vagão e a senhorita fez um movimento assim. - ele juntou as pontas dos dedos e movimentou o pulso para frente e para trás. - Só havia visto este gesto na própria Itália. - explicou parecendo orgulhoso da descoberta. - Tenho que começar a me vigiar para que o meu "segredo" não seja revelado. - comentei irônica. - Mas, me conte Srta. Bella como sua família chegou a este território? - perguntou curioso. - Bem… Minha família chegou ao Brasil quando eu tinha treze anos. Meu pai estava muito animado com a biodiversidade desse país e como todo botânico, queria estudá-lo. Isso deu tão certo que estamos aqui até hoje. - Entendo… -fez uma breve pausa e prosseguiu - Então... Meu pai me contou que está aqui para tentar publicar seu livro, não é? - Sim. - respondi. - Me desculpe senhorita, mas não sei muito sobre sua obra. Não quero que me conte a história, pois gostaria muito de lê-lo assim que possível. Mas, por favor, me conte o porquê resolveu escrevê-lo, e o que a inspirou para criar uma história tão criativa? - questionou muito interessado. - Então… - comecei a explicar o dia em que vi meu irmão brincar e a história surgiu. Por fim, acrescentei: - Apesar de não poder ouvir, é pelos olhos que Luca fala. Quando eu percebi o quanto ele queria aprender alguma forma de se expressar, eu comecei a escrever. Sei que não tem muito a ver, mas eu criei um personagem, que na verdade era Luca, só que ele podia falar e se expressar normalmente em seu planeta. Quando ele veio a terra ele perdeu a voz e também não compreendia a língua que era falada. Apenas conseguia compreender o que uma menina dizia. - Fez isso para que seu irmão se sentisse como o garotinho, não é? - Exatamente! No início eram apenas contos, mas a história começou a se desenvolver até se tornar um livro. - concluí. - E não surgiu nenhuma proposta de publicação em São Paulo? - perguntou. Expliquei a ele sobre a oferta que havia recebido e também sobre a história do desaparecimento. Conforme eu respondia às suas perguntas, me dei conta de que aquilo parecia tão irreal que era como se eu estivesse contando a história de outra pessoa. De alguma forma todos aqueles acontecimentos tinham sido guardados em uma parte da memória que ficava escondida. Não era como se eu tivesse me esquecido tudo o que ocorrera muito menos a parte do meu pai não estar mais presente, mas era como se essas memórias me trouxessem um sentimento tão pesaroso que simplesmente eram evitadas. Afinal de contas, foram por causa delas que meu pai nunca me veria se casar, nunca veria Luca crescer ou seus netos. - Eu sinto muito que tenha passado por isso. Sinto mesmo Bella! - disse Tomás me tirando do devaneio. Eu apenas assenti com um amável sorriso. Um breve silêncio tomou a cena enquanto caminhávamos pela areia observando as ondas se quebrarem. Então, dessa vez, eu resolvi quebra-lo. - Agora me conte do senhor. Por que tem o sobrenome Marks se seu pai se chama Ernesto Silva? - curiosa. - Bem, é uma longa história. - declarou. - Eu tenho tempo. - disse enquanto olhava o relógio no bolso. - Bem, Ernesto Silva me adotou quando eu tinha cinco anos. Pelo que eu me lembro, minha mãe cuidava de mim sozinha. Ela era americana e, depois que meu pai faleceu, perdeu tudo. Então, veio ao Brasil na tentativa de recomeçar. - Tomás ficou em silêncio por alguns segundos até prosseguir. - Infelizmente alguns dias depois do desembarque, a doença começou a se manifestar. - O que era? - perguntei. - Cólera. – respondeu. - Minha mãe trabalhava muito para poder me sustentar e escondeu os sintomas. Em menos de uma semana, ela se foi. - Ele tentou não demonstrar tristeza, mas não conseguiu. - Fugi de casa e fui morar nas ruas. - ele fez uma pausa enquanto observava as ondas se quebrarem. - Durante uma de suas entrevistas, Ernesto me encontrou sentado numa calçada embaixo da chuva. Ele me levou para sua casa, me deu abrigo, comida e... - fez uma pausa. - Me deu amor. Não sei se ele tinha a intenção de ficar comigo, mas em dias já me chamava de filho. - ele abriu um sorriso de gratidão. - Ernesto foi como um anjo para mim cuidou de mim como se eu fosse seu. - terminou tentando esconder os olhos marejados. - Mas você de fato é. - fiz uma pausa para enxugar as lágrimas. - Apesar de não ter sido gerado no ventre da mãe que cuidou de você e não carregar os traços do restante da sua família, o senhor continua sendo um filho. - conclui. Ele intercalou o olhar entre as minhas órbitas com tanta intensidade que eu precisei me certificar que estava mesmo respirando, colocando a mão sob o pulmão. Ao fazer isso, ele pareceu despertar do transe. - Bom… Agora chega de assuntos tristes. - e olhou ao redor como se tivesse uma ideia. - Não viemos aqui para isso. - declarou com duas covinhas fincadas na face. - E viemos aqui para quê, então? - perguntei. - Bom… Não se pode aproveitar uma praia, sem… - e olhou para mim como se eu tivesse entendido a que estava se referindo. - Sem o quê? - questionei, preocupada. - Tire seus sapatos! - disse ele, fazendo o que me mandara. - Como assim? Eu não posso tirar o sapato no meio do nada. "Ele estava ficando louco?" - Vamos, ouça-me pelo menos uma vez pode ser?! - disse ele tirando o casaco. "Ele já estava abusando da autoridade". Eu bufava enquanto retirava os sapatos, irritada. - Senhor, eu… - e então o impaciente se abaixou. - O que está fazendo? - perguntei tentando fazê-lo parar de mexer nos meus pés. - Estou tentando tirar os seus sapatos. - comentou, como se aquilo fosse algo normal e prudente a se fazer. - Pare com isso! - disse incomodada. - Vamos senhorita! Faça o que eu estou pedindo, eu prometo que não vai se arrepender. - suplicou. Ele já estava abusando da autoridade e algo me dizia que não era uma boa ideia, mesmo irritada com o pedido e com vontade de tacar meus sapatos na cabeça dele, eu o obedeci. Desamarrei os cordões e me abaixei ao máximo para não deixar que nada acima do tornozelo aparecesse. Quando meus pés encontraram a areia pegajosa, era como se estivessem pisando em brasas. Foi instantâneo, saí correndo até o mar, puxando a saia volumosa até os joelhos. Olhei ao redor para ver se alguém havia notado minha exposição, mas tudo que eu vi foi a criatura peculiar do meu chefe se aproximar com as mangas da camisa de linho e a barra da calça dobrada. Dando-lhe um ar rústico e camponês, que eu deveria admitir ter lhe caído muito bem. - E então Srta. Bella, o que achou? "O impertinente do meu chefe estava achando graça daquela situação?" - O que o senhor espera que eu ache após quase derreter a sola do pé nesta areia em chamas? - eu estava tão irritada que falei como um tiro. - Aproveite o momento. - dizia ele com um sorriso travesso, segurando o riso. - Aproveitar o quê? A sola do pé queimada e um vestido encharcado? - conseguia sentir inclusive uma parte das anáguas já molhadas. “Ótimo!” - Não está tanto assim. - disse me analisando como se planejasse algo. Então, o atrevido começou a jogar água salgada em mim. Na hora nem pensei em como faria para sair dali, pois meu vestido parecia trajes de banho, havia respingos no corpete, no cabelo e até no rosto. Tomás parecia conseguir segurar dois litros de água a cada vez que ele abastecia suas mãos, e atirava em mim sem pudor. - Agora você vai ter o que merece! - disse rindo. Esqueci todas as etiquetas e classes sociais e só o que me importava era retribuir a ação. Por fim, atirei tanta água que ele caiu se molhando por inteiro. "Ótimo" - comemorava. Pelo menos não seria a única a passar vergonha ali, se é que o louco do meu chefe conhecia tal significado. - Srta. Antonella Bella Valentini...- disse com um sorriso malévolo e as obsidianas brilhando como nunca - A senhorita não sabe com quem está lidando. - declarou se aproximando como uma pantera. - É o senhor que não sabe com quem es... - não consegui terminar a frase, pois ele se jogou sobre mim de forma que todo meu corpo submergiu, exceto meu rosto, até meu penteado se desfez sobre a água. Porém seu movimento parecia ter sido friamente calculado, pois nenhum m****o se chocou contra o solo. Eu caí delicada como uma folha de encontro ao mar. Quando abri meus olhos para ver o estrago que ele fizera no meu vestido, paralisei ao me deparar com seu lindo rosto me encarando. Ele estava tão próximo que a ponta gélida do meu nariz tocou a sua pele quente e úmida. Foi como um feitiço, e não conseguia parar de encarar os intensos olhos de obsidiana, negros como o céu noturno do campo. Os raios de sol do entardecer se emolduravam ao seu rosto molhado, enquanto que a brisa gélida soprava seus fios úmidos e desalinhados como notas numa partitura. Aquilo fez algo se agitar em meu peito, se inflamando próximo ao coração e irradiando até a clavícula. Eu não parava de engolir em seco. Meu coração parou quando Tomás subiu os cantos de seus lábios e me deu o mais inebriante sorriso. Não era um daqueles sorrisos divertidos. Aquilo era raro e totalmente diferente dos outros que ele havia me lançado, tão precioso como nenhum outro jamais chegou a ser. Em um movimento espontâneo, o dorso dos meus dedos percorreu a linha de seu maxilar trincado, enquanto ele delicadamente enroscou os dedos calejados da escrita nos fios encharcados do meu cabelo. Ele me olhava com uma intensidade tão hipnotizante que eu parecia não conseguir respirar. -Bella… - disse ele trazendo sutilmente minha face para mais próximo. Naquele momento um nó se formou e um arrepio quente percorreu cada centímetro de mim. Ele estava tão próximo que eu conseguia sentir sobre os lábios sua respiração quente entrecortada. Quando meus olhos se fecharam em espera pelos... - Sr. Marks? - perguntou um senhor se aproximando de nós e quebrando o encanto. Até aquele segundo eu não me dera conta do que eu estava prestes a fazer. "Eu iria beijar o meu chefe?" - Oh Mio! - murmurei pasma - Desculpe senhor! - disse desvencilhando-me dele rapidamente, enquanto ele ainda permanecia na mesma posição como se não compreendesse o que acabara de ocorrer. "Eu seria demitida, era isso!" - Eu... Eu… - nada parecia coerente. - Está tudo bem. - disse ele para algum de nós. Mas parecia que estava falando para si mesmo. - Venha senhorita! - ele se levantou e me estendeu a mão para que saíssemos da margem. - Desculpe atrapalhar Sr. Marks! Mas quando o vi passeando por perto, não pude deixar de cumprimentá-lo. - disse o homem idoso com um jornal embaixo dos braços, me olhando como se meu pai tivesse presenciado a cena. - Não se preocupe Sr. Nunes! É sempre um prazer reencontrá-lo. - ele olhou para mim. - Quero que conheça a Srta. Valentini. - terminou apontando para mim sorrindo como se dissesse: “Está tudo bem!” - Muito prazer Srta. Valentini. - respondeu o homem dando uma piscadela a Tomás. - Sua nova noiva Sr. Marks? Quando o idoso disse aquilo senti até as unhas corarem. “Como assim nova noiva?” - Hã?... - olhei para Tomás e ele estava roxo como rabanete. Pelo visto eu não era a única a demonstrar facilmente a vergonha. - Não Sr. Nunes, Srta. Valentini é escritora e está sendo de grande ajuda ao jornal! - disse ele tentando manter sua compostura e leveza. - Entendo! - Sr. Nunes me analisou da cabeça aos pés. Neste momento minhas bochechas ardiam tanto que eu não sabia distinguir se era do sol ou do constrangimento. - Bom, não quero tomar mais o tempo de vocês. Tenham uma boa tarde! - e voltou para o seu percurso. - Para o senhor também. - despediu Tomás. Depois de alguns segundos ele voltou os olhos para mim. - Sinto muito Bella! Estes senhores gostam muito das colunas que escrevo e sempre me cumprimentam. Ele não falou por m*l. - declarou me oferecendo o braço para me acompanhar de volta para o automóvel. - Não se preocupe - eu disse dando tapinhas em seu braço de reconforto e evitando olhar para ele. - Quer que eu pegue emprestado um dos vestidos da minha irmã? - perguntou apontando para meus trajes. - Não. É melhor eu não ficar circulando pela cidade com essa aparência. Talvez eu consiga passar despercebida e ninguém de casa note que eu estou assim. - Não se preocupe com a sua aparência. A senhorita nunca terá problema com isso. - disse ele enquanto eu fingia ter me distraído com algo além do seu comentário. Tomás não disse nada durante todo o caminho. Ele parecia estar perdido nos próprios pensamentos durante o trajeto inteiro, às vezes eu conseguia sentir seu olhar sobre mim enquanto eu olhava a cidade pela janela. Era estranho sentir aquela sensação de ter a certeza que ele estava me encarando, foi assim desde primeira vez que nos conhecemos e apenas se intensificou com o passar dos dias, exceto quando ele não estava no escritório. Quando chegamos Tomás saiu primeiro do veículo e abriu a porta para mim. - Desculpe pelos meus modos Srta. Bella! - disse ele me oferecendo sua mão para que eu pudesse descer com facilidade da geringonça. Ele lançava um daqueles sorrisos tão gentis que não tinha como não perdoá-lo. - Não precisa se desculpar. - declarei tentando sair o mais rápido possível de sua presença e daquelas covinhas. - Muito obrigada pela belíssima tarde senhorita. - disse ele, enquanto eu assentia. Fiquei observando ele indo embora e constatei que as situações com Tomás estavam tomando proporções cada vez mais constrangedoras e comprometedoras. Por muito menos, muitas mulheres precisavam se envolver em um matrimônio e eu com certeza não estava pronta para isso, ainda mais com Tomás. Eu tinha que tomar mais cuidado quando estivesse perto dele ou então logo estaria arruinada.
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