Capítulo 16

2838 Words
Luno saira correndo, pois estava perdido no meio do nada. Ele olhou para os lados e tudo o que avistou foi uma casa. Não pensou duas vezes e saiu em disparate. (Trecho do livro Pequeno Guerreiro da Lua, grande valente terrestre, de Antonella Bella Valentini). ∞∞∞ Tomás me deixou em casa às quatro e meia, antes da Srta. Jade sair. Sra. Augusta ficou horrorizada ao ver meu estado. Ela estava do outro lado da calçada, provavelmente retornando de sua farmácia. Quando nos encontramos, ao invés de me dar um sermão, ela apenas riu juntamente com o coro de gargalhadas das crianças que me olhavam pela janela. Ao que parecia, o mundo já não precisava inventar mais piadas, pois diante de mim todas elas perderam a graça. - Olhem só a Srta. Antonella parece uma sereia! -disse Elizabeth rindo tanto que se contorcia. - Não. Ela está parecendo mais com um marinheiro que perdeu o seu barco para os peixes! - pontuou Charlotte, “gentilmente”. - Não! Ela está parecendo com um terrível monstro do mar! - comentou David, colocando a mão sobre a barriga. - Só faltaram as barbatanas! - acrescentou Manuel se segurando sobre o batente da janela para se equilibrar. Augusta tentara repreender seus filhos, mas ela não conseguia sair da crise de risos que se intensificava a cada comentário. Eu estava me repreendendo internamente durante todo o trajeto até o quarto. Entrei e fui direto à banheira para me lavar. Antes, paralisei ao ver meu reflexo sobre o espelho. Estava milhares de vezes pior do que Tomás. Ninguém deveria ter me visto naquela situação, nem mesmo as crianças que, na verdade, tinham sido até bondosas com suas observações. Meu vestido pesava uma tonelada, havia areia em todos os lugares e minha pele estava grudenta, salgada e suja. Se eu encontrasse um molusco do mar no meu cabelo não ficaria tão horrorizada quanto Jade ficou ao ver meu estado. Precisaria ajudá-la a lavar aqueles trajes o quanto antes, pois ela não merecia passar por aquilo. - Srta. Valentini, gostaria que eu a ajudasse a se lavar? - perguntava-me Jade, ainda horrorizada com meu estado infantilizado. - Pode me chamar apenas de Ella senhorita. – declarei - E sim, gostaria que me ajudasse, por favor. - Nesse caso a senhorita pode me chamar apenas de Jade. - disse ela rindo e me ajudando com o vestido que soltava areia por em todos os lugares. - Obrigada Jade. - enquanto ela soltava meu cabelo, perguntei. - Posso lhe fazer uma pergunta pessoal? - ela assentiu. - Você é muito nova para ser uma dama de companhia. - fiz uma pausa. - O que aconteceu? - Bem… eu me casei muito cedo. Demorei a perceber que havia sido a pior decisão. - declarou enquanto tentava desembaraçar meu cabelo e desistindo ao ver que seria uma batalha invencível. - Por quê? - perguntei - Ele não era agressivo no início, e nós discutíamos às vezes quando ele voltava bêbado. Isso foi antes de nos casarmos. Ele me prometeu que iria parar de beber, mas quando enfim nos casamos ficou pior. - ela fez uma pausa. - Nem todos os dias eram ruins. Na verdade eram três dias maravilhosos e depois uma recaída. - ela estava falando, mas parecia que não estava ali. - Até que as coisas pioraram e ele começou a ficar agressivo comigo. - Sinto muitíssimo Jade. - fiquei em silêncio por alguns minutos enquanto ela ainda parecia reviver suas memórias - Desculpe perguntar, mas o que aconteceu depois? - Ele se envolveu numa briga e acabou falecendo. - ela fez uma pausa e explicou: - Nós não tínhamos filhos nem dinheiro. Após sua morte precisei vender minha casa e procurar emprego, pois minha família trabalhava em uma fazenda e vivia com a mesada que eu os enviava. Foi então que eu conheci a Sra. Augusta. Ela foi como um anjo me oferecendo comida, um quarto espaçoso e um salário muito maior em comparação com os outros lugares que eu havia procurado. Em troca eu preciso ajudá-la com a senhorita e as crianças e de vez em quando ela pede que eu a ajude com a farmácia. Mas faço isso com muito carinho, pois tudo o que ela tem feito para mim é algo que eu não posso retribuir. - concluiu. - Eu também nunca poderei retribuir. Ela tem me acolhido como uma mãe. - fiz uma pausa e prossegui. - Mas voltando ao que você dissera saiba que sinto muito mesmo. - e segurei suas mãos - Uma hora a situação vai melhorar para você Jade! - Elas já melhoraram. - disse ela. "Eu tinha que andar mais com aquela mulher, precisava aprender a ser forte como ela." - Obrigada por compartilhar isso comigo. - disse. - Sem problemas Srta. Ella! - Jade fez uma pausa parecendo se lembrar de algo. - Esqueci-me de avisa-la. Chegaram duas correspondências à senhorita. Antes de sair, ela as colocou em cima da mesa de canto enquanto eu terminava de me lavar. Durante o banho fiquei pensando em Tomás. Afinal de contas, como eu deixara chegar àquela situação desagradável? Onde eu estava com a cabeça quando eu quase o beijei? Além disso, eu nunca tinha ficado tão próximo de beijar alguém, muito menos um chefe. “Eu estava perdida!” Eu teria que me comprometer comigo mesma a não me deixar levar por aqueles olhos de obsidiana, teria que ser séria e profissional. Fora isso, eu ainda estava na estaca zero em relação a publicação do livro, pois Ernesto nunca parecia ir ao jornal, durante as duas semanas eu só o vira uma vez e ele saiu depois de dez minutos. No final, eu concluí que teria que articular um plano para me livrar das obsidianas de Tomás e conversar com Ernesto o mais rápido possível. Entretanto, aquele banho tinha sido tão relaxante que eu acabei adormecendo logo que terminei de me arrumar, esquecendo-me completamente das cartas e de criar um plano. O único que me viera à mente naquele momento havia sido me aprumar naquelas cobertas brancas, aconchegantes e macias, provando se eram realmente como pareciam ser. ... No dia seguinte, eu acordei muito cedo, pois meu rosto ardia como se tivesse passado pelo fogo. Levantei da cama rapidamente, deixando os cobertores caírem sob o chão e fui ao espelho para ver o que havia acontecido. "Oh Mio!" - exclamei ao me deparar com meu rosto totalmente queimado pelo sol, vermelho como uma pimenta. Olhei para o restante do corpo e apenas as mãos estava assim, o que me fez agradecer por não estar sentindo aquela dor nos outros membros. Por alguma intervenção milagrosa, no dia anterior eu havia escolhido um dos vestidos de Ana que era fresco e ao mesmo tempo coberto em todas as partes. Ao pensar nela me lembrei das cartas que não havia lido na noite anterior. "Talvez uma delas tenha sido de Ana". - pensei. As peguei sobre o aparador e como previra uma era de Ana e outra de Luigi. Eu não havia recebido nenhuma correspondência deles antes, apenas uma da minha mãe, então eu estava desesperadamente ansiosa para lê-las. Abri primeiro a de Luigi. ∞∞∞ Outubro de 1904, São Paulo Querida Ella, Fico feliz que esteja cumprindo com o combinado e não saindo de casa sem o canivete ou sem sua dama de companhia. Você quis saber como estão as coisas aqui e sinto dizer que não anda tão animadas quanto com a sua presença. Exceto durante as refeições que sobram mais comida agora que você não está mais aqui. O que me faz comemorar todos os dias sua partida. (Estou sendo sarcástico). Luca sempre fica no seu quarto quando Srta. Ana não está lá. Gostaria de informá-la que sua amiga tem vindo com demasiada frequência para esta casa, o que tem sido excepcional, pois temos mais companhia agora que a casa parece vazia. Srta. Ana sofreu muito com sua ausência, a moça ficou três dias sem sair do seu quarto. A propósito, sabe quais são as flores favoritas dela? Não que eu esteja interessado em cortejá-la, apenas quero fazer isso, pois ela tem sido de grande ajuda para Luca e mamãe que estão ainda muito tristes com sua partida. No mais, fico feliz que esteja bem e progredindo no trabalho. Caso as coisas fiquem difíceis lembre-se que é valente como uma Valentini! Não deixe de me manter informado quanto a sua situação. Com amor, Luigi Valentini ∞∞∞ Algum dia a mais sem você de Outubro de 1904, São Paulo Caríssima Ella Bella, A senhorita não poderia me deixar mais entretida como deixara com sua última carta. Quando terminei de lê-la a única coisa que soube dizer foi: minha nossa! (Várias vezes, devo acrescentar.) Não posso acreditar que o libertino do trem era seu chefe. Que azar! Como se sente em relação a isso? Devo alertá-la que esse tipo de homem tem a fama de enganar as mulheres facilmente. Então, nem pense em considerá-lo como um pretendente! Além disso, Ella, a senhorita não podia me alegrar mais ao dizer que meu leque e os vestidos a ajudaram. A propósito, ainda devo me preocupar com seu estado de saúde? Acredito que durante o tempo de envio já deva ter se recuperado não é? Bom, as circunstâncias aqui não vão muito agitadas como aí. Luigi tem me ajudado muito, principalmente nos primeiros dias após sua partida, ele tem se mostrado ser um verdadeiro cavalheiro, gentil e muito amável. Mas isso não deve encher sua imaginação de situações totalmente improváveis (sabe do que eu estou falando). Enfim, não deixe de me contar mais sobre o que está vivendo aí, quero saber de tudo! E devo solicitar que insira mais detalhes as suas correspondências, pois simplesmente dizer “Ele me chamou de ladra!” e não explicar direito o que ocorrera é uma das piores formas de torturar uma amiga tão próxima, sabe disso! Antes que eu me esqueça, Luca fez um desenho para você. Está dentro do envelope da carta. Sei que não devo desejar isso, mas todos os dias espero que volte logo para casa, pois a saudade só inflama, como uma ferida aberta (Não estou sendo dramática!) e espero que esteja sentindo um décimo da falta que você me faz, pois seria injustiça ter esta dor só para mim. Sua irmã/ amiga, Ana Bakker ∞∞∞ Terminei de ler rindo e chorando ao mesmo tempo. Luca tinha feito um desenho de uma flor de margarida, da onde saíam dois braços e duas pernas do tronco, com uma seta indicando: Ella. Só pude supor que ele havia me retratado. O que me fez sentir a saudade se inflamar no meu peito. Fiquei passando o dorso dos dedos sobre as curvaturas das linhas irregulares, tentando imaginar como se estivesse ao seu lado. Já as cartas de Ana e Luigi me fizeram sentir o cheiro de casa novamente, apesar de terem demorado semanas para chegarem. Os dois estavam se dando muito bem, eles tinham me impedido de imaginá-los juntos, mas meu cérebro já estava planejando o arranjo das mesas do casamento. Era impossível não imaginar depois daquelas quase declarações de amor. Minhas mãos já estavam formigando para respondê-los. Era domingo e eu não tinha que trabalhar, então escrevi sem parar por quase uma hora e meia, até que alguém bateu à porta. - Srta. Ella? - chamava-me Jade. - Bom dia Jade. - disse sorridente enquanto ela parecia ter visto uma assombração ao se deparar com as queimadas do meu rosto. - A senhorita está bem? - perguntou. - Estou! Apenas com o rosto um pouco dolorido. - dei de ombros. - Sinto muito! - fez uma pausa. - A senhorita gostaria de se juntar aos outros no café? Devo informá-la que tem uma visita á sua espera. - Claro! Eu já vou descer. - respondi e ela assentiu. Arrumei-me em menos de cinco minutos. Apesar de ter acordado antes de todos da casa, eu havia me atrasado para o café da manhã, o que eu descobrira que atrasar era um dos meus piores defeitos, pois Nikolai já estava na segunda página de advertências a mim. Ele fazia questão de anotar, mesmo se eu demorasse apenas um minuto a mais. Pensar nele me fez chegar mais rápido a sala do que notícias ruins, pois eu só queria não ter que pensar nele em pleno domingo. Ao chegar à sala de jantar Romeu e Augusta estavam conversando enquanto tomavam o café da manhã. Já as crianças estavam numa pequena guerra de alimentos e constatei que isso já tinha se tornado rotina, mesmo Augusta tentando detê-los. - Bom dia senhores! - disse avisando minha chegada. - Bom dia Srta. Ella! - cumprimentaram em uníssono. - Srta. Ella, eu espero que não se incomode em me receber nesta manhã. - disse Romeu. - Claro que não Sr. Gatti. Fico muito feliz em vê-lo. Como tem sido as reuniões com o conselho de medicina? - perguntei me sentando. - Infelizmente não sou autorizado em compartilhar os assuntos da reunião, Srta. Ella, mas... - fez uma pausa. - Tem se discutido muito a vacinação contra varíola. Além disso, tem se levantado várias propostas para controlar a disseminação de outras enfermidades. - explicou levando o pão com manteiga a boca. "Ele não disse que não era autorizado a falar?" - Sim! É o que mais se discute no jornal também. - fiz uma pausa. – Dra. Augusta, por que não foi à reunião? - Era apenas para alguns convidados, senhorita. - ela ficou pensativa. - Talvez tenha sido até melhor assim, pois essa semana a farmácia esteve muito movimentada, precisei até que a Srta. Jade me ajudasse. - Esta cidade parece imersa em doenças. Pelo que constam os dados os números, só dos casos de varíola aumentam a cada dia, fora a febre amarela e a gripe. - comentou Romeu. - Logo, com a aprovação da lei este lugar se tornará uma verdadeira tormenta. - declarei. - Sim, com certeza! - disse Augusta. Um longo silêncio se perdurou por alguns minutos e tudo que se podia ouvir eram os barulhos das porcelanas com os talheres. Até que Romeu decidiu quebrá-lo. - Como está indo o trabalho Srta. Ella? - perguntou ele. - Bastante agitado devo comentar, mas muito diferente de tudo o que eu havia imaginado. Não de uma forma r**m, mas diferente. - fiz uma pausa. - Até agora eles não solicitaram que meu livro fosse analisado. – declarei. - Ainda não Ella? - perguntou Augusta parecendo um pouco decepcionada. - Não, infelizmente. Acho que vou tomar coragem e tentar falar com Sr. Ernesto nessa semana. “Ou talvez na semana seguinte...” Já tinha ensaiado milhares de vezes o que eu deveria falar para que Ernesto me desse um pouco de sua atenção, mas ele nunca parava no escritório e quando estava lá logo saía. E nenhum momento parecia ser o certo para começar um diálogo. - Entendo. - disse ela. - Sinto muito Ella, espero que uma hora eles possam cumprir suas promessas. - ele me encarou e pareceu preocupado de repente. - Aconteceu alguma coisa senhorita?- perguntou apontando para o meu rosto. - Ha… Não é nada! Só fiquei um pouco a mais no sol. Devo tentar me proteger mais das próximas vezes. - disse enquanto Dra. Augusta discutia civilizadamente com um dos filhos. Pelo que parecera era a terceira vez na semana que Charlotte e David ficavam de castigo. - Devo admitir que essas queimaduras acentuaram sua beleza. - disse Romeu, enquanto eu enrubescia. Pelo menos aquelas marcas no rosto teriam alguma serventia ao esconder minha facilidade em me constranger. - Realmente está muito bonita senhorita!- disse Dra. Augusta, limpando a gola do filho. - Só lembre-se de hidratar bem a pele para não ressecar mais. Se quiser, pode ir até a farmácia com a Srta. Jade e buscar alguma pomada para o seu rosto. Mas recomendo que não saia muito para não piorar se expondo mais ao sol. - Sim. Se quiser podemos ir agora mesmo. Posso levá-las e trazê-las o quanto antes. - disse Romeu. - Não se preocupem! Eu vou ficar bem. Nem eu mesma sabia se aquilo realmente ficaria bem, pois não parava de arder e cada vez que eu falava ou movimentava a face parecia que minha pele se rachava pouco a pouco chegando a pinicar. - Se o senhor não se importar, acho melhor apenas a Srta. Jade acompanhá-lo, pois ela sabe onde tudo fica guardado e a Srta. Ella não pode se expor mais ao sol. - comentou Augusta. - Tem razão doutora. Se a Srta. Jade estiver de acordo, é claro. Então Jade e Romeu foram à farmácia e alguns minutos depois voltaram com muitas pomadas e óleos. Achei aquilo um pouco exagerado, mas passei tudo, chegando a parecer um fantasma com a face totalmente branca e gosmenta. Todas as Ladies viviam perfeitamente arrumadas, mas como eu não era uma "Lady" não tinha problema viver quase sempre imperfeitamente arrumada.
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