Lissa avistou de longe alguém se aproximando. Um menino? Uma criança? Ela ainda não podia responder essas perguntas, pois o indivíduo ainda estava muito longe para defini-lo. (Trecho do livro Pequeno Guerreiro da Lua, grande valente terrestre, de Antonella Bella Valentini).
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- Srta. Valentini? - chamava-me Carlota, uma amiga de trabalho - O Sr. Marks gostaria de falar com a senhorita - disse ela.
Carlota tinha um estilo vulgar, mas parecia ser uma boa pessoa. Era a única que conversava comigo no escritório.
Eu estava a duas semanas trabalhando e nenhuma outra mulher tentara sequer iniciar uma conversa, elas se afastavam e demonstravam indiferença.
"Tudo bem." - pensava.
Eu não estava ali para fazer amigos.
Meu humor ia de m*l a pior, pois as duas semanas foram tremendamente horríveis e no sentido mais profundo da palavra.
Meu chefe temporário tinha me humilhado de todas as formas possíveis. Havia gritado insultos pelo escritório inteiro e faltava pisar sobre mim como se eu fosse um carpete. Nunca havia visto tamanha falta de educação e ignorância em uma só pessoa, sem contar quando ele ficava me olhando de forma estranha, me analisando de cima a baixo.
No entanto, minha alegria e meu bom ânimo retornaram juntamente com o tão esperado e verdadeiro chefe: Tomás Marks. Fui em direção à sala de Tomás, como se estivesse caminhando para liberdade.
Quando cheguei, constatei que ele não parecia estar muito feliz, na verdade, estava bem irritado, assim como Nikolai Alves.
- O senhor não publicará isso! - cuspiu Nikolai apontando o dedo para o rosto de Tomás, que estava com os braços cruzados demonstrando indiferença para com a atitude infantilizada de Nikolai.
O s*******o passou por mim como se fosse me atropelar, o que já era de costume.
- Sr. Marks - chamei com o sorriso mais feliz que eu já fizera ao ver alguém - Gostaria de falar comigo? - perguntei entusiasmada.
- Olá Srta. Bella! - disse com o semblante irritado se amenizando - Como passou os dias enquanto eu estive fora? - perguntou por trás da mesa.
Ele me lançava suas obsidianas, as quais eu estava morrendo de saudades.
- Da pior maneira possível! - respondi ainda sorrindo.
- Não parece ter sido tão r**m assim. A senhorita parece muito contente! Como eu nunca a vi antes. - disse ele saindo por detrás da mesa e se aproximando com duas vírgulas na bochecha.
- Bom… O fato de eu estar tão feliz em revê-lo já demonstra que as semanas foram terríveis! - levantei as mãos em protesto - Sem querer ofender! - disse sarcástica, enquanto ele me deu aquela gargalhada que eu tanto sentira falta.
- Não! - fez uma pausa para recuperar o fôlego - Não ofendeu. - limpou as lágrimas, e penetrou suas obsidianas em mim, começando a se aproximar mais - Na verdade só lembrou-me o quanto a sua presença me fez falta. - terminou nostálgico.
- Me dói ter que admitir isso, mas também senti a sua. - alguns minutos se passaram em silêncio, enquanto aqueles olhos negros não paravam de me fitar nem por um segundo. - E então… - pigarreei. - Por que me chamou até aqui?
- Bem... Quero que me acompanhe. - disse ele recolhendo seu casaco de cima da cadeira e me indicando a porta.
- Eu poderia saber para onde?
- A senhorita saberá. Apenas me acompanhe, está bem?
Eu assenti.
Guardei os textos na gaveta e coloquei meu chapéu, entusiasmada apenas por sair daquele lugar.
Quando saímos do Jornal, Tomás começou a ir em direção ao carro parado na frente do escritório.
- O que está fazendo? - questionei.
- Estou tentando abrir a porta para entrarmos -explicou.
- Como assim? Nós vamos nisso? - apontei para a geringonça.
- Sim. Este é o meu automóvel. - e olhou para mim em diversão. - Está com medo senhorita? - perguntou ele com um sorriso atrevido erguendo uma das sobrancelhas.
- Medo? Por que eu estaria?
É lógico que estava com medo, mas nunca admitiria aquilo. Afinal, aquela peculiaridade fazia tanto barulho quando circulava pela cidade que parecia explodir a qualquer momento.
- Nunca andou em um? - questionou me oferecendo sua mão para eu subir.
- Não! Por quê? - perguntei enquanto ele contornava o objeto para o lado oposto.
- Parece estar com medo. - declarou fechando a porta e sentado de frente a uma circunferência.
- O senhor sabe mesmo conduzir esse… esse tal de automóvel? - perguntei já me segurando na trava da porta para pular, caso fosse preciso.
- Por que eu a levaria se não soubesse? Além disso, não precisa segurar na trava. Eu te garanto que sei o que estou fazendo. - disse ele ainda achando graça da minha reação.
- Tudo bem...
- A senhorita ainda está segurando na trava - constatou com os braços cruzados como se me perguntasse: “Está duvidando de mim?”
- E vou continuar segurando. - declarei agarrando-me mais ainda em contradição.
- Muito bem então. Está pronta? - perguntou ele mexendo em algum objeto que eu não sabia identificar, provavelmente para fazer aquilo funcionar.
- Est… - não consegui terminar de falar, pois um barulho ensurdecedor atingiu meus tímpanos.
- Não senhorita! O que está fazendo? - perguntou ele rindo, se esticando para fechar a porta que eu havia aberto em pânico.
- Está ficando louco? Não ouviu o barulho dessa geringonça? Isso quase explodiu! - gritei mexendo nos ouvidos para ver se a audição retornava.
- Fique calma! Aos poucos seus tímpanos se acostumam. - explicou entretido com minha reação - A senhorita está bem? - perguntou.
- Estou! - gritei ainda sem conseguir regular a altura da voz.
- Podemos ir agora? - perguntou apontando para a circunferência a sua frente que provavelmente desempenhava o papel das rédeas.
- Sim. - respondi.
Então a geringonça começou a andar. Aquilo era sensacional, meus olhos faltavam saltar das órbitas ao ver o automóvel se movendo sem nada o puxando, sem cordas nem cavalos.
- Vejo que a senhorita gostou disso, não? - instigou com duas covinhas nas bochechas.
- Acho que sim! É bem… diferente. - conclui.
- A senhorita tem que confiar mais em mim! - declarou.
- Nós ainda não chegamos em segurança para que eu possa deduzir isso. - comentei em divertimento.
- Mas chegaremos. - terminou com um sorriso completo.
…
- O senhor acha isso certo? - perguntei a Tomás assim que saímos da reunião.
Não havia nenhuma outra mulher além de mim ali e muitos olhavam repreendendo-me por eu estar presente. Mas Tomás não parecia dar a mínima para isso, como se não percebesse ou fingisse não perceber. Então, também não me importei e apenas foquei no que deveria.
A reunião era a respeito das reformas sanitárias e sobre a vacina antivariólica. Haviam levantado alguns resultados, como a diminuição da peste bubônica e febre amarela devido às medidas extremistas sanitárias. Mas muitos ali, principalmente jornalistas, não estavam satisfeitos com as medidas tomadas pelo governo.
- Não acho certo agir dessa forma tão autoritária, muito menos expulsarem as pessoas das próprias casas. Já se imaginou voltando do trabalho e ser impedida de entrar na própria residência? - perguntou indicando seu braço para acompanhá-lo até o carro
- Não. - declarei pensando no assunto.
- A senhorita é vacinada? - questionou.
- Sim, mas devo confessar que não foi nada agradável, na realidade foi dolorido e muitíssimo constrangedor. - declarei me lembrando da sensação de ver um homem injetando um líquido ardente em meu ombro nu - Nem mesmo Luigi, meu irmão mais velho, havia me visto com tanta pele descoberta. - concluí.
- É por isso que a maioria das mulheres casadas não se vacina. Afinal de contas que marido ficaria feliz com outro homem encostando-se a sua esposa? - constatou. - Outro dia ouvi duas senhoras conversando sobre algumas pessoas que morreram ao se vacinar. - fiz uma pausa, pensando se deveria perguntar o que eu tinha em mente.
- Isto é... Verdade? - curiosa.
- Acredito que não... - fez uma breve pausa para então começar a explicar - Mas este boato tem circulado muito nos últimos meses, pois uma mulher faleceu e o médico legista averiguou que foi devido à vacina. No entanto, não se sabe ao certo se isso realmente pode levar a morte.
- Entendo - disse eu agradecendo internamente por ter continuado a viver mesmo depois da picada.
Quando chegamos ao automóvel ele me parou e fitou-me em expectativa.
- A senhorita tem algum compromisso agora? - indagou.
- Não. Tecnicamente ainda estou no meu horário de trabalho. Afinal de contas não são nem duas horas da tarde.
- Poderia me acompanhar a um lugar? - perguntou com duas covinhas e um sorriso divertido, como se tivesse planejado algo.
- Claro. - disse ainda tentando imaginar o que ele planejava - Desde que cheguemos antes das cinco, senão Srta. Jade, minha acompanhante, ficaria preocupada.
- Tudo bem - disse ele.
- Oh mio! Cuidado! - gritei correndo para longe ao ver um rato próximo à roda do veículo.
- O que foi? - perguntou assustado.
- Um rato! Um rato! - gritei longe apontando para a roda e vendo a criatura repugnante correndo por debaixo do automóvel.
- Onde? - perguntou um homem na calçada em alerta, segurando um gato. Ao ver em que direção eu apontava ele ordenou ao gato - Vá pegar! - e jogou o animal no chão em direção ao veículo.
- O que ele está fazendo? - perguntei a Tomás quando o vi se aproximando.
- Está o caçando! - explicou como se aquilo fosse normal.
- Mas… - sem entender a ação premeditada do homem.
- Por cada rato que se caça, rende trezentos réis.
Meu queixo caiu.
- Está brincando? - questionei tentando focalizar noutra direção ao ver o gato vencendo a briga e o homem exultante como se tivesse encontrado ouro.
- Não! - e cruzou os braços - Para a senhorita ter uma noção, há alguns meses atrás dois homens criavam ninhos de ratos para vendê-los ao governo. - e riu. - No final acabaram sendo presos, pois o objetivo era acabar com a peste bubônica exterminando os ratos, não os procriando.
- Já terminou? - perguntei ainda sem direcionar os olhos para o automóvel com o estômago se revirando em repúdio.
- Já! Vamos agora? - indagou rindo da minha reação. - Devo confessar que a senhorita corre rápido. - declarou ainda mais entretido.
- Sou capaz de correr uma maratona em situações de desespero. - comentei rindo e levantando as saias com a sensação que o animal asqueroso estava em mim.
- Eu não duvidaria. - ele me fitou. - O que é isso? - perguntou apontando para o meu ombro.
- Oh céus! Onde? - gritei sentindo o sangue evaporar das veias.
Tomás apenas gargalhou, como uma criança atentada. Eu revirei os olhos e segui andando desacompanhada até a geringonça.
- Estou só a importunando! - disse ele segurando na barriga, tentando acompanhar meus passos entre a crise de riso.
- Algo que o senhor faz com frequência. - murmurei.
- Como disse? - perguntou ouvindo claramente o que eu disse, rindo ainda mais.
- Vamos logo Sr. Marks! - protestei irritada.
Ele abriu a porta para que eu subisse e assim seguimos.
Algo me dizia que não tinha sido uma boa decisão acompanhá-lo. Mas o que eu podia fazer? dizer não?
Afinal, eu queria dizer não?