O dia ensolarado estava quase dando lugar a noite, e o quintal estava repleto de risadas. Lori, com seus dezesseis anos e a confiança de uma jovem que estava descobrindo o mundo, havia decidido que aquele seria o dia perfeito para um acampamento improvisado. Mira, apenas sete anos, a seguia como uma sombra, fascinada por cada movimento da irmã.
— Mira, vem aqui! — Lori chamou, acenando com um cobertor que mais parecia uma capa de super-heroína. — Vamos fazer uma fortaleza!
Mira correu até Lori, sua pequena figura vibrante repleta de energia. As duas começaram a arrastar cadeiras e almofadas para criar um abrigo. Com cada travesseiro colocado, Lori narrava histórias épicas de aventuras em terras distantes, onde princesas corajosas e valentes guerreiros lutavam contra dragões.
— E você, minha pequena guerreira, seria a heroína! — Quando a mais velha piscou um olho em sua direção, a mais nova vibrou ainda mais. As falas de sua irmã era como lei para ela. — O que você faria se tivesse um dragão de verdade?
Mira pensou por um instante, sua expressão concentrada.
— Eu o domaria e o levaria para voar comigo pelos céus! Nós veríamos todo o mundo! E depois faríamos um lanche em uma nuvem!
Lori riu, envolvendo Mira em um abraço apertado.
— Você sempre teve as melhores ideias, minha pequena corajosa. — Depois de montar a fortaleza, Lori tirou um saco de guloseimas que tinha escondido e fez um gesto grandioso. — Agora, a parte mais importante da nossa aventura: o banquete!
As duas se sentaram no chão do acampamento, com as pernas cruzadas e as guloseimas espalhadas entre elas. Já escurecia quando acabaram de comer e a mais velha puxou a irmãzinha para se deitar e olhar as estrelas que começavam a surgir e brilhar lá fora da fortaleza.
— Sabe, Mira, cada uma dessas estrelas representa um desejo. — Lori disse com um ar misterioso. — E dizem que, se você escolher uma e desejar com o coração, ela realiza seu maior sonho.
Mira olhou para o céu, fascinada. Após alguns segundos, fechou os olhos com força e sussurrou seu desejo em voz baixa. Lori, curiosa, inclinou-se para ouvir, mas Mira apenas sorriu.
— Não vou contar, ou não vai se realizar.
Lori riu e fez um carinho no cabelo da irmã.
— Tudo bem, pequena sonhadora. Vou torcer para que sua estrela seja bem generosa. — Tudo o que Lori queria era sempre proteger Mira e seus sonhos.
Naquele instante, ambas olharam para o céu com olhares brilhantes. Ali, entre risadas e sonhos secretos, Mira e Lori selaram uma promessa silenciosa de que sempre estariam juntas, em qualquer aventura que a vida trouxesse.
••■••
Eu não tinha conseguido ainda desgrudar do meu sobrinho, sentia olhos ao nosso redor, mas não estava me importando com nada. Entretanto, outra coisa me chamou a atenção por cima dos ombros de Carl. Rick se aproximava, aparentando mais velho do que realmente era e com os olhos também cheios de lágrimas. Ele me olhava incrédulo.
Sorri em sua direção, finalmente me levantando e levando Carl comigo pela mão para me aproximar do homem e também abraçá-lo. Seus braços me apertaram forte e senti vontade de voltar a chorar, dessa vez o sentimento era diferente. Eu me sentia novamente como uma adolescente sendo apoiada, como se eu pudesse soltar as rédeas por algum tempo para poder descansar.
— Eu pensei... eu pensei... — Rick não conseguiu terminar, mas não precisava. Eu entendia.
— Eu sei. — Apertei meus braços ainda mais em sua cintura, sem reparar que ainda segurava a mão de Carl dentro de uma das minhas com firmeza. — Está tudo bem. — Naquele momento tinha algo bem mais importante para se focar. Me afastei para encará-lo enquanto ria nervosa e limpava as lágrimas do meu rosto. — Cadê a Lori?
Eu vi.
Queria negar com todas as minhas forças, queria fingir... mas eu vi. Os olhos azuis do meu cunhado não conseguiram se manter nos meus e o frio inundou a minha alma. Engoli seco.
— Tia...
Me virei para o menino que me olhava pesaroso voltando a soluçar.
— Por que você está chorando, Carl? Cadê a sua mãe?
Ela não estava viva... Estava?
Olhei ao redor para todas aquelas pessoas desconhecidas que me olhavam cheias de pena em suas expressões. Não queria a pena deles, eu queria a minha irmã mais velha. Eu queria que ela aparecesse de dentro daquele lugar, me olhasse e corresse em minha direção como o Carl fizera.
Meus olhos bateram em Daryl e Patrick que ainda estavam parados no mesmo lugar. Tenho certeza que a minha aparência não era uma das melhores, todavia, fixei meu olhar no menino mesmo assim.
Inspirei fundo quando senti uma dormência começar a deixar meu corpo letárgico. Não era aquela dormência que eu amava sentir antes de soltar uma flecha, era diferente. Era paralisante. Levantei meus braços minimamente para Patrick e até pensei que o menino não entenderia, entretanto, logo ele se adiantou em minha direção e me abraçou.
Deixei ir toda a dor dentro de mim enquanto voltava a cair no chão cheio de pedregulhos com Patrick. Solucei em meio a uma risada desoladora.
— Eu não sei abraçar, mas você sim.
Ele me apertou ainda mais. Aquele garotinho magrelo era um bom amigo.
Rick foi quem me ajudou a chegar até uma das celas vazias que eles usavam de quarto. Meu choro já havia acabado, mas a dor e a letargia ainda me deixavam congelada para a vida ao meu redor. Nem ao menos notei aonde eles tinham levado Patrick. Nem perguntei porque a cela dele era em um bloco diferente do meu. Quando me sentei na cama inferior de uma beliche, pude sentir que Rick e Carl continuavam me encarando da porta.
— Carl, que tal você ir buscar algo para a sua tia comer e beber? — Percebi a relutância do menino de me deixar, contudo, logo ele assentiu e seguiu para fora. Meu olhar seguiu o garoto, e foi assim que consegui forças para levantar.
— Não deixe ele ir sozinho. — Tentei passar por Rick, mas ele me barrou e voltou a me colocar sentada na cama com todo o cuidado que conseguiu.
— Está tudo bem, Mira. — Se ajoelhando a minha frente, o homem coçou a cabeça e deixou seus olhos rodar pelo ambiente antes de voltar a mim. — Estamos seguros aqui dentro. Ele está seguro.
— Como? — Não precisei dizer mais nada para que ele soubesse o que eu queria saber.
— Sobre isso... Lori, ela...
— Fala, Rick!
— A Lori ficou grávida. Tínhamos acabado de encontrar essa prisão e estávamos em um momento r**m. A bebê precisava nascer e ela escolheu nossa filha para viver.
Eu estava incrédula. Eu estava... mortificada.
— O mundo como está e vocês decidem que é um bom momento para aumentar a família? Que idiotice é essa?
Me levantei sem conseguir conter a minha frustração. Rick exalou longamente antes de também se levantar e voltar a me encarar. Levando as mãos a cintura, ele trocou o peso de perna enquanto parecia pensar o que dizer para me acalmar.
— Por favor, Mira, não resuma tudo o que passamos lá fora em algo pequeno e mesquinho.
Bufei revirando os meus olhos enquanto as lágrimas voltavam a rolar pelo meu rosto.
— Não foi mesquinho, foi idiotice. Foi o que eu disse! Como vocês não viram o risco? Um bebê no meio do apocalipse zumbi, meu Deus! Quem faz isso? E agora minha irmã está morta por conta de um bebê que nem sabemos se sobreviverá.
— Não! — Seu tom alto me fez pular no lugar. O homem se aproximou me olhando direto nos olhos. — Eu sempre te respeitei e senti muito carinho por você, Mira. Você é a irmã da mulher que amei e a tia do meu filho, mas não ouse... Não com a minha filha.
Ele nunca tinha falado daquela forma comigo. Meu choque inicial se dissipou e eu encurtei ainda mais a distância.
— Minha irmã está morta. — Travei meu maxilar tentando me segurar para não voltar a desabar. Eu queria culpar alguém, mas eu podia culpar um bebê?
Rick desmontou suas armaduras quando percebeu que eu estava prestes a quebrar novamente, então ao invés de voltar a gritar, ele apenas me abraçou.
— Sinto muito. Eu sinto muito.
Naquele dia, no meu primeiro torneio, meu peito doeu quando Lori não apareceu e eu estava prestes a entrar de uma vez no ônibus e fingir que não estava morrendo de inveja dos meus colegas. Foi quando escutei sua voz vindo de uma das esquinas m*l iluminadas por falta de luz no poste. Era Rick com meu sobrinho pequeno em seus braços. Ele corria em minha direção com um sorriso enorme, e o meu também se esticou enquanto eu soltei minha mochila e corri para eles. Ele nem imagina o quanto aquela ação significou para mim naquele dia, e agora... agora ele fazia o mesmo.
— Me desculpa. Me desculpa, Rick. — Será que em algum momento eu conseguiria parar de chorar? Senti seus braços me apertaram ainda mais.
— Está tudo bem, Mira. Tudo bem.
Eu ainda soluçava nos braços de Rick, sentindo o peso esmagador da realidade. A falta de Lori parecia um vazio impossível de preencher, uma dor que eu não sabia como lidar.
Meu cunhado suspirou, sua voz baixando para um tom suave enquanto ele continuava me segurando.
— Sabe, Mira, eu entendo sua raiva. Também me pergunto às vezes... se as coisas poderiam ter sido diferentes, se eu tivesse feito outra escolha. Mas... ela era a pessoa mais forte que eu já conheci.
Senti minhas lágrimas se acalmarem enquanto ele falava. Rick também estava sofrendo, e de um jeito que só alguém que amou Lori poderia entender.
— Eu sinto muito, Rick. — Minha voz saiu rouca. — Eu só... eu queria tanto que ela estivesse aqui.
— Eu também, Mira. Às vezes acordo de noite e... acho que vou encontrá-la ali do meu lado. Mas aí lembro que ela se foi... e é como perder ela de novo, toda vez.
Rick se afastou só o suficiente para me olhar nos olhos. Ele parecia cansado, mas havia algo em seu olhar, uma determinação silenciosa.
— Mas ainda temos uma parte dela aqui. Os nossos filhos. Eles podem não ser a Lori, mas são uma chance de manter o amor dela vivo, de continuar a história que ela começou.
As palavras dele pareciam atravessar a neblina de dor em meu peito. Eu ainda sentia o vazio, mas agora, ao olhar para Rick, percebi que ele entendia o que eu sentia. E, de alguma forma, isso tornava a dor um pouco mais suportável.
— Todo esse tempo meu propósito foi encontrá-la. Antes eu não a tinha do meu lado, mas havia a esperança. O que eu faço agora que não tenho mais nada?
— A gente vai descobrir juntos. Um passo de cada vez, Mira. E, quando você precisar, estarei aqui. Porque, do mesmo jeito que você perdeu uma irmã, eu perdi o amor da minha vida.
Assenti lentamente, sentindo a dor ainda presente, mas menos solitária.
Passos indicaram que alguém se aproximava, e logo meu sobrinho apareceu na porta, segurando o que parecia ser um lanche e um copo que... café? Arregalei meus olhos para a caneca preciosa enquanto limpava meu rosto dos resquícios de lágrimas.
— Olha, Carl, eu realmente pensei que não dava para te amar mais. Pensei errado. — O menino e seu pai riram quando eu praticamente arranquei a caneca de sua mão. O cheiro familiar me fez suspirar antes de beber um gole generoso. O gosto era um pouco amargo demais, mas ainda assim delicioso. A culpa cutucou meu estômago junto com o café quando me lembrei de outra pessoa. — Por que levaram o Patrick para longe de mim? Ele também vai receber algo para comer? Posso dividir o meu com ele. Acho que é melhor eu ir lá ver como ele tá.
— Jesus, Mira! Eu tinha esquecido de como você fala as vezes. — Fechei minha expressão para o lado do Rick e ele sorriu, mesmo ainda tendo os olhos vermelhos pelo choro recente. — Ele está bem e já está sendo alimentado. Nesse bloco está apenas a nossa família, e você faz parte dela. Desculpa, mas não conhecemos Patrick e Daryl disse algo sobre não fazer muito tempo que vocês se conhecem, então...
— Caçador fofoqueiro. — Resmunguei voltando a beber meu café.
— Vocês parecem bem próximos, tia. Você e esse Patrick. — Carl comentou se sentando ao meu lado na cama, assim que eu o fiz. — Se não faz muito tempo que se conheceram, como ficaram tão próximos?
Cada palavra que saia da boca daquele menino me deixava mais molenga. Era como assistir vários filhotinhos de gato brincando.
— Você sabia que é o bebê mais lindo do mundo? — Deixei minha caneca de lado para puxá-lo para o meus braços de novo, quase derrubando seu chapéu, qual Rick pegou enquanto ria da careta do filho.
— Qual é, tia? Não sou mais uma criança.
— É criança sim! E mesmo quando estiver com 50 anos, ainda vai ser meu bebezinho.
O soltei apenas para apertar suas bochechas e voltar a abracá-lo como faria com um urso de pelúcia. Rick continuava gargalhando enquanto assistia.
— O pai!
— Se vira. Acho que só você pode lidar com sua tia maluca.
Eu até lançaria um olhar fulminante para o homem que começou a se afastar, mas eu estava ocupada demais apertando meu sobrinho resmungão e fofinho.
Então me lembrei. Me lembrei daquele desejo que eu havia feito para uma estrela há anos atrás, quando Lori e eu montamos nossa fortaleza. Qual passou a ser um costume de todos os finais de semana. Eu havia desejado ter sempre a minha família ao meu lado. Naquela época eu só tinha pensado na vovó e em Lori, e agora não tenho nenhuma das duas ali, mas em um mundo como aquele, ainda tinha conseguido encontrar a minha família. Talvez aquela estrela fosse realmente generosa.