Um problema a ser resolvido

2655 Words
            Antes de receber a alta que nem mesmo queria receber, Brianna recebe o doutor Mendez em uma última visita no hospital: - E então? Como se sente minha paciente? – ele pergunta sorridente. - Estranha – ela disse com sinceridade enquanto encarava o terapeuta – eu não sei se eu quero voltar para casa, de verdade. - Entendo – ele sorriu tranquilo – no hospital, a gente acredita que “está doente e que vai passar” ou que “está em recuperação” e se perdoa, e entende, agora quando saímos daqui sem estar totalmente recuperados, a coisa é diferente e precisamos aceitar o novo “normal”, ao menos por um tempo. Vou te ver todos os dias, Bri, uma horinha por dia, para que possamos conversar. - Tudo bem – ela foça um sorriso – não sei exatamente o que eu devo dizer para te agradar. - Não é para me agradar – ele ri – é para refletir, então só diga “ok” e eu saberei que me ouviu. - Okay – ela diz rindo em tom de deboche. - Outra coisa: não se sinta pressionada em lembrar – ele a encarou – as coisas vêm, as vezes rapidamente, outras vezes com mais tempo, e não pens muito nas teorias que as pessoas estão lançando, certo? Mil coisas podem ter acontecido, até que se prove o contrário, você pode ter caído de um disco voador em uma tentativa de abdução frustrada – ele riu ao ver que eu tinha achado graça – independente do que aconteceu, o importante é deixar a sua cabecinha trabalhar com calma, certo? E ficar atenta aos sinais, pequenos flashes... A memória, quando perdida, ela se estilhaça fora da linha do tempo, e as vezes precisamos montar um quebra-cabeças complicado. Você pode me ligar a qualquer hora, mocinha, certo? - Sim, doutor – ela responde ainda desanimada. - Me chame de Jorge, certo? – ele sorria. - Tudo bem – ela sorri encarando o homem: devia ter uns trinta anos, olhos verde brilhantes, cabelos negros e um lindo sorriso, o homem de origem Chilena estava no Brasil em uma especialização, e trabalhava no hospital três vezes por semana, estava aqui há dois anos, e era um profissional reconhecido nos processos de recuperação pós trauma. - Me telefone, mande mensagens, o que for preciso – ele sorriu – estou à disposição. - Obrigada, Jorge.             Lara Barnett entrou na sala assim que Jorge saiu pela porta: - O que ele queria? – ela pergunta parecendo irritada. - Me passar informações, perguntar como estava – responde Brianna – ele ainda é o responsável... - Entendo – ela me encarava – e se nós mudássemos para a terapia com a Miranda? Eu não gosto muito desse rapaz. - Não – responde categórica – ficaremos assim. - Tudo bem – ela sorri ainda que não conformada.             Os minutos seguintes doeram: sair do hospital em uma cadeira de rodas, precisando de ajuda para vestir-se e principalmente, vendo as pessoas olhando para ela com pena, como se ela fosse uma vítima. Ela agradeceu imensamente quando chegou ao carro e parou de ver os rostos curiosos. Chegar em casa foi uma bênção, Dom estava eufórico ao ver ela e ela feliz em ter seu filhote peludo por perto. Benjamin já tinha, literalmente, colocado o quarto abaixo: estava quase tudo dentro do quarto de hóspedes, apesar de Brianna não poder se locomover dentro dela, pelo menos se sentiria “em casa”. - E então, o que vamos jantar? – perguntou Benjamin. - Eu tenho um jantar da associação comercial – disse Patrick – acho que sua mãe virá comigo. - Tudo bem – Brianna sorriu, aquilo tudo era normal. - Posso telefonar para que a Rosane venha... – Lara agora havia pensado que a filha não poderia ficar sozinha. - Não – Benjamin interpôs – eu estou em casa, Bella, você vai jantar em casa? - Não – ela disse sem olhar para o irmão – preciso estudar química com a Gabrielle, e vou ficar por lá. - Pizza – ele disse olhando para Brianna – pizza e refrigerante e a gente termina de assistir aquela triologia que começamos? - Por mim está ótimo – ela sorriu, percebeu que o irmão estava procurando fazer ela se sentir bem, ao contrário dos outros. - Vou tomar um banho e logo estou de volta – ele responde. - Certo – ela sorriu – me alcança meu laptop? - Claro – ele sorriu – só não fica olhando esses sites de notícias idiotas. - Não – ela suspirou – quero chegar os emails, acho que o Guedes pode ter enviado instruções sobre as minhas aulas. - Beleza – ele colocou o laptop sobre a cama e conectou o carregador – se precisar de algo, só gritar, logo estou de volta, maninha.             Quando enfim estava sozinha, Brianna encarou o quarto de hóspedes: observou que haviam mudado a cama, instalado barras de segurança no banheiro e colocado móveis ao lado da cama para que as coisas ficassem ao alcance dela, havia um espelho em frente à cama e ela encarou-se nele: hematomas, curativos e faixas, estava se achando a pior das criaturas. Ligou o laptop e encarou a tela por longos minutos até ter coragem de digitar a senha, mas a coragem não veio e ela simplesmente o fechou novamente e adormeceu enquanto esperava pelo irmão. “Dia 06 do meu processo de recuperação: Querido diário             Estou em casa agora, o que não muda muito em minhas condições, continuo sem poder mexer as pernas, continuo sentindo dores o tempo todo e principalmente, continuo sem fazer a mínima ideia do eu aconteceu comigo ou o porquê estou do jeito que eu estou. Ontem à noite, todos tinham compromissos e eu acabaria ficando sozinha ou com a enfermeira que mamãe contratou... Eu estou muito, muito feliz porque o Ben veio para casa e porque ele ficou comigo, no fim das contas, parece que o Ben é o único nessa casa que não me trata apenas como “um problema a ser resolvido”, porque é assim que eu me sinto o tempo todo, mas me preocupo com a escolha que ele fez, tenho u pouco de medo que ele tenha resolvido fazer isso por causa do meu acidente e que perca boas oportunidades na carreira por conta dessa escolha.             Eu estou detestando essa coisa de escrever diários, me sinto uma i****a fazendo isso, porque é óbvio que isso não vai ajudar em nada, mas como o doutor Mendez é muito legal comigo, vou tentar facilitar o lado dele e cumprir com o nosso combinado, também não tenho muito o que fazer, não é? Escrever pode ajudar a me distrair um pouco e sinceramente, eu acho que eu preciso, porque se eu não achar alguma coisa para me distrair eu vou enlouquecer.             Voltamos à minha vida antiga, antes do acidente: até umas semanas atrás eu costumava ser a namorada do Marco Antônio Ribeiro. Quando completei quinze anos, meus pais fizeram aquela festa enorme com todo o luxo e pompa e tudo o que tinha direito, ele dançou comigo a segunda valsa, me entregou uma aliança de compromisso e eu engatei o namoro mais promissor do ensino médio: começamos em abril e fizemos tudo o que foi possível juntos. Era o último ano de Marco, ele provavelmente faria faculdade em uma cidade próxima, tinha todo o futuro planejado, queria cursar direito e ser delegado de polícia – acho que por causa do pai dele...             O Marco era o sonho de consumo de todas as garotas da escola, ou melhor, de todas as garotas da cidade... Ele era bonito, rico e popular. Ele completou dezoito anos um mês depois do meu aniversário, ganhou um carro e todas as garotas da cidade queriam dar uma volta no Golf Sportline rebaixado preto fosco que ele tinha, mas eu era a garota no banco do carona e quando ele passou no vestibular no início do ano seguinte, eu era a garota na garupa da Honda Shadow vermelha 750cc.             Namoramos até o mês de maio. Era engraçado, eu lembrava de tudo em relação ao Marco, desde quando eu o tinha conhecido, muitos anos antes, no maior evento da cidade: a feira de primavera... Lembrava fácil de como éramos bons juntos, desde sempre, de como costumávamos ser melhores amigos, de como dividíamos tudo, e de quando, nas vésperas do meu aniversário de quinze anos, como em um conto de fadas da Disney, ele confessou-me seu amor e me pediu em namoro.             Essa versão do Marco, que eu costumava chamar de “Meu Marco” era incrível, e aparentemente, só para mim, porque para o resto das pessoas, ele costumava ser bem b****a, o típico menino rico e mimado, com tudo nas mãos e pensando que tem o mundo aos seus pés, de verdade, se eu o analisasse bem, em um dia normal, dentro do seu círculo de amigos, certeza que eu não namoraria com ele, não sem conhecer a outra versão dele.             Marco jogava basquete pela escola, era rico, influente e lindo, esse era o detalhe mais importante sobre ele, como Marco era perfeitamente lindo: 1,85 de altura, pele morena clara, olhos cor de mel... Cabelos castanhos e porte de atleta, sempre com o corte de cabelo impecável, cheiroso e bem vestido. Eu namorei esse cara por tanto tempo, e agora somos quase como estranhos.             Eu terminei o namoro com Marco, três dias antes do meu acidente. Eu me lembro muito bem desse dia, acordei cedo, sai para correr, quando voltei, tinha uma garota me esperando: devia ter uns dezessete anos, disse que seu nome era Raquel, que ela conhecia Marco, que estava tendo um caso com ele e que estava grávida. Bem, eu a ignorei, mas quando questionei Marco, perguntando “você conhece alguma Raquel?” a resposta foi pior do que eu esperava, ele simplesmente disse “sinto muito, Brianna” acho que isso respondia todas as perguntas. E assim, sem muita comoção, eu terminei o meu relacionamento com o Marco, e baseado nisso, ele nem mesmo me enviou uma mensagem desejando minha recuperação, enfim, vida que segue. Acho que por hoje, chega de diários, estou cansada de escrever e cansada de todo o resto”.             Brianna esticou-se na cama o máximo que pode, ainda não sentia nada da cintura para baixo. Encara o espelho na parede oposta: por quanto tempo será que ficaria naquela cama? Passavam das dez da manhã e ela conferia a agenda no telefone celular, sessão de fisioterapia, terapia com Dr. Mendez... Porque fazer tudo aquilo se no fim todos aparentemente acreditavam que ela tinha se atirado daquele viaduto? - Bom dia – Ben invadiu o quarto da irmã carregando a bandeja do café da manhã – a Dulce queria trazer o seu café, mas eu queria conversar com você antes de começar a sua maratona e eu preciso ir para o trabalho. - Bom dia – ela suspira – tem como cancelar tudo? - Tudo – Ben encara a bandeja de café da manhã – posso fazer esse sacrifício... - Todo o resto – ela ri – o café da manhã me interessa sim, senhor. - Não, não tem – ele revira os olhos – sabe que é importante. Vou perguntar porque não perguntei ainda... - Do que eu me lembro? – ela suspira. - Sim – ele a encara – sinto muito, mas preciso saber... - Estava me arrumando para sair, não lembro onde eu ia – ela sorri desanimada – telefonei para você. Não lembro o que conversamos, você se lembra? - Nada específico – ele diz ainda mais desanimado – você estava se arrumando, tinha me ligado algumas vezes durante o dia e eu não tinha atendido, quando eu te retornei, você ia sair, só perguntei se estava tudo bem e você disse que depois conversávamos. - Certo – ele pega a mão da irmã – a mãe e o pai disseram que não sabem onde você foi. - Eles nunca sabem – ela ri – mesmo quando deveriam, porque eu normalmente falo onde eu vou, mas eles não prestam atenção, você sabe como eles são. - Sim, eu sei – ele beija a mão da irmã – preciso trabalhar, mocinha, quero que se esforce ao máximo nos seu tratamento, volto à noite para te ver e vamos jantar juntos. - Tudo bem – Brianna responde desanimada – obrigada. - Sabe que eu faço tudo por você, não sabe? - Eu sei sim – ela ri – pode me trazer um sorvete, então. - Combinado – ele aproxima-se e beija a testa da irmã – sorvete...             Brianna encara o café da manhã: frutas, cereais, iogurte, torradas... Parece até que estava sendo mimada, e logo lembrou que Ben deve ter dito para Dulce caprichar, o que a fez sorrir pensando que a governanta deveria estar um pouco satisfeita em poder cuidar dela de verdade, já que ela nunca aceitava muitos mimos.             Dr. Mendez foi o primeiro a chegar: - Como se sente minha melhor paciente? – ele pergunta assim que passa pela porta. - Atitude positiva – ela diz fingindo empolgação – um passo de cada vez, ou nenhum mesmo... - Está ótima – ele ri – começou a fazer gracinhas. - Rindo da própria desgraça... - Rindo para não chorar? – ele acompanha a brincadeira – Como se sente, de verdade? - Bem – ela responde – exceto pelas minhas pernas e minha memória eu posso dizer que estou bem: sem dores, sem evoluções, não lembro de nada que eu não tenha me lembrado antes. - Certo – ele sorri – vamos conversar sobre terapias auxiliares ao processo de recuperação da memória. - O diário não era para isso? – ela o encara séria. - O diário é uma ferramenta, Bri, temos várias coisas... - Certo – ela suspira – qual a próxima? - Músicas – ele sorri – acho que seu irmão conseguiu recuperar a suas playlists, tem alguma coisa que você estava ouvindo no domingo, antes de sair de casa, provavelmente – ele sorri empolgado. - Perfeito, vou colocar para tocar depois. - Quero anotações – ele responde – de verdade... Se lembrar, por mais confuso que pareça, tipo, grama, corda... - Corda? – ela ri. - Sim, tudo o que a sua mente mostrar. - Tudo bem – ela deu ombros – eu vou me esforçar, prometo. - Maravilha – ele sorri – você desenhava também, quero que tente desenhar. - O que quer que eu desenhe? – pergunta a garota. - Só pega o lápis e deixa fluir – ele sorri. - Tudo bem – ela responde. - Acho que por hoje é só isso... – ele dá ombros – tenho que voltar para o hospital e precisamos de alguma coisa para evoluirmos. - Muito obrigada – ela diz antes de se despedir.             Brianna conecta o celular no som... Se vai fazer isso, vai ser direito, do jeito que provavelmente estava fazendo na noite do acidente: som alto, olhos fechados, repassou duas vezes a playlist aleatória da noite de domingo e aparentemente não se lembrou de nada. Dulce entrou no quarto e a ajudou com seu banho e higiene, deixando-a descansando com seus lápis e papeis até o horário de almoço, o que não ajudou muito porque ela não fez nenhuma evolução artística. “          Não sei como eu deveria me sentir e isso parece ainda mais estranho: me sinto aliviada por estar viva, mas cansada de tantas perguntas. É como se eu fosse uma bomba-relógio prestes a explodir, não faço a menor ideia do porque estão me tratando dessa forma, a não ser que estejam realmente acreditando que meu acidente foi uma tentativa de suicídio... Isso parece tão i****a de se pensar! Enfim, nota mental, se eu quiser me m***r, se jogar do viaduto definitivamente não é uma boa opção” 
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