Querido Diário
“Dia 05 do meu processo de recuperação:
Querido Diário,
Eu não sei mais escrever diários e acho a maior doideira estar escrevendo, quer dizer, como é que escrever alguma coisa poderia me ajudar? Eu não sei, mas o meu psicólogo, o doutor Mendez, ele acredita que vai me ajudar...
Então, ele disse que eu preciso começar pelo começo, ou seja, tudo o que eu me lembro, e para ser sincera, eu não me lembro de quase nada, quer dizer, lembro da minha vida toda, mas parece que tem um buraco no meio de tudo isso, eu “perdi” três dias no meio da minha vida, sem ter a menor ideia do que aconteceu nesse tempo, e eu acordei no hospital com uma lesão na coluna, o que pode significsr que eu nunca mais volte a andar ou pode não significar nada, e eu volte a andar amanhã mesmo, tudo vai depender de como anda minha recuperação. O doutor Mendez, ele é otimista quanto à minha recuperação e insiste que eu preciso ser positiva e acreditar no melhor. Ele também diz que eu preciso me concentrar para conseguir me lembrar e principalmente entender o que aconteceu no dia do acidente, porque nem eu nem ninguém nessa cidade pode dizer o que houve.
Eu também deveria escrever sobre como eu me sinto, e sinceramente, eu me sinto péssima: minha família está arrasada, minha irmã mais nova m*l olha para mim, minha mãe está surtando ainda mais do que o normal e o meu pai ocupado demais, como sempre, mas fingindo estar preocupado. O meu irmão mais velho me telefonou ontem à noite, mas eu já estava dormindo, espero que ele tente novamente hoje, não falo com ele desde que... Bem, eu falei com ele no domingo à tarde, sofri o acidente no domingo à noite e isso já tem uns quinze dias, acordei no hospital na sexta feira, enfim, é bem confuso pensar em datas quando a gente não sabe o que aconteceu, quando a gente tem um imenso buraco vazio na mente.
O doutor pediu que eu escreva com sinceridade – e ele não vai ler, a não ser que eu diga que ele pode – então eu vou ser sincera: preferia morrer a passar o resto da minha vida sem poder andar, dependendo dos outros, porque a minha vida vai ser um inferno quando eu sair daqui e eu sei disso, porque nenhum dos meus amigos me telefonou, eu não recebi mais do que meia dúzia de mensagens – e a maioria, da família – e parece que eu fiz alguma coisa errada, mas eu não consigo me lembrar. Por ordens médicas, eu preciso fazer um exercício para tentar auxiliar no meu processo de recuperação da memória: contar como é a minha vida, ou melhor, como ela era, porque nunca mais vai ser igual:
Eu tenho dezesseis anos. Sou uma garota bem normal: minha vida é normal, escola, aulas extras, gosto de correr – ou gostava – amo cinema, sair com meus amigos. Minha família que é bem estranha: meu pai, ele tem um caso extra conjugal, todo mundo sabe, mas a gente finge que não sabe e tira lindas fotos de família, ele é dono de uma rede de supermercados, tem três aqui na cidade e mais cinco em cidades próximas, ele se acha o “Walmart” do interior, e tem muita grana... Minha mãe, bem, ela é linda, e o que não tinha de bonito, ela certamente já consertou com o dinheiro do meu pai, a única coisa realmente f**a nela é a mania de julgar os outros e cuidar mais da vida alheia do que da dela, minha irmã mais nova, bem, ela é uma cobra criada, do tipo que pratica bullying com os outros e destrata as pessoas sem motivo aparente, ela é como uma cópia m*l feita da mamãe, porque não é tão bonita quanto ela, e sim, tem meu irmão: ele é uma boa pessoa, tão boa que saiu daqui assim que pôde, é policial na capital e é mais velho, tem vinte e seis anos e está tentando se qualificar para ser Detetive de Polícia – para meu orgulho, porque sempre foi o sonho dele – e para desespero do meu pai que sempre quis que ele assumisse o seu “império”. Moramos em uma casa imensa com vista para o lago na serra gaúcha. A cidade é pequena, mas tem umas vinte cidades próximas.
Tem duas escolas de ensino médio na minha cidade, e eu estava no segundo ano, ou seja, logo estaria livre de tudo isso, mas como tudo isso aconteceu, não sei o que será de mim. Minha irmã está no primeiro e sim, na mesma escola, eu bem popular na escola, namorava um dos caras mais populares e parecia ter uma vida perfeita, tinha amigas, e apesar dos defeitos delas, não dá pra se ter tudo. O Marco terminou comigo no sábado à noite – disso eu me lembro bem – o pai dele é o chefe de polícia aqui e a mãe dele é psicóloga, e só tem dois na cidade, o doutor Mendez, que é chileno, e ela. Não sei porque, mas eu não quis fazer terapia com minha ex sogra, vida que segue.
Tenho um cachorrinho que eu amo demais – um yorkshire – o Dom, e estou morrendo de saudades dele. Papai prometeu passar aqui depois do expediente, quem sabe trazer ele, nós precisamos falar sobre minha alta do hospital, e acredito que isso vá ser difícil para todos. Acho que fiz um bom trabalho hoje. Fim.”
Brianna Barnet esticou-se para deixar seu diário na mesa ao lado da cama no hospital: com dificuldades e com dor. Os últimos dias tinham sido bem difíceis, e ela só se elmbrava de acordar na manhã de sexta-feira no hospital, antes disso, lembrava-se do domingo, de falar com o irmão ao telefone, mas não sabia bem sobre o que, e ainda, lembrava-se que estava se preparando para sair, mas não fazia ideia para onde iria.
- Com licença – uma enfermeira batia à porta delicadamente – sei que pode ser difícil – ela dava um sorrisinho forçado – mas o Delegado Ribeiro está aqui, Brianna.
- Tudo bem – ela suspira, ajeitando-se na cama.
- Boa tarde – ele disse assim que entrou – Bri, eu sinto muito pelo que houve... – ele parecia tenso – mas infelizmente eu preciso conversar com você.
- Tudo bem – responde – eu não me lembro, Sr. Ribeiro, infelizmente, não posso dizer nada porque eu não me lembro.
- Certo – ele anotou alguma coisa em um bloco – com quem estava? Aonde ia? – ele certamente tinha esperanças de que falasse alguma coisa.
- Nada, não, senhor – ela suspira – eu apenas lembro de me arrumar para sair naquela noite – ela começa a ficar irritada.
- Falou para os seus pais aonde iria? – ele seguia fazendo anotações.
- Provavelmente disse algo – Brianna o encara – mas provavelmente eles não prestaram atenção, como sempre, mas pode tentar perguntar à eles.
- Tudo bem – o homem sorriu – e como você está se sentindo?
- Péssima, acabada, mas de acordo com meu psicólogo, isso é normal e é bom que eu não entre em negação em relação ao que aconteceu.
- Achei que Melinda estava cuidando disso – ele franziu a testa.
- Ah, não – a garota sentiu as bochechas corando na hora – o senhor entende que terapia, com a sua esposa, depois do meu relacionamento com o Marco Antônio... – suspira, as costelas também doem – seria bem estranho.
- Ela ainda é a profissional mais qualificada – ele sorriu – se mudar de ideia, só telefonar, Brianna, será um prazer ajudar.
- Certo – tudo o que Brianna quer é encerrar a conversa e ver aquele homem sumir pela porta por onde entrou.
- Então, vou deixar você descansar – ele encaminhou-se para a porta – e qualquer coisa que lembrar, mocinha, me ligue imediatamente.
- Sim senhor, até logo.
“ Eu queria muito, queria mesmo lembrar, mais do que ninguém, porque não fazia ideia do que tinha acontecido. Os jornais estampavam a manchete: “jovem é encontrada desacordada às margens da Rodovia Estadual”, sem sinais de agressão, sem a menor pista, aparentemente havia batido o pescoço no guard rail, em uma curva da estrada e haviam três opções: acidente de motocicleta – mas eu não apresentava sinais de ter usado capacete, fuga de um veículo em movimento em alta velocidade – mas não haviam marcas de frenagem na pista, nem mesmo marcas de colisão e a última e que aparentemente todos estavam acreditando: tentativa de suicídio, aparentemente, eu teria me jogado do mirante da montanha e batido o pescoço mas, caído no fofo e sobrevivido. Eu simplesmente não conseguia pensar na possibilidade de suicídio, eu simplesmente amava viver, tinha muitos motivos para isso, acho que nada seria tão grave como a mentira que era a d***a da minha família ou o fim do meu relacionamento com o cara perfeito que todas as garotas queriam... Não, eu não teria feito isso” – escreve a garota colocando outro ponto em seu diário.
- Olá para a minha irmãzinha favorita – Benjamin invadia o quarto do hospital ainda com a farda e um imenso buquê de cravos brancos e pink que ele logo deixou nos pés da cama para abraçar a irmã, com os olhos cheios de lágrimas – tentei falar com você ontem, mas não me atendeu, então dei meu jeito – ele sorriu, o jeito era dirigir quatrocentos quilômetros no seu dia de folga – precisava ver se estava bem, precisava... – ele fez uma pausa – contar uma novidade também.
- Eu estou – ela suspira desanimada – péssima, Ben, eu nunca mais vou voltar a andar.
- Vai sim – ele sorria entre as lágrimas – acabei de conversar com o Munhoz, ele é o neurotraumatologista responsável por você, e sim, tem muita chance – ele demonstrava confiança – mas e ai? Lembrou de algo? O pai disse que você não fazia ideia...
- Não faço – responde ela – queria falar com você, lembro de ter falado com você no telefone, mas não sei o que conversamos, não sei para onde eu fui...
- Podemos falar sobre o telefonema em casa – ele falou mais baixo que o normal – e sobre onde você foi, o pai disse que você disse que ia sair com amigos, mas não deu nomes, e que saiu a pé – ele franziu a testa – no mínimo, só para variar, eles não viram quem te buscou. Onde está o seu celular?
- Acho que eu perdi, Ben – ela faz uma pausa – minhas costelas doem – o pai trouxe um novo e recuperou meu número, eu fiz um backup, mas só consegui contatos e meus logins... Não consegui recuperar os históricos.
- Acho que tem como fazer isso – ele sorriu – posso contar a novidade?
- Pode, sim senhor – ele parecia animado.
- Peguei transferência para cá – ele disse empolgado.
- Tá brincando? – ela franzia a testa.
- Não – ele sorriu – já prestei as qualificações, seja o que Deus quiser, os resultados saem no fim do mês que vem, e abriu uma vaga aqui porque o Kupper se aposentou, ai eu vou entrar...
- Isso é péssimo para a sua carreira – gritou em protesto.
- Não, é bom – ele sorriu – voltar para casa faz com que eu pareça ter um imenso senso de responsabilidade com a minha comunidade.
- Não sei, não vou negar que estou muito feliz com isso, sabe que eu morro de saudades.
- Eu sei – ele riu abraçando-a novamente – e vamos precisar nos adaptar por um tempo...
- Isso é verdade. Você vai pra casa? – ela pergunta.
- Provisoriamente – ele respondeu – pelo menos até saírem os resultados. E aí nos dias de folga eu posso te obrigar a estudar.
- d***a – ela ria alto – obrigada por ter vindo, pode voltar.
- Eu disse que eu sempre estaria do seu lado – ele abaixou o tom de voz – sinto não estar aqui no domingo, Bri, eu realmente sinto muito.
- Você não tem culpa – ela diz – de verdade.
- Mas se eu estivesse aqui, você nunca teria... – ele para porque alguém abre a porta.
- Oi pessoal – Patrick Barnett entrava no quarto – família reunida, Ben, o que faz aqui?
- Eu voltei, peguei transferência para assumir a vaga do Roger Kupper... – ele dizia mas foi interrompido.
- Ah, claro – o pai franziu a testa – banquei sua faculdade para você tomar café no meio da papelada em uma delegacia de policia – ele virou-se para a filha – pronta para ir para casa?
- Não – ela respondeu imediatamente – sem a menor condição.
- Fizemos adaptações, você ficará com o quarto de hóspedes, a sua irmã pode ir levando suas coisas...
- Não – Brianna e Benjamin gritaram juntos.
- Tudo bem – Patrick suspirou – o bonitão aqui leva quando estiver de folga.
- Tudo bem – Bri respondeu aliviada, tudo o que não precisava era de sua irmã mexendo nas suas coisas – mas hoje?
- Sim – ele suspirou – com tudo isso que está acontecendo, agora que acordou, amanhã mesmo teremos mais de vinte pessoas da imprensa na porta... O Munhoz vai acompanhar você em casa, todos os dias, encontrei uma fisioterapeuta, Mariana Andrade, eu acho, ela pode ir três vezes na semana, o diretor Guedes está providenciando ensino remoto, o doutor Mendez continuará vendo você diariamente e vamos ter uma técnica em enfermagem, Rosane, para auxiliar você na maior parte do tempo...
- Tudo isso? – questiona intrigada.
- Sim, melhor estar em casa – Patrick respondeu nervoso – olha, minha filha, eu realmente acho que é o melhor que eu posso fazer, apesar de achar que Miranda seria melhor psicóloga.
- Não – respondeu Ben imediatamente – o Mendez é especialista em pós traumático, não vejo porque Miranda seria melhor...
- Psicologia da família, Ben, quem sabe ela consiga ajudar sua irmã a compreender porque foi que ela... – ele parou subitamente ao perceber a revolta em meu olhar.
- Eu não me joguei do mirante – Brianna disse de repente – sei o que estão dizendo mas não, eu não tentei cometer suicídio.
- Minha filha, o momento é bem delicado, eu compreendo que ... – ele tentou argumentar.
- Eu tenho certeza de que eu não me joguei do mirante – ela grita.
- Você se lembra? – questionou Patrick.
- Não, eu só...- não conseguia dizer algo coerente.
- Então, não descartamos a possibilidade e sim, é o que parece mais justificável no momento atual – Patrick disse em uma tentativa de encerrar a discussão.
- Eu acredito na Bri – disse Benjamin.
- Você sempre defende a sua irmã, não conta – meu pai responde.
- Sim, eu sei – ele suspirou – enfim, em casa conversamos – voltou-se para a irmã – o que eu levo do seu quarto?
- Tudo, eu acho – ela sorriu – provavelmente passarei o resto da vida como uma inválida no quarto de hóspedes.
- Precisa ser mais otimista – o pai a beijou na testa – sua mãe está assinando uns papéis na recepção, vou encontra-la e logo ela vai subir para esperar pela sua liberação – ele voltou-se para Ben – ela vai ficar feliz em te ver.
- Eu imagino – o rapaz sorriu sarcástico enquanto acompanhava o pai até a porta e assim que ela se fechou ele riu – imagina a mãe super feliz em me ver, Bri...
- Você sabe que ela te ama – responde a irmã revirando os olhos.
- Ela me ama com muitas condições... “Você seria ótimo advogado, sempre sonhei com um filho advogado” ou “Você seria lindo com outro corte de cabelo” – ele riu.
- Falar nisso, ela vai detestar – ela indicava o cabelo do irmão – e quando ver que fez mais tatuagens, acho que vai realmente deserdar você, Ben, sem falar na barba.
- m***a, Bri, ela queria que eu fosse o homem dos supermercados... Onde está a Bella?
- m*l vi ela – Bri responde seguido de algo que parece um rosnado – ela tá distante, cada vez pior, insuportável, talvez.
- Pior? E como ela consegue? – ele ria.
- Não sei – suspiro - Engraçado, como que pode alguém ser tão igual à mãe...
- Pra ela isso é um elogio – ele riu alto.
A porta se abriu: Lara Barnett entrou no quarto com um sorriso imenso no rosto:
- Meu bebê voltou – ela abraçou Benjamin – nossa, que corte de cabelo é esse? – ela distanciou-se um pouco e olhou novamente – pelo amor de Deus, Benjamin, mais tatuagens?
- Também estava com saudades – ele riu – você está linda, mamãe.
- Jura? Depois da última cirurgia no nariz, definitivamente fiquei satisfeita, mas sabe, ainda queria... – ela parou de repente – não, vamos falar disso outra hora – e virou-se para Brianna – e minha princesinha?
- Tudo bem comigo - respondo – estou cansada.
- Eu sei – ela beijou a testa da filha – logo o Dr. Munhoz assina sua alta, querida, e vamos para casa – ela encarou Benjamin – Ben, o papai quer que você vá para casa, aquele pulguentinho da sua irmã precisa de ração e poderia ajudar com as coisas do quarto da Bri...
- Com certeza – ele sorriu e aproximou-se para se despedir de mim – conversamos em casa, te amo.
- Também te amo – respondo.
- E então? – a mãe parecia curiosa – Do que você se lembrou?
- Nada – eu encarava o teto branco pálido do quarto do hospital – não consigo lembrar de nada... O Dr.Mendez mandou eu escrever, mas ainda não veio nada.
- Tudo bem – a mãe suspirou abraçando-me como pode – logo as coisas clareiam e você consegue se lembrar, tudo vai ficar bem.
Ficamos em silêncio por um tempo, pelo menos até o Dr. Munhoz aparecer minutos depois e assinar a minha alta, assim como uma lista de recomendações, e confirmando os horários para ir me ver em casa, pediu para falar em particular com mamãe.