- Bom dia – Lucia disse assim que Felipe aparece na porta da cozinha – tem café – ela rapidamente passou por mim apertando levemente meu braço – não esquece que a mãe espera que você esteja em casa naquele jantar essa noite – minha irmã era ótima em fazer-me lembrar do que eu queria esquecer.
- Não tenho opção? – ele encarou a irmã com certa tristeza.
- Nenhuma, maninho – ela saiu apressada pela porta da frente.
Lucia era um furacão: a mãe sonhava que ela se casaria e formaria uma família, sempre dizia que queria netos correndo pela casa e tudo mais, mas no fim, Lucia apenas saiu da cidade por um tempo, estudou e voltou quando perdeu o pai, há uns sete anos: barista formada, assumiu o bar que o pai tinha e reformulou o lugar, agora a pequena cidade tinha um ambiente bom para frequentar... A decepção da mãe com o caminho que a irmã do professor havia tomado só não era maior do que a decepção dela com ele próprio: pensou que o filho estudaria direito, medicina, e ao invés disso, Felipe voltara para casa formado em Filosofia, Sociologia, Letras, concursado pelo Estado para dar aulas no Ensino Médio: sempre tinha gostado da ideia, sempre havia imaginado ser impactante na vida dos outros, nada mais impactante do que ser professor, mas, para sua própria mãe, não era bom o suficiente.
Estela Dias Monteiro não costumava ser assim: ela era uma pessoa feliz e de bem com a vida, mas desde que perdera o marido, Marcos em um acidente de carro, há sete anos, enquanto Lucia e Felipe estavam fora da cidade, ela se tornou amarga, fria e por muitas vezes c***l e ninguém a culpava por isso: ninguém sabe como é que reagiria à perda de alguém querido, que seu companheiro por tanto tempo, por quase cinquenta anos.
Felipe pega uma caneca de café e encara a paisagem avermelhada do amanhecer da janela da cozinha: ele realmente gostava daquela vida, daquele sítio, daquele casarão. Passara ali a sua vida quase inteira, e mesmo e com todas as dificuldades do interior, para ele ainda era o melhor lugar do mundo. O salário que recebia como professor mantinha as contas e ele podia ficar perto da mãe e da irmã, o que era bom e no fundo, o que realmente importava.
Pegou sua agenda e revisou todo o seu planejamento do dia: aulas com os anos finais, períodos diversos, no interior era assim, um professor cobria diversas disciplinas e com sorte, as coisas davam certo, ele se orgulhava de conseguir fazer os seus alunos pensarem, nos dias de hoje com as informações e respostas fáceis e rápidas, qualquer segundo de reflexão era uma grande conquista para um professor.
Com as chaves do carro nas mãos e os livros na outra, Felipe gritou um tchau para a mãe que já estava envolvida em alguma coisa como horta ou jardim e tomou o seu rumo. A escola não era muito longe, uns quinze minutos a pé, mas o professor resolveu ir dirigindo naquele dia, o tempo estava para chuva e ainda precisava fazer algumas compras no fim da tarde, aquela coisa do jantar que a mãe havia inventado...
O Professor Felipe Monteiro era um homem alto, de porte elegante. Sempre bem vestido, cabelos alinhados, barba bem cuidada, qualquer uma das mulheres das redondezas diriam que ele era um excelente partido. Felipe era inteligente e estudioso desde sempre, dedicado aos seus alunos e sua carreira de escritor nas horas vagas – que eram poucas. Tinha olhos verde profundos, sorriso fácil e um enorme senso de justiça, além de ser extremamente charmoso e perfeccionista.
O burburinho normal da entrada dos alunos era uma das partes favoritas do dia do peculiar professor, que chega na escola dirigindo sua pick up ao som de Foo Fighters. Cumprimenta alguns alunos e questiona-se porque os portões ainda estão fechados, mas logo encontra com a diretora Sônia Campos que o mandar entrar, acompanhando-o até a sala dos professores.
- Bom dia – Sônia diz tensa – como todos sabem, estávamos apenas aguardando o professor Monteiro para que eu pudesse passar informações que recebi da Secretaria de Educação – ela suspira – o Governo está determinando a suspensão de todas as atividades presenciais a partir de quarta-feira – ela diz muito séria.
- Como ficarão os alunos? – questiona Mariana, que leciona Química e Física ao ensino médio.
- Precisamos entregar atividades para que sigam em casa – a diretora suspira – e trabalhar com as redes sociais, o governo vai implementar um sistema online, aulas remotas...
- Com a nossa velocidade de internet? – questiona Monteiro – Impossível.
- Bem, faremos o que for possível – a diretora suspira – não comentem nada, passaremos de sala em sala após o recreio e daremos a informação aos alunos.
- Certo – Francisco, professor de educação física pondera – e o que faremos?
- Os alunos vão para uma atividade ao ar livre, no pátio – a diretora responde – conversei com a Dra. Lemos, pneumologista, ela vai dar uma pequena palestra aos alunos, vai explicar como se prevenirem, enquanto isso, que durará por umas duas horas – vamos começar a trabalhar as atividades que solicitaremos aos alunos, para os próximos quinze dias...
Assim que a diretora saiu o burburinho começou: alguns acreditavam que as medidas eram exageradas, desnecessárias e que causariam pânico em toda a comunidade. Outros alegavam que o prejuízo ao aprendizado era grande demais. Felipe, Mariana e Francisco apenas se encaram: em silêncio os três concordam que as medidas são necessárias à preservação da saúde e bem estar dos alunos, seus familiares e também deles, professores.
- O prejuízo mesmo vai ser esses jovens de cabeça vazia em casa – diz Felipe – se eles já são difíceis em grupo, imagina frustrados e preocupados, obrigados a ficarem em casa...
- Pensei nisso – responde Francisco – mas não podemos nem nos dar ao luxo de fazermos reuniões online semanais, porque o sinal da internet é tão ruim...
- r**m para vídeo chamadas – diz Mariana – vamos pensar em alguma coisa, me preocupam os alunos que já tem dificuldades, como ficarão?
Os professores sentaram-se e começaram a trabalhar em um plano rápido para fornecer atividades, mantendo os alunos estudando em casa, pelo tempo que fosse necessário. Felipe estava inquieto, era o que mais pensava nas outras consequências: e os alunos em vulnerabilidade, que já se sentiam sozinhos ou excluídos? Eles teriam com quem conversar em casa? Com quem os jovens dividiriam as frustrações, sendo que a grande maioria não conversava sobre as coisas abertamente com os pais?
“Queridos alunos,
Diante deste cenário incomum, onde todos nós ficaremos isolados, acredito que necessitaremos de interações sociais. Conforme tenho observado as relações sociais de vocês alunos têm sido, em sua grande maioria, rasas e superficiais, vocês não se conhecem de verdade, então eu tenho uma proposta: o grupo do Zoo.
Vamos abrir uma sala de bate papo privada, onde eu envio o link e cada um de vocês cria um “perfil” mas, ao invés de seus nomes, irão dar o nome de algum animal, que por acaso, simpatizem. Ao invés de dizer quem são, onde vivem e do que se alimentam, quero que me digam o que veem, o que ouvem, o que amam, o que toca suas almas... Parece profundo, mas vou explicar melhor: quero um filme, uma música, uma frase... Quero que saiam da caixinha e não se limitem.
Esse grupo é parte do nosso trabalho: postarei links de filmes, musicas, pdf de livros e coisas do tipo, a cada postagem, vocês precisam fazer uma avaliação profunda, como isso tocou em vocês e posteriormente, discutir essas percepções com os colegas.
Caso alguém se sinta desconfortável com essa atividade, pode entrar em contato, que eu buscarei uma alternativa, a minha ideia foi que, você se expõe o tempo todo, rostos, corpos... Mas a alma, ninguém apresenta, é hora de deixar as amarras de lado, soltem-se e conversem. O Link abaixo, é o do nosso chat, encontro vocês na noite de sexta feira, vamos assistir um filme”.
Escrevera Felipe em uma nota do celular: criaria um chat, dos antigos, qualquer suspiro de internet seria suficiente. Ele iria propor atividades extra, todas de multidisciplinar, onde todos estariam livres para participar e interagir, fora de todas as amarras de status e popularidade comuns. Ele criaria o grupo e o apresentaria aos alunos assim que estivesse pronto.
- Tá escrevendo o que aí? – pergunta Francisco.
- Uma ideia – responde Felipe rindo.
- Que ideia? – o amigo o encara curioso.
- Um chat quase anônimo, para que eles possam interagir, ao menos os do último ano...
- Que ideia boa – sorriu Francisco.
- Pensei em solicitar atividades extras, resenhas críticas de livros, filmes, fazer com que se expressem de verdade, baseado no que realmente sentem, e que dividam isso sem medo de críticas ou represálias.
- Parece bom – disse Mariana que havia ouvido parte da conversa – quem sabe aproxime eles – ela suspira – estou bem preocupada.
- Todos estamos – Felipe espreguiça-se – acho que ninguém está verdadeiramente preparado para isso, para essa coisa toda.
- Tenho acompanhado as notícias – intromete-se Jandira, professora de Matemática – a maioria são falsas – ela diz com propriedade – uma forma de assustas as pessoas, que aceitam ser massa de manobra...
- Pelo amor de Deus – Francisco a interrompe – estamos mesmo falando da mesma coisa?
- Claro que sim, vocês que não percebem – ela ri – acreditam em tudo, se impressionam fácil...
- Sim – Felipe decide encerrar a discussão – vamos fingir que é simples... Tem pessoas morrendo, Jandira, muitas e muitas pessoas.
- Gente fraca – ela dá ombros – eu vou seguir...
- Não – Mariana a interrompe – por favor, nos poupe. Espero que suas medidas sejam suficientes, Dira.
A mulher sai um pouco ofendida da sala, deixando os outros professores um pouco desconfortáveis. Alguns comentam sobre o marido dela, paciente oncológico, com a saúde muito debilitada, outros parecem concordar com a posição da professora e todos tem que concordar que as coisas vão acabar mudando, de uma forma ou de outra, no final daquele dia de aulas.
O momento de dar a notícia aos alunos, foi algo que o professor Monteiro nunca gostaria de ter participado em sua vida: os olhares de confusão, medo, pavor, dúvida o encaravam como quem implora por uma explicação, e assim que a diretora saiu da sala, Felipe sentiu a necessidade de dar mais explicações:
- É um momento muito delicado – disse o professor – estamos tendo relatos muito próximos, e as proporções aumentam – ele suspira – infelizmente, eu não vejo outra saída que, no momento, vá preservar a saúde de todos nós.
- Quanto tempo vai durar? – pergunta Débora – Essa coisa toda, suspensão?
- Não se sabe – responde o professor – como a doutora explicou mais cedo para vocês, geralmente uns quarenta e cinco dias, mas se formos analisar os outros países...
- Pelo menos noventa dias – responde Lucas Lemos, filho da doutora Lemos – minha mãe comentou que antes de noventa dias, nada poderia ser realmente alterado: não tem tratamento eficaz comprovado, não tem vacina e nem previsão e não se sabe como o vírus vai acabar se espalhando, ainda mais considerando o inverno rigoroso que temos pela frente – ele dá ombros – não acredito em normalidade antes do mês de setembro.
- E quanto às aulas? – Rodrigo, um rapaz estudioso ao fundo questiona.
- Aparentemente, vocês ficarão com materiais impressos, apoio online e atividades guiadas dos livros até o Governo estabelecer um sistema de aulas online.
- Aulas online? – Debora diz apavorada – Sabe que o sinal de internet é extremamente precário, não sabe?
- Sim, eu sei – responde o professor – mas acredito que ainda não há uma outra solução possível.
O burburinho de vozes perdurou até o último minuto possível: muitos alunos estavam dispostos a deixar as aulas naquele mesmo dia, devido à ameaça iminente, outros, apenas riam e diziam ser bom estarem livres por um tempo.
- Férias de novo – disse Thomás rindo.
- Leva a sério, mano – disse Lucas em resposta – a coisa está bem f**a.
Professor Monteiro despede-se dos alunos e segue para o supermercado: faz as compras e retorna para casa. A irmã já está em casa, a segunda-feira é sempre dia de folga para ela:
- Mamãe surtou – ela diz – ouviu as notícias, cancelou o jantar...
- Para alguma coisa serviu então – ele ri e encara a irmã – estou preocupado, não sei o que vamos fazer.
- Também não sei – ela suspira e toa mais um gole da cerveja que tem em mãos.
- São cinco da tarde, Lúcia – ele ri a encarando.
- Sim, e eu poderia estar bebendo desde as dez da manhã.
- Cadê a mãe? – ele pergunta.
- Rezando, de joelhos ao lado da cama, tem umas duas horas já.
Felipe sobe as escadas e encontra a mãe exatamente onde a irmã havia informado que ela estaria:
- Mãe – ele diz.
- Meu filho – ela vira-se e começa a levantar-se com dificuldades – precisamos rezar...
- Sim – ele concorda e segura as mãos da mãe – mas precisamos nos cuidar também.
- Cancelei o jantar – ela diz muito séria – claro, os Heinfield não ficaram satisfeitos, mas acredito que fiz o certo, a garota Loren chegou ontem mesmo de viagem, eu não sei, meu filho...
- Acho que fez o certo – ele concorda com ela, e algo até soa engraçado no que ele diz – nem sei porque diabos você inventou...
- Acho que deve interagir com pessoas de verdade, meu filho – ela ri – não com personagens de livros.
- Obrigado por sua preocupação – responde Felipe sorrindo.
Felipe foi para o banho, debaixo do chuveiro refletia sobre todas as coisas que estavam acontecendo e todas as mudanças que agora seriam necessária na vida dele e de todos ao seu redor: a mãe, hipertensa, seria impedida de sair de casa sem necessidade, a irmã, provavelmente precisaria fechar o café por um tempo, ele teria que dar um jeito de dar aulas não presenciais e segurar as pontas, não apenas financeiramente, mas emocionalmente: Lúcia era furacão demais para ficar presa em casa e a mãe, bem, não estava acostumada com a casa cheia por tanto tempo desde a perda do pai.
A irmã preparou o jantar: jantava-se cedo no interior e Felipe a ajudou com a louça quando terminaram, assim que a mãe se ausentou da sala, dizendo que iria para o banho, Lúcia despejou suas preocupações:
- O que faremos? – ela questiona encarando o irmão.
- Ainda não tenho certeza – Felipe responde enquanto guarda uma pilha de pratos na cristaleira – é complicado, difícil de mensurar o tamanho da ameaça, especificamente para nós e também como que as pessoas vão reagir à tudo...
- Tem tantas mortes – ela suspirou – a mamãe ficou por horas em frente à TV, ela vinha há dias, mas o Governador se pronunciou, e ela ficou muito perturbada.
- Ela ao menos aparenta estar consciente do tamanho da ameaça – responde Felipe – vamos ver como as coisas andam nas próximas semanas, a prefeitura precisa fazer um...
- Decreto – ela suspira – vão fechar o café, eu imagino – ela dá de ombros – tenho grana, vou conseguir manter o pessoal um tempo ainda e dependendo podia pensar em delivery.
- Uma opção interessante – ele sorri – vou ver se consigo fazer uma compra online.
- Do que? – ela pergunta.
- Máscaras, álcool em gel, termômetro infravermelho... – ele responde.
- Precisa disso? – ela questiona.
- Com certeza – ele aperta levemente os ombros da irmã – parece que vai ser fácil, mas olha a barra que os outros países, muito mais desenvolvidos que nós, estão enfrentando.
- Sim – ela suspira – acho que eu preciso de um banho quente.
- E de um chá de camomila – Felipe diz – vai pro banho, eu faço o chá, e ainda podemos ver um filme juntos...
- Claro – ela riu – até você cair dormindo no sofá.
- Que seja – ele riu e bateu levemente com o pano de pratos na irmã – vamos, banho.
- Sim senhor – ela debochou.
Felipe prepara o chá e vai para a sala, onde espera pacientemente pela irmã enquanto tenta comprar alguns itens preventivos. Consegue parte deles e se dá por satisfeito, é impossível dizer o que será realmente necessário e o que não será, mas em uma hora dessas, a lei do “vale mais prevenir do que remediar” realmente interessante de ser seguida.
- Conseguiu? – pergunta Lúcia já com a caneca de chá na mão, enquanto acomoda-se no sofá ao lado do irmão.
- Sim – ele responde – álcool e o termômetro, máscaras está impossível.
- Espero que tenhamos tempo até realmente precisarmos delas – Lúcia dá um gole em seu chá e encara o irmão – sabe que eu li sobre máscaras de tecido...
- Sim – ele sorri – acho que a mamãe poderia ficar feliz de ajudar, ela sempre gostou tanto de costurar.
- Pode ser que sim, pode ser que não – responde a irmã rindo – ela anda muito difícil ultimamente.
- Me conta alguma novidade! – ele debocha.
- Estou namorando um cara – ela ri.
- É sério? – o irmão pergunta.
- Sim – ela responde – que m***a, bem no meio disso tudo.
- É – Felipe a encara – e quem é doido de namorar você?
- Ah – ela riu sem jeito – um cara aleatório...
- Da cidade? – pergunta Felipe.
- Sim – ela responde – ainda estamos muito no início, não quero dar muitas informações.
- Tudo bem – ele sorri – mesmo curioso, estou feliz por você e de luto por esta pobre alma, rezarei por ele esta noite...
- Cala a boca – ela ri e atira uma almofada no irmão – qual é o filme?
- Não sei – ele dá de ombros – escolhe você, já que eu vou dormir...