Rotina

1294 Words
Logo na primeira semana de convivência, Daniel e Letícia chegaram à conclusão de que não seria nada fácil viver um com o outro. Letícia estava impressionada com a total falta de habilidade de Daniel pra fazer absolutamente qualquer coisa que não fosse jogar videogame e tocar violão. Ele não sabia cozinhar, não sabia limpar nada, não sabia trocar uma lâmpada e parecia nunca ter lavado um copo na vida. E, para piorar as coisas, ele era a criatura mais displicente e bagunceira de todo o mundo. Do outro lado, Daniel se perguntava como uma garota tão jovem podia ser tão neurótica e controladora. A menina ainda nem tinha completado os dezoito anos e agia como uma adulta paranoica por colocar ordem em absolutamente tudo. Ela não suportava ver o menor indício de bagunça ou desordem. Daniel começou a observar a rotina da garota e teve certeza absoluta de que ela não era normal. Pra começar, ela passava uma parte enorme do dia na universidade. Estava pegando sete matérias, logo no primeiro semestre, e estudava como louca. Quando ela chegava em casa ao final do dia e Daniel achava que ela finalmente iria descansar um pouco, Letícia começava a organizar as coisas. O quarto dela, por exemplo, estava sempre absolutamente impecável. No armário, suas roupas estavam cuidadosamente dobradas e organizadas por cor. Quando terminava de organizar tudo e de reclamar do completo desleixo de Daniel, ela voltava a estudar. Para o rapaz, aquela situação ficou ainda mais absurda quando ela anunciou animadamente: – Eu consegui um estágio! – Como é? – perguntou Daniel, enquanto enfiava um pedaço de pizza de calabresa na boca. Eram nove horas da noite e eles estavam jantando pizza, sentados à mesa da cozinha. – Tudo indica que vou trabalhar das sete da manhã ao meio dia, e... – Letícia, você estuda tanto que m*l tem tempo pra dormir. Sua rotina é uma loucura. Você já não tem tempo nenhum pra descansar, e agora ainda quer fazer estágio? – Descanso é pros fracos. – ela brincou, enquanto colocava um pedaço de pizza no prato – Mas é sério, eu consigo encarar o estágio numa boa. Vou trabalhar pela manhã e estudar durante a tarde e a noite. – Meu Deus. – murmurou Daniel. Ele não conseguia entender como é que alguém podia ser assim. Enquanto ele passava mais da metade do dia dormindo, comendo e jogando videogame, Letícia não parava um segundo sequer. – Desse jeito, você vai ter um enfarte aos dezessete anos de idade. – advertiu Daniel. – Devia parar de levar as coisas tão a sério. Letícia suspirou. – É que... Você sabe, era eu quem cuidava das minhas irmãs, desde que eu tinha, sei lá, dez anos. Elas me mantinham bastante ocupada. Agora, a única coisa que eu tenho pra fazer é estudar e brigar com você. Estou me sentindo meio inútil. – Você é inacreditável. Só digo isso. – falou Daniel, lembrando-se de que nem no final de semana ela parava pra descansar. Aos sábados e domingos, Letícia ia trabalhar como voluntária em algum lugar no fim do mundo. – Não, você é inacreditável. – respondeu ela – Sabia que ontem eu achei uma garrafa vazia de Coca-Cola atrás do sofá? Acho que vou ter que te matricular em um curso intensivo chamado "Aprendendo a localização das lixeiras". Daniel revirou os olhos. – E você devia fazer um curso intensivo chamado "Aprendendo a relaxar". – Eu sei relaxar! Tô super relaxada! Não tá vendo? – ela respondeu, ao mesmo tempo em que olhava o chão da sala e encontrava algo que ela preferia não ter visto. – Ei, você derramou cereal no chão? – ela perguntou – De novo? Você vai limpar isso, e tem que ser agora, certo? Ah, e eu esqueci de comentar que a torneira da cozinha não está funcionando muito bem, eu tentei consertar, mas não tenho uma chave de f***a, e... Daniel a olhou fixamente e riu sem parar durante cinco segundos. – Viu? Eu disse. Você não consegue relaxar. Nem por um momento. Fica preocupada com tudo o tempo todo. – disse o rapaz, vencendo a discussão. – Não é verdade. – ela murmurou, franzindo as sobrancelhas. – Certo. Assista comigo a um filme que vai passar na tv, hoje. – Mas eu tinha que estudar, e... – Letícia olhou para Daniel e se deu conta de que queria provar que ela não era uma paranoica obcecada por organizar as coisas e estudar. – Tudo bem, vou assistir ao filme. – ela anunciou, decidida. Alguns minutos depois, eles estavam sentados no sofá, em frente à televisão. Letícia tentou se lembrar da última vez em que assistira tv. Não conseguiu. – Ei, tem o Leonardo DiCaprio nesse filme! – Letícia comentou animadamente – Sou fã dele desde Titanic. Os dois jovens estavam assistindo ao filme tranquilamente, mas não demorou muito para que Letícia tivesse a infelicidade de olhar para a mesinha de centro. Havia uma mancha escura e gosmenta grudada na superfície do móvel. Letícia sabia que existem dois tipos de pessoas no mundo: as que conseguem assistir tv tranquilamente, mesmo quando perto delas há uma mancha grudada na mesinha de centro gritando "me limpe, me limpe!", e as que não conseguem. Ela era, decididamente, o tipo de pessoa que não conseguia. Letícia começou a travar uma batalha com a mancha. "Eu não vou te limpar", pensou ela. "Você não me incomoda, mancha gosmenta. Este filme é ótimo e eu não vou parar de assisti-lo só pra me livrar de você." Letícia mudou de posição no sofá e tentou se concentrar em olhar unicamente pro Leonardo DiCaprio. Não conseguiu. Só conseguia olhar pra sujeira grudada na mesinha. A garota sentou em cima das próprias mãos e decidiu que não iria sair dali, custe o que custar. Depois de dois minutos de pura agonia, ela desistiu. Levantou-se do sofá como um raio. Daniel achou que ela estava terrivelmente apertada pra fazer xixi, mas a garota retornou dois segundos depois, com um paninho e um produto de limpeza nas mãos. Letícia esfregou a mancha como se a vida dela dependesse daquilo. Aproveitou e limpou rapidamente todo o resto da mesinha. Ela guardou os objetos de limpeza na área de serviço, lavou cuidadosamente as mãos e voltou a sentar no sofá. Não olhou para Daniel, estava constrangida demais pra isso. A garota sabia que ele a estava encarando e ficou extremamente frustrada com si mesma. – Nossa. Seu caso é sério. – disse Daniel, pasmo. Ele ia fazer alguma piada ou zoar a compulsão maluca dela, mas reparou que ela estava vermelha e não queria que ela ficasse chateada. – Letícia... Desculpe por ter sujado a mesa. – falou o rapaz, tentando ser o mais cauteloso possível. Letícia finalmente parou de olhar a televisão e voltou o rosto para ele. Ela o olhou em silêncio durante alguns segundos. – Você tem razão, eu não consigo relaxar. Isso é uma d***a. – ela desabafou, enterrando o rosto nas mãos por um segundo. – Eu odeio essa situação. Isso é ridículo, nós parecemos um casal divorciado que ainda mora na mesma casa, e eu estou fazendo o papel da dona de casa rabugenta, neurótica e com mania de limpeza. – E eu? – Você o quê? – Se nós somos um casal divorciado e você é a dona de casa neurótica, qual é o meu papel? – Você é o marido folgado e preguiçoso, que passa os dias deitado no sofá comendo coxas de frango com a mão. – Tipo o Homer Simpson? – É, tipo o Homer. – ela concordou, rindo. – Que tal se a gente tentasse ser mais normal? Eu vou tentar ser menos vagabundo e você tenta ter menos pilhada. – propôs Daniel. – Tudo bem. Trato feito. – a garota assentiu. Eles apertaram as mãos solenemente. – Mas já vou avisando que se você continuar escondendo garrafas de Coca-Cola atrás do sofá, eu te mato. Vamos assistir ao filme, antes que acabe.
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