Kate
Mais um corpo foi encontrado no mato. A mulher de vinte e poucos anos foi estuprada e sua garganta cortada. Esse era o segundo caso nessa semana e ainda não tinha nenhum suspeito.
Eu estava revoltada, quantas mulheres ainda precisariam morrer para encontrar esse vagabundo? O pior de tudo, era que o caso não era meu, era do sargento Siqueira, o pior lacrador, comunista e machista da polícia. Infelizmente, não podia me envolver no trabalho dele, mas não tinha problema em investigar a parte, isso se ninguém descobrisse.
— O que faz aqui, delegada Thompson?
Como gostaria de quebrar esse sorriso de deboche da cara dele.
— Só estava supervisionando o trabalho maravilhoso que a polícia presta a sociedade — fui irônica.
— Obrigado, mas não preciso da sua supervisão. Temos tudo sob controle.
— Ah, tem mesmo, é?
— Sim, eu tenho.
— Já encontraram algum suspeito?
— Estamos averiguando o álibi do namorado, assim que tivemos nossa resposta, começaremos nossa investigação.
— Quer dizer que você não tem nenhum suspeito?
— Você quer me ensinar o meu trabalho, Thompson?
— Adoraria — debochei.
Ele lançou-me um olhar malicioso.
— Deixo você investigar o caso, se aceitar passar uma noite comigo.
Sai para lá! Não sei quantas vezes ele já me chamou para sair, embrulhava-me o estômago só de pensar na possibilidade dele encostando em mim.
— Prefiro ter uma disfunção intestinal, ao sair com você.
Ele deu um sorriso escroto e virou as costas para mim. Odiava que fizessem isso.
— Vai para casa, Thompson, não é a sua folga? Você precisa do seu sono de beleza, não tem nada o que fazer aqui.
O sangue subiu pelo meu corpo, tinha certeza que meu rosto estava vermelho de raiva, pois, os outros policiais que estavam no caso do Estuprador da Navalha, olharam para mim com pavor.
— O suspeito não é o namorado, vai esperar em vão sua resposta.
Virou de volta para mim
— Já disse que não preciso de sua ajuda.
— Ela está com o pulso marcado, não devido ter se defendido, mas foi amarrada, sua calcinha foi rasgada e a garganta cortada. Tenho certeza que não vai encontrar sêmen, pois, o estuprador usou preservativo, mas tenho convicção que foi drogada.
— Ah, é? Tem bola de cristal, agora?
Eu me aproximei do sargento, o olhando de cima, não permitia que me subjugassem, ele não era melhor do que eu.
— Faz o exame toxicológico. Esse caso é idêntico com o do começo da semana, os dois estão ligados.
Siqueira olhou sem jeito para o corpo e depois para mim. Com certeza, ele considerava que eu estava certa.
— Anda bisbilhotando os meus casos, Kate?
— Se fizesse um bom trabalho não bisbilhotaria, e para você, é delegada Thompson.
Virei as costas e andei em direção da minha moto, ouvindo ele dar ordens aos outros policiais.
— Mendonça!
— Sim, senhor.
— Peça o exame toxicológico.
— Para a vítima?
— Claro, para quem mais? — falou alterado.
— Sim, senhor.
Sorri vitoriosa, no entanto para mim, não era o bastante, eu queria aquele caso e farei o que for preciso para conseguir. Coloquei meu capacete, subi na minha moto e voltei para a delegacia. Na minha ausência, quem ficava no comando era o cabo Nogueira, tenente Silvestre e a recruta Miranda.
Apesar deles fazerem um ótimo trabalho de investigação, eu odiava deixar homens no comando, eles não sabiam se comportar diante das mulheres, principalmente, aquelas que iam à delegacia pedir ajuda.
Eu e a Miranda éramos as únicas que podiam ajuda-las, já tive na pele de muitas delas, sabia conduzir um interrogatório melhor do que qualquer um dessa delegacia, e Miranda estava acostumada da forma que eu trabalhava. Ela, dificilmente, largava do meu pé.
Passei como furação pela recepção e fui direto para a sala do coronel Eduardo Gomes. Nem dei atenção para as pessoas que chamavam por mim, abri a porta do seu escritório sem bater e entrei.
— Eu quero o caso do estuprador da Navalha.
— Uau! Não sabia que sua folga tinha acabado, acho que foi a folga mais rápida desse departamento
— Não tirarei folga, até que me dê o caso.
— Se eu te der o caso, aí é que você não folga mesmo.
— Posso folgar quando encerrar.
— Aí, aparece outro caso, que será sua desculpa para não folgar.
— E eu tenho culpa que os homens são todos idiotas?
Gomes apertou os olhos com o polegar e o indicador cansado, ele tinha ficado de plantão comigo e só iria para casa às dez da noite ainda.
— Olha, Thompson, você é a melhor policial feminina que já tivemos nessa cidade, ou melhor, é a melhor policial que o mundo já teve. Quem me dera se todos departamentos de polícia tivesse uma policial como você, o mundo teria paz. Mas tudo tem limite, todos nós precisamos descansa.
Eu não conseguia descansar com todas essas mulheres sendo agredidas e violentadas, não dava. Era como se me visse na pele de cada uma delas, e lembrava de tudo o que sofri.
— O crime não descansa um só minuto.
— Nem você, pelo visto.
— Terei muito tempo para descansar quando morrer.
— Nesse ritmo não vai demorar muito.
— Gomes...
— O caso ficará com o sargento Siqueira e ponto final.
Bufei, não tinha outro jeito, tinha que investigar fora parte. Encostei na cadeira e cruzei os braços, precisava daquele caso.
— E com relação a verba, tem alguma novidade?
Meu sonho era montar uma academia de autodefesa para as mulheres vítimas de violência doméstica, ou para quem quisesse aprender. Achava que todas as mulheres deveriam saber a se defender, caso um precisasse.
— O prefeito negou o projeto, depois da última prisão que você fez.
Prefeito Jorge Montanha, o cara mais corrupto da face da terra, ele também era acusado de violência doméstica, mas sua esposa tirou as acusações. Droga! Meu sonho era prendê-lo com minhas próprias mãos.
— Por quê? O que tinha minha última prisão?
— Você amaçou os testículos do cara, foi abuso policial.
— Foi pouco, comparado com o que ele fez com aquela criança. Ele merecia muito mais. Além do mais, ele me desacatou e veio para cima de mim.
— Não duvido disso, os e**********s e pedófilos tremem só de ouvir seu nome, mas você quase foi presa, tive que abafar o caso com o prefeito.
— Não quero que você se venda por mim.
— Não me vendi, apenas estou ganhando tempo e dando corda para o prefeito se enforcar, para eu poder agir.
Sentei na poltrona em frente à mesa e cruzei os braços.
— As leis são injustas, isso sim.
— E continuará sendo, se continuarmos colocando no poder, políticos aqueles querem abrandar as leis.
Nisso, concordamos.
— Então, o que poderemos fazer para conseguir fundos?
Coronel Gomes respirou fundo, endireitou-se na cadeira, apoiou os dois braços na sua mesa e entrelaçou os dedos. Ele se compadecia com as vítimas, assim como eu, e também queria que esse projeto desse certo.
— Eu tive pensando no assunto e acho que tenho uma solução. Primeiro: você terá que se conter quando for fazer suas próximas prisões.
— Ah, qual é? Alguém tem que dar uma lição naqueles filhos da...
— Você quer a academia? — perguntou impedindo que eu falasse um palavrão.
— Sim!
— Então, terá que fazer o que eu digo.
Droga! Senti que seria uma missão quase impossível.
— Puft! Eu vou tentar.
— Ótimo! Segundo: acho que ajudaria entrar uma verba extra, se voltarmos a investigar aqueles casos arquivados.
— E como ficaria o atendimento ao público? Não posso deixar de atender quem me procura, precisaria de uma pessoa para se dedicar somente a esses casos não solucionados. Que, aliás, só não consegui solucionar, porque vocês vivem me empurrando para tirar folga.
— Não coloquei a desculpa nas suas folgas, você trabalha melhor quando está descansada.
Ele tinha razão, não tinha como contestar. O problema era que eu só conseguia descansar quando estava no trabalho, ou treinando na academia da delegacia.
— De qualquer forma, não posso atender o público que vem me procurar e trabalhar nos casos arquivados. Precisaria de alguém para esse serviço.
— Eu darei um jeito, agora para casa.
— Mas...
— Dispensada, delegada Thompson.
Indignada, levantei-me, bati continência e me retirei. Apesar da raiva que me consumia, o coronel Gomes era o único homem que eu respeitava.
Ele era como um pai para mim, ajudou-me quando mais precisava e ajudava-me até o presente momento, quando precisava me tirar dos apuros, como no caso do cara com os testículos amassados.
Talvez eu tivesse exagerado um pouquinho na hora da prisão, mas o estrago que ele fez com aquele garoto inocente, foi pior. Se doía na minha alma ter que trabalhar com mulheres que sofriam violência doméstica, ou algum tipo de abuso, piorava quando se tratava de uma criança, eu ficava possessa.
Gomes me ensinou tudo que sabia, por causa dele estou na polícia, considerada a melhor delegada do estado. Devia minha vida a ele, e uma vida inteira não seria suficiente para sanar essa dívida.
Saí da sala do Gomes e caminhei em direção da saída. Antes que eu alcançasse a porta a recruta Miranda, interceptou-me.
— Kate — chamou ela. — Tem uma mulher que quer falar com você.
— Quem?
— Não sei, essa é nova.
Mais uma vítima de algum pervertido? Bom, parece que não irei para casa, como Gomes queria. Fui para minha sala e avistei uma jovem, bem mais nova do que eu, estava com o rosto, machucado e a roupa um pouco rasgada.
Nem sentei na minha cadeira, indiquei o sofá para a garota sentar e sentei ao seu lado. Sempre me mostrava próxima as vítimas, igualava-me a elas, compadecia pelos seus sofrimentos e fazia justiça que elas não podiam fazer sozinhas. Miranda sabia o procedimento, ela ficava encarregada de registrar os depoimentos.
— Conta-me, quem fez isso com você?
— O marido da minha mãe.
Sempre era a mesma coisa, ou o marido, ou o padrasto, ou um primo. Tinha também os enteados dos cônjuges, tios, vizinhos, até os próprios pais. Aqueles que deveriam proteger seus filhos e não o faziam. Eu ficava revoltada com aquilo e descontava toda a minha raiva na caça desses filhos da p**a. Era a minha maior diversão.
A garota relatou o que aconteceu, sofria ao lembrar de tudo, se sentindo culpada. Pensava em que momento o provocou uma situação, para que aquele monstro tomasse essa atitude.
— Acredite em mim, você não tem culpa pelo o que aquele desgraçado fez com você.
— Então, por que eu sinto que fiz algo de errado?
— Ele já violou seu corpo, não permita que ele viole sua mente.
Tentei deixa-la mais confortável possível, para que ela se abrisse comigo e não deixasse passar nada. Quanto mais detalhes ela pudesse me fornecer, mais eficaz seria o meu trabalho.
Ao final do depoimento, dei-lhe um copo de água e mandei que lhe preparasse um chá, mas ela preferiu café.
— Você tem aonde ficar esta noite? Não pode voltar para casa de sua mãe.
— Tenho a Jeniffer, ela já passou por algo parecido.
— Ótimo, você terá para quem contar sua história.
— Você a ajudou-a quando ela precisou.
— É mesmo?
— Sim, olha a foto.
Não era boa com nomes, mas, era boa com fisionomia. Ao mostrar-me a foto, lembrei imediatamente do caso. Só que com a Jeniffer, foi o marido que a agrediu.
— Ela continua com o marido?
— Não, ele está preso ainda, aguardando julgamento. Já pediu para ela ir visita-lo, ela fica balançada, mas nunca foi. Ao mesmo tempo que tem medo dele, ela ainda o ama.
Tudo bem, não podia julgá-la, já passei por tudo isso e era difícil desapegar.
— Dê-me quarenta e oito horas, para prender o seu padrasto.
— Mas se ele fugir?
— Pelo o que você me disse, tenho certeza que ele confiará no seu silêncio. Você foi esperta em prometer que não diria nada e logo em seguida veio me procurar.
— A delegada Thompson tem um jeitinho especial de fazer os homens confessarem — disse Miranda. Sorri, apesar de que terei que pegar leve nessa prisão.
Chamei a legista para fazer o exame de corpo de delito, conseguimos coletar amostra de sêmen, digitais em seu corpo e tiramos fotos das marcas de agressão para comparação. Era humilhante passar por aquilo, porém, era necessário.
Quanto mais rápido as pessoas denunciarem e coletarmos as provas, mais rápido e eficaz seria a prisão do suspeito. O problema era que nem todas as mulheres denunciavam, por medo ou vergonha, assim que o delito era cometido. As provas esfriavam e o acusado se safava, podendo fazer aquilo de novo com ela ou com outras mulheres.
Entrei em contato com a psicóloga para acompanha essa jovem, ela iria precisar dessa ajuda, aquilo nunca mais sairia da sua cabeça.
Com tudo já encaminhado, era a hora da ação.
— Delegada Thompson!
Droga!
— Gomes! — Fingi inocência.
— Coronel Gomes para você, delegada.
— Sim, coronel Gomes!
Os outros policiais seguravam a risada, eles adoravam quando eu levava um esporro.
— Para casa.
— Mas, senhor, temos uma ocorrência.
— Deixa que os outro providencie.
— Mas...
— É uma ordem, ou ficará em prisão militar.
Ok, última coisa que eu queria era ficar presa sem poder exercer a minha função.
— Sim, senhor.
Bati continência e saí. Dessa vez, o coronel se certificou que eu iria embora mesmo. Porém, não disse que iria para casa.