Era a segunda vez que eu me queimava com a minha xícara de chá.
Eu tinha comprado recentemente ao descobrir uma loja na internet sobre artigos literários, e eu me apaixonei instantaneamente pela xícara com tema de Harry Potter que apenas exigia o brasão pertencente ao livro quando era enchida até o topo por um líquido fumegante. Na maioria das vezes, eu apenas enchia de água só para ter o prazer de ver a coloração escura dando lugar para o brilho que continha o desenho da magnífica escola de bruxaria mais famosa do mundo literário.
Enquanto eu olhava tristemente para as bolhas que se formaram na parte lateral da minha mão, o líquido quente esfumaçava o aroma refrescante do chá de capim-cidreira. Eu amava tomar chá. E odiava tomar café. Eu sempre tinha de escutar as pessoas questionando o que é que eu tomaria quando me tornasse velha e cansada, e a minha resposta sempre era chá, ou muita Coca-Cola. Mas nunca café.
Café me deixava elétrica nos momentos em que não precisava, e sonolenta quando não podia descansar. Então o chá revigorava as minhas energias. E eu estava sempre acumulando algumas caixas com sachê em meu armário na cozinha, porque sentia que podia faltar tudo em minha vida, menos uma boa dose de chá. Recentemente, depois de um dia muito complicado nos dois trabalhos, eu descobri que o chá matte se tornava ainda melhor com uma dose caprichada de vodca.
Para o descontentamento do meu cérebro que preferia muito mais lidar com a ebriedade do álcool do que com a dor causada pelas queimaduras do líquido quente, eu não acrescentei nada além da água contra o saquinho de ervas, e comecei a tomar o chá em pequenas bebericadas, queimando a língua quase por completo em cada gole. Mantive o olhar desviado para a janela sem cortina. Eu sempre conseguia escutar muito barulho dentro do prédio quando estava naquele cômodo, porque a minha cozinha tinha a sua janela virada para as vistas dos corredores daquele andar, de modo que eu pudesse escutar todos os seus moradores chegando.
Naquele horário, porém, eu apenas conseguia escutar um leve ronronado do gato que se esgueirava no primeiro andar, subindo contra a pequena fonte de água que se localizava no meio do local — cuja utilidade era apenas ser uma parte da decoração, já que não havia água alguma jorrando —, de modo que qualquer um que olhasse pelo corredor, veria o espaço lá embaixo como uma área de lazer que nunca estava ocupada.
Passava da meia noite. Eu estava na cozinha porque queria me preparar com o máximo de armamento possível para encarar a leitura de cartas que a mãe de Bianca faria para mim. Depois de uma longa conversa, que durou aproximadamente doze horas, ela me convenceu a estar acordada durante a madrugada para que ela pudesse consultar as suas entidades favoritas afim de descobrir as respostas para as minhas dúvidas mais secretas.
Nunca fui uma pessoa muito medrosa. Mas, devo admitir, estar acordada às altas horas da noite para poder fazer uma consulta espiritual era uma coisa que arrepiava até onde não se imagina que possa sentir arrepios. E, enquanto eu virava a xícara e depois enchia de água para deixá-la na pia, eu não podia deixar de pensar no que é que uma pessoa normal estaria fazendo em sua madrugada, comparando comigo mesma, que ou tinha de ler até os olhos queimarem para suportar os meus próprios pensamentos, ou tinha de sempre arrumar alguma maluquice noturna para fazer.
A maluquice da noite começou enquanto eu desligava as luzes da cozinha — porque aparentemente os donos do prédio achavam que o desperdício de energia era um assunto trivial, e não se preocupavam de que todos os condôminos gastassem horrores com a conta pelas duas lâmpadas em cada cômodo —, e me certificava de fechar a porta do banheiro e da sala, achando que não deveria ter portas abertas para não receber aquilo que eu não queria em meu lar. Na sala, a falta de móveis sempre me deixava em um profundo estado de exacerbação, já que fui criada num lar onde minha mãe estava sempre trocando os móveis ao menor sinal de arranhão, e agora eu tinha apenas um conjunto pequeno de mesa e cadeira que eu nem mesmo usava, mas deixava ali por puro capricho.
Fechei a porta do quarto em minhas costas e me sentei na cama, cruzando as pernas para trazer meu notebook o mais perto possível sem que isso acabasse ainda mais com as minhas vistas, que já eram bastante precárias depois de tantos anos me afundando em livros ou tanto tempo diante da tela do celular. Eu iniciei o acesso ao meu w******p e acessei a conversa com Izabel. Ela estava online, mas deveria ainda estar se preparando, pois não me enviou nada que coubesse como um alerta de que poderíamos começar.
Enquanto nada acontecia, desviei os olhos para a minha estante, onde minha televisão jazia em silêncio e um pequeno ursinho se colocava de pé ao lado do único porta-retrato que existia em minha casa. A imagem do meu sobrinho mais novo, com cabelos dourados e encaracolados, surgiu mesmo às sombras. Ao lado dele, um pequeno vidro de perfume se encontrava, e ao lado deste, uma caixinha de música feita de madeira crua. Como tudo em minha casa, não havia luxo, não havia desperdício com itens demais além do que se espera encontrar, e eu até achava um pouco interessante não ter que me preocupar em tirar tanto ** de prateleiras lotadas de bugigangas.
Distraída demais com as sombras do quarto que se curvavam para me deixar identificar os objetos que ali pertenciam, eu quase nem reparei que a conversa aberta de Izabel agora continha duas mensagens não lidas, em que ela me informava que já estava pronta para a minha consulta. Tive um mau presságio de achar que pessoas que liam Tarot também poderia alcançar o mesmo patamar de desconfiança que eu nutria por médicos.
— Tamara, minha linda, primeiramente eu preciso que você diga alto e bem claro o seu nome, a sua idade, e que eu tenho permissão para tirar as cartas por você — disse Izabel através da tela em meu notebook, posicionando em uma mesa um baralho cortado em três para que eu escolhesse.
Por mais estranho que parecesse, e na verdade era bastante estranho falar aquilo em voz alta, pigarreei para limpar a garganta e me ajeitei na cama conforme observava as rechonchudas mãos de Izabel passando sobre o baralho, como se estivesse sentindo verdadeiramente a minha energia. Eu não sabia até onde estava convencida de que aquilo era real, mas decidi arriscar, fazendo apenas duas perguntas.
— Eu, Tamara Santos, tenho vinte e três anos de idade e autorizo Izabel Goulart a fazer a leitura de cartas para mim, tirando-as em meu nome.
Izabel suspirou profundamente e deixou as pontas dos seus dedos pousarem numa das cartas, seguindo rapidamente para a carta adjacente e então outra e mais outra, até que formasse uma estrela com cinco cartas. Ela as deixou virada para mim por um instante e eu só podia escutar os estalos característicos de suas velas queimando fogo em cima da mesa ou um familiar som de ventania.
Era uma da manhã de uma quarta-feira, e eu estava trancada em meu quarto, morrendo de medo de que isso invocasse qualquer coisa que não deveria. Novamente digo, aquela não era a minha religião, mas fazia parte de alguma crença que minha mãe poderia ter me deixado ciente quando era pequena — ela tinha medo de qualquer ligação espiritual através da magia, e o Tarot era uma dessas ligações.
No entanto, estava me sentindo bastante em paz e confortável. Izabel tinha uma voz cadenciada e macia, que trazia conforto conforme falava. Eu não sabia como era o seu rosto, apesar de ver a sua foto no w******p. Estávamos em uma ligação por chamada de vídeo, mas eu só podia ver suas mãos, as cartas, alguns cristais descansando sob uma pequena fonte de água e a própria mesa que os apoiava.
Não sabia sequer como havia sido sua preparação para aquela leitura, embora soubesse que havia algo a ser feito antes. Nem ousei perguntar. Minha consulta estava sendo feita apenas por mera curiosidade. E também por que eu não queria que Pink continuasse resmungando em todas as minhas visitas — o que era em todas as noites — que os seus cristais estavam se escurecendo pela minha energia negativa.
Eu me sentia mesmo muito pesada ultimamente. Não sabia se precisava de um ano inteiro de férias, se ganhar na megasena ou simplesmente sumir sem dar informações para ninguém. Eu não conseguia encontrar uma maneira para aliviar aquela pressão constante na cabeça. A sensação de que eu não estava sendo produtiva e que meu tempo estava sendo gasto com futilidades. Eu não conseguia me livrar dessa sensação de impotência. Era como se, nos raros períodos em que eu estava tentando descansar, a minha cabeça se apoderasse de uma imensa culpa.
Eu sabia que precisava de terapia. Cada dia que passava estava mais ciente de que alguma coisa não andava muito bem com a minha cabeça. Talvez fossem muitas histórias acumuladas e prontas para serem escritas. Ou talvez fosse por muito trabalho e estudo também acumulado. Eu me sentia em pressão, como se a qualquer momento o meu cérebro fosse se recusar a formular uma frase sequer.
Queria mesmo acreditar que todo o mundo estava daquela maneira. Que a sensação de pânico e culpa assombrasse a todos que estavam verdadeiramente preocupados com a duração da pandemia. Já havia se passado doze meses. Éramos um dos poucos países que ainda não tinha conseguido se reerguer com a crise, e isso me perturbava demais. Eu não conseguia suportar a ideia de ficar desempregada. E pode-se dizer que eu tinha me empenhado em conseguir um segundo emprego por conta desse medo, mas também pelas dívidas que ainda precisava pagar.
Então eu não conseguia ter um momento apenas para mim. Eu estava o tempo todo buscando soluções para pagar as minhas contas e a minha faculdade, que eu só fazia para ter como ganhar mais dinheiro pelo estágio. Eu passava todas as noites pensando numa forma de conseguir ficar rica absolutamente do nada, e não podia me dar ao luxo de ficar apostando na loteria porque cada centavo me fazia falta. Por um momento, eu até pensei em perguntar para as entidades de Izabel se elas sabiam os números de alguma aposta milionária, mas pensei que isso poderia soar de maneira ofensiva, e decidi perguntar o básico. Algo sobre o amor e algo sobre o meu trabalho.
Porque a minha maior dúvida sobre o meu trabalho era se eu deveria continuar morando naquela cidade esquecida por todos e continuar me matando de trabalhar para não chegar em lugar algum. Eu tinha planos de ir para a capital, mas alguma coisa me prendia naquele lugar, então voltamos às minhas questões sobre o amor. Porque a coisa que me prendia naquele lugar era o meu ex-namorado, Cristiano, que eu considerava o meu único amor. Por causa dele, os meus planos para sumir pelo mundo ficaram um pouco estranhos. Eu não me sentia mais à vontade para sair por aí, porque ainda tinha a esperança de que em algum momento ele pudesse me procurar, e eu tinha de estar lá para isso.
— Bem... — Izabel murmurou, virando a primeira carta...— Você me fez duas perguntas, então pra cada uma trarei um baralho diferente.
— Certo — falei em tom de dúvida.
Eu não conseguia saber a diferença de um baralho para o outro. Izabel falava com uma certeza tão grande que eu não desconfiaria se ela fosse uma charlatã. Quero dizer, ela não estava tentando adivinhar o meu futuro, só estava respondendo às perguntas que fiz ao universo, e que, honestamente, devia ser o que todo mundo sempre perguntava. De modo que ela talvez já soubesse de cor quais palavras bonitas deveria dizer para convencer alguém. Eu não sabia no que acreditar.
— Você me perguntou se os problemas em seu trabalho continuarão os mesmos... E me parece que Madame Lenormand quer deixar você em alerta, Tamara... Há muitas coisas pesadas em seu caminho... — então ela virou todas as cartas e as estudou por um instante. — A torre por si só não é de todo r**m, mas seguida pela âncora significa que você se sente presa, ou pensando demais numa atitude que já deveria há muito tempo ter tomado.
Imediatamente eu repensei a decisão de pedir a minha demissão e me mudar para outra cidade novamente, que, ao pensar também em Cristiano, aquilo tinha se passado pela minha cabeça em alguns momentos bem raros dos meus dias. Era a única coisa que tinha me deixado em conflito desde sempre. A verdade é que a minha vida era uma verdadeira incógnita para todos. Ninguém sabia porque deixei o meu estado, ninguém sabia onde eu queria chegar, mas de algum modo as cartas pareciam saber.
— Que estranho — comentei, incomodada com o vácuo que se seguiu.
Eu tinha uma nova preocupação agora, que era em relação ao meu trabalho de amanhã, porque geralmente eu chegava tão cansada em casa que não fazia mais do que jantar e dormir. Naquele dia, eu estava acordada e o relógio estava sedento para me ver despertar com mais sono do que quando dormi, acelerando seu passo e correndo os minutos feito doido. Já era uma e meia da manhã, e eu estava começando a ficar nervosa de ter iniciado aquela consulta naquele horário. Mas Izabel me garantiu que era na madrugada que as respostas se tornavam mais claras, e eu acreditei na palavra dela.
Eu deveria ter questionado quais divindades estaríamos contatando para que o melhor horário fosse na madrugada. Porém, eu não conseguia mais sequer formular uma frase sem ter que pensar profundamente nela. Estava cansada, mas curiosa, e estava nervosa por saber que acordava em menos de quatro horas e que trabalharia o dia todo cansada e de péssimo humor.
Se alguém me perguntasse o motivo para as olheiras ainda mais marcadas, ou para os constantes bocejos durante o dia, eu teria que pensar numa boa desculpa. Porque a sociedade não estava muito preparada para lidar com inofensivas consultas de Tarot. Eu não sabia como devia lidar com aquilo e como poderia contar para alguém. Então manteria em segredo.
— Por outro lado — continuou Izabel, encostando um dedo na carta de um cachorro e de um homem. — Há alguém que nutre um carinho profundo por você, e pelo o que parece se trata de um homem do seu passado. Não é alguém novo. E este mesmo homem aparece novamente no seu caminho para fazer com que as coisas melhorem. Mas não é no sentido amoroso. A última carta nos mostra que há um cavaleiro, um mensageiro... Ele trará boas notícias e boa sorte em sua questão profissional. Trará uma melhora absurdamente boa em sua vida.
— Este homem... Talvez seja meu ex-namorado. Somos amigos agora, depois de tudo...
E esse era o assunto da minha próxima pergunta, porque eu precisava que o destino ou o universo ou as forças ocultas soubessem se algum dia eu iria superar o fim do meu último e único relacionamento duradouro. Porque a minha real intenção com aquela consulta era saber se alguém poderia ter feito algum trabalho religioso para que eu não fosse capaz de me apaixonar novamente. Porque depois que eu e Cristiano nos relacionamos, nunca mais consegui sair com outra pessoa e não pensar nele.
O relacionamento tinha durado por sete meses. E tão repentinamente tinha começado, ainda mais de maneira inesperada ele chegou ao fim. Eu amava Cristiano com todas as minhas forças. Antes dele eu saí com outras pessoas, inclusive, lamentava profundamente ter perdido a minha virgindade com alguém que não fosse ele. Porque ninguém no mundo me faria sentir o que Cristiano conseguiu. E isso era um fato irrefutável. Depois disso eu não pude sentir mais nada por ninguém.
Parecia que o meu corpo e o meu coração foram programados para amar apenas aquele homem, e eu me sentia uma completa i****a por pensar daquela maneira, porque eu sabia que os homens não se apegavam da mesma maneira que as mulheres. Apesar de ainda estar em contato com a mãe e a irmã de Cristiano — que se recusaram a me abandonar quando souberam do fim do nosso namoro —, eu me remoía pensando que ele poderia estar a qualquer momento se enfiando nas pernas de outra mulher.
Por um lado, eu acreditava que ele tinha sentido algo forte por mim. Talvez não ao ponto de querer me amar pelo resto da vida, como eu estava propensa a fazer por ele. Mas o suficiente para tê-lo feito chorar ao pedir um tempo da nossa relação, ao dizer que estava ficando confuso e que eu não merecia alguém que não poderia se doar por completo para mim. E isso não foi por conta do trabalho dele, Cristiano era instrutor de paraquedismo, então ele tinha bastante tempo livre para me ver. A questão estava em sua cabeça. A morte do pai de Cristiano mexeu profundamente com ele, e eu acho que uma pontinha de depressão estava começando a se aflorar em seu peito, mas no momento em que tomei a frente para lidar com o problema junto com ele, nós acabamos nos desentendendo, e ele pediu por um tempo.
Esse tempo já durava a um ano. E mesmo assim, se ele aparecesse em minha porta naquele exato momento, atrapalhando completamente a minha consulta ao universo, eu teria estado disposta a continuar correndo atrás dele e lutando pela nossa relação. Isso pode parecer com uma imensa falta de amor próprio, mas eu preciso voltar a dizer que nenhum outro homem que eu tenha me envolvido até aquele momento foi capaz de me fazer sentir como Cristiano fazia.
E nós ainda mantínhamos contato. Quero dizer, ele respondia quando eu mandava mensagens, mas ele não puxava conversa. Ele via as fotos que eu colocava em meus perfis, porém, não comentava nada. E era angustiante vê-lo online e não falando comigo. Eu sabia que havia alguém. Sabia que ele estava seguindo em frente, e que aquele tempo pedido jamais chegaria ao fim.
No entanto, eu não conseguia me desprender daquela relação. Já tinha recorrido a me envolver com outras pessoas. Tinha tentado arduamente ocupar a minha cabeça com o máximo de tarefas possíveis. E mesmo assim, lá estava Cristiano, sobressaindo qualquer pensamento ou qualquer interesse em outra pessoa.
Isso poderia muito bem estar associado ao meu problema de desapegar às pessoas que já amei, mas eu sabia que era algo muito mais profundo. Que a dor que senti quando Cristiano terminou comigo, cavou fundo em meu coração e não me permitiria mais amar outra pessoa que não fosse melhor do que ele. Porque igual, eu já havia encontrado. Mas jamais alguém que o superasse em qualquer coisa.
E eu odiava sequer lembrar do nosso relacionamento, porque me propus a manter uma amizade com ele, e essa amizade me fazia me humilhar e me arrastar aos pés dele todas as vezes. Mas ele era digno e bom o suficiente para nunca me dar esperanças de que voltaríamos, embora sempre deixasse claro de que eu era boa demais para aceitar qualquer coisa em nome da carência. Por causa dele, eu nunca mais consegui sair com um cara por mais do que dois encontros.
O amor me machucou de uma forma tão dura e profunda, que as marcas me deixaram um trauma. E assim como boa parte das coisas ruins em minha vida, eu decidi engolir e seguir em frente, procurando pelos cantos até encontrar alguém que pudesse me fazer sentir viva novamente.
— E então temos a sua pergunta sobre se um dia encontrará alguém melhor do que o seu ex... — Izabel embaralhou outro baralho e mais depressa do que antes, retirou cinco cartas e formou a estrela, deslizando seus dedos sobre os desenhos. — Primeiro eu quero que você saiba que este é o baralho da vovó cigana... Ele traz as verdades que os nossos entes queridos sabem... É uma leitura um pouco mais profunda, mas irei tirar uma carta do baralho das bruxas quando terminar este.
— Tudo bem — respondi, verdadeiramente com medo.
— A primeira carta que temos é um cão, pode também representar um amigo leal ou que alguém precisará da sua reciprocidade para permanecer... Ao lado dele temos um homem num cavalo preto, que ao contrário do cachorro é desleal, falso e só se aproxima de outros em busca de alguma vantagem pessoal. Abaixo das duas cartas, no centro, há uma mão com aliança apontando para cima. Ela poderia representar um casamento, mas entre essas duas cartas destoantes significa que o homem falso, desleal e c***l, terá o que está buscando. Tamara, tome cuidado. Este homem será a sua ruína.
Um nó se formou em minha garganta. Isso me deu medo de verdade. Muito medo. E eu não sabia muito bem porquê, mas acabei abrindo um pequeno sorriso. Não estava impressionada. Eu sabia que não iria conseguir amar outra pessoa, mas era um pouco triste saber que nem o universo acreditava mais nisso.
— E quanto ao resto? — tentei não soar muito brusca, mas já tinha minha resposta.
Izabel pareceu engolir em seco, observando as duas imagens restantes; Um médico e um guerreiro com espada. Eu não sabia o que as imagens significavam, mas um arrepio estranho começou a beijar a base da minha coluna. Tive a estranha sensação de que estava revivendo aquele momento. De que eu já sabia o que ela falaria antes mesmo de fazer. Acabei engolindo em seco também, os olhos atentos nas cartas.
— Você estará curada dos seus problemas sentimentais, mas fará um inimigo c***l. Talvez o mesmo homem que vimos nas primeiras cartas. Eu quero dar a você um conselho de amiga, Tamara... Porque a energia que sinto, não é boa. E você pode não acreditar muito nisso, mas tente não se entregar de corpo e alma tão logo. Isso vai quebrar você de um jeito que você nunca imaginou que quebraria. Não se envolva profundamente com o homem que cruzar o seu caminho, ele não tem boas intenções, por mais que pareça. Não confie no que ele diz sobre si mesmo, é mentira. Não se entregue para alguém que só tem o objetivo de usar o seu corpo e nada mais. Por favor, estou fazendo este alerta porque posso ver a carta com o resultado desta escolha... Você não será mais a mesma depois deste homem, Tamara. Fique em alerta.
— Eu... Eu acho que preciso desligar — falei, ligeiramente incomodada. — Obrigada pela consulta, Izabel. Você é muito boa no que faz.
— Espere! — Ela disse, pegando um baralho bem diferente dessa vez. Todo em tons de roxo e desenhado com luas, as cartas também eram maiores e o formato diferente das outras. — Quero tirar uma carta do baralho das bruxas para você. É a última coisa que você precisa saber.
Suspirei, mas não pude desligar a chamada antes de vê-la puxar a carta e trazê-la até a câmera. Eu não sabia como dizer não para as pessoas. E isso geralmente me envolvia em situações que me levavam ao auge do estresse, porque eu também não sabia como me desvencilhar de problemas. E eu não pude fazer nada enquanto Izabel avaliava a carta que havia retirado do baralho, e algo no seu silêncio me fez ajeitar a postura diante do notebook e olhar com mais atenção conforme ela erguia a carta.
— A morte — ela falou em voz baixa, como se temendo atrair uma entidade maligna. Fiquei mais do que tensa, e a porta do meu quarto escolheu esse momento para se mexer pelo vento da janela aberta da cozinha que veio em sua direção. O meu coração quase saltou da boca. — Significa transformação. O que quer que aconteça, fará uma outra mulher renascer em você, Tamara. Você ficará forte pela dor e descobrirá quem é você de verdade e o que realmente precisa em sua vida. A resposta não é, e nunca será o amor, é o seu crescimento pessoal. É disso que você precisa. Por isso o universo está enviando esse homem para você, minha querida, para que você aprenda. Então eu volto a dizer: Não se envolva amorosamente com este homem, Tamara. Zele pelo seu coração, porque ele ainda é bom.
— Obrigada, Izabel. Mas preciso desligar.
— Posso ajudar a esquecer o seu ex-namorado, se quiser — disse ela, quando eu já estava quase fechando a conversa.
Eu pausei o mouse em cima do X e esperei.
— Existe algo desse tipo? — perguntei.
— Na verdade, posso ensinar um feitiço que vai tornar qualquer homem louco por você — disse ela em voz baixa. — Mas você precisa ter certeza de que não quer mais nada com o seu ex-namorado. Precisa estar pensando em si mesma no momento da magia, para que não acabe ligando os seus pensamentos aos dele, e o feitiço agindo contra você.
— Eu gostaria de saber como isso é feito, por favor — falei mais do que depressa.
Eu amava Cristiano. Tinha certeza de que não amaria ninguém além dele. No entanto, eu já estava mais do que saturada de toda aquela situação. Ele só respondia as minhas mensagens quando queria me reencontrar, e mesmo que isso demonstrasse toda a minha falta de amor próprio, eu deixava que ele usasse o meu corpo da maneira que quisesse, só porque eu também gostava de tudo o que ele fazia na cama.
Eu já estava mais do que cansada de tudo aquilo. Eu não queria mais ser a pessoa que não consegue se relacionar com nenhum outro, enquanto ele só me procurava quando nenhuma das garotas em sua lista de contatos respondia. Eu queria me libertar, apesar do amor que sentia por ele, e da esperança de que em algum dia pudéssemos fazer aquilo funcionar de novo. Eu não aguentava mais.
— Você vai precisar de uma dúzia de pétalas de rosa e um pouco de mel — disse Izabel, cruzando as mãos diante da câmera. Ela gesticulava muito para falar. — Então, numa noite de lua cheia, principalmente no final de semana... Do sábado para o domingo... Esquente água numa bacia e despeje as pétalas de rosa, mentalizando que aquela for em pedaços é feita da essência do seu próprio corpo. Depois misture o mel, chamando todas as entidades do amor e da luxúria para estarem presentes em seu banho. Enquanto jogar a água contra o corpo, eu quero que você mentalize o quanto é poderosa, o quanto pode ser suficiente para si mesma. Eu quero que você entenda que não precisa de um homem para estar completa e de que você não merece pouco. Eu quero que você diga em voz alta: “eu tenho aquilo que ele quer, eu sou aquilo que ele precisa, eu posso fazer o que eu quiser.” Depois pode voltar a usar a bacia para que você costuma fazer e o feitiço está feito.
Eu franzi de leve o cenho. Encontrar rosas vermelhas não era tão fácil assim. Metade das floriculturas tinham se fechado desde a Pandemia, sendo um trabalho considerado pouco essencial. E eu não conhecia ninguém com um pé de rosas para me oferecer algumas dúzias de botões já florescidos. Teria que encontrar na internet algum lugar ainda em funcionamento, e ainda precisaria do mel, porque em casa só tinha açúcar. Sem falar na lua cheia. Até para se fazer magia era preciso muito mais do que boa vontade.
— Obrigada, Izabel — falei em voz firme. — Vou aceitar os seus conselhos.
— E não se esqueça, querida — disse ela numa entonação grave. — Não se deixe levar pelo homem que surgirá em seu caminho. Ele não é sincero. Ele apenas quer algo que você possui em seu coração. Não se deixe enganar. Não desperdice a sua juventude ao lado de um homem que pode acordar a qualquer momento e decidir que não quer mais estar contigo. Seja sua própria força. Seja o seu amor. Porque há um homem chegando, e ele mudará a sua vida completamente.