— Joanaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa! Que demora é essa? — gritei na direção da casa para apressar meus filhos.
Tínhamos que sair de casa cedo para chegar à fazenda antes da festa de candidatura da Mariana, como prefeita da cidade, e meus filhos com suas heranças paternas, de sempre fazer com que nos atrasássemos aos compromissos, demoraram para entrar no carro, ativando o meu modo estressada nível máximo. Finalmente a Joana entrou no carro e foi logo falando:
— Mãe, você é muito estressada, só estava retocando a maquiagem!
Ah, lógico, eu era a estressada e comprometida a chegar no horário correto, mas preferi não discutir. A Joana estava em uma fase difícil, na qual queria me desafiar sempre e eu tinha a certeza de que iria me enlouquecer. Respirei fundo e perguntei:
— Cadê seu irmão? Que demora é essa?
Ela, lixando as unhas, lentamente respondeu, debochada:
— Você que é a mãe, não sabe, quem dirá eu?
Respirei fundo mais uma vez e desci do carro, possuída pelo estresse, tomada pelo desejo de explodir, gritar e ao mesmo tempo sumir. Entrei como um foguete na nossa nova casa e minha mãe, ao me ver furiosa, me acompanhou, falando:
— Calma, calma... tenha paciência.
Eu esbravejei, sentindo meu corpo tremer:
— Eu não tenho mais paciência, não tenho mais calma, na verdade, eu não tenho mais nada! — Gritei, ainda mais alto: — JOÃOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!
O que a Joana tinha de me tirar do sério com seus deboches, o João me tirava do sério me desafiando. Encontrei-o de braços abertos em postura de afrontamento e com a língua para fora. Ele falou, com deboche:
— Eu não vou, lá lá lá...
Meu corpo tremeu, meus olhos arregalaram e tenho certeza de que todos os músculos do meu corpo acionaram de uma única vez. Minha mãe se jogou entre mim e meu filho, antes que eu perdesse minha lucidez por completo e falou, com uma voz serena, que costumava me calmar
— Acho que você pode deixar o João comigo hoje. Temos muitas brincadeiras para fazer.
A voz dela não teve o efeito desejado e eu continuei respirando fundo, tentando achar alguma calma, eu precisava me acalmar. Eu nunca havia batido no meu filho, mas dessa vez se minha mãe não ficasse entre nós dois, eu teria perdido a cabeça. Ele gritou:
— Eu odeio você, mamãe. Eu quero morar com meu pai.
Pronto, aquilo teve o impacto de atingir até os meus mais íntimos sentimentos e meu corpo que estava rígido, amoleceu imediatamente, e a tristeza tomou conta de mim por completo, fazendo com que os meus músculos fossem desativados com uma perda de batalha irreversível. Meu filho me odiava e me culpava por não morar mais em Praia de Itamaracá. Ele nunca aceitou o meu divórcio e vivíamos em uma batalha diária, competindo quem tinha mais força, mais razão. Meu pai entrou no quarto e, percebendo aquela cena perguntou ao João:
— Garotão, o que aconteceu?
O meu pai se aproximou de nós e minha mãe falou para mim:
— O João só quer ficar em casa, minha filha! Que tal só dessa vez você deixar?
O papai se abaixou e ficou na mesma altura que o João e insistiu:
— Garotão, lá vai ter uma fazenda para você desbravar, vai ser legal!
Eu já disse que tenho os melhores pais do mundo? Pronto: eu tenho os melhores pais do mundo! O João mudou a postura e perguntou, interessado:
— Eu vou andar de cavalo, igual eu fazia com meu pai, em Praia de Itamaracá?
O papai respondeu, sorrindo:
— Aposto que o tio Vicente vai adorar levar você para passear.
O João gritou de felicidade e correu na direção da saída do quarto. A minha mãe falou, aliviada:
— Argumento certo, hein, querido? Você é bom nisso.
Ah, meus pais eram muito bons em ser pais e ainda melhores em serem avós, eles eram o meu porto seguro e estavam morando comigo para me dar o apoio necessário para continuar educando meus filhos. Eu entendia que eles estavam sendo minha fortaleza naquele período conturbado que eu estava passando, mas sabia que uma hora ou outra, a fortaleza da casa precisaria ser eu novamente, para os ajudar nessa fase idosa que eles estavam vivenciando. Uma hora ou outra eu ia precisar achar um outro porto seguro, ou ao menos saber ser fortaleza sozinha.
*
Chegamos à fazenda e após descer todas as malas e cumprimentar todos da casa, o Vicente convidou as crianças para desbravar a fazenda. Eu fiquei com a Milena sentada nos degraus de subida da casa, contemplando a beleza e a paz daquele lugar. Fazia poucos meses da morte do Marcelo, ele não resistiu às queimaduras que sofreu na explosão da lancha e sentir a paz naquele ambiente, nos fazia bem, vez por outra precisávamos de uma válvula de escape para conseguir prosseguir.
Depois da explosão da lancha, decidi voltar a morar na cidade, pois além de vivenciar o luto do Marcelo, a situação com o Rafael e meus filhos se agravou, sendo insuportável viver na mesma cidade que ele, e sem um porto seguro para desabafar. Passamos a disputar o hotel judicialmente, o que me deixou sem uma boa renda. Meu advogado era nada menos que meu amigo Fred, o melhor na cidade na área de família e a vitória era certa, mas no momento certo e eu não tinha pressa, eu ainda tinha muito medo de causar um trauma grande nos meus filhos. Eu e o Fred começamos a montar juntos minha defesa e, dia após dia, eu voltei a vivenciar novamente o mundo jurídico, sendo um caminho sem volta, o que me ajudou muito a manter minha cabeça ocupada e conseguir prosseguir a vida pós-separação. Eu nasci para aquilo, eu nasci para advogar e é extraordinário, porque eu nasci para fazer a justiça acontecer e, ao menos nessa parte da vida, eu havia me reencontrado.
A Milena falou, com o rosto entristecido:
— Acredita que ainda me lembro do acidente? Acredita que ainda lembro com detalhes da gente dentro do barco e o Vicente aparecendo, com o rosto apavorado, por conta da fumaça?
Eu balancei a cabeça positivamente e ela continuou, com a voz entristecida:
— A Beatriz não conseguiu superar a morte do Marcelo e está longe de querer voltar a viver, ela parece uma morta-viva. Não sorri, não chora mais, não fala direito. Vendeu a empresa a preço de banana, não dá mais assessoria ao shopping. Eu não sei por mais quanto tempo vai conseguir se sustentar sem um trabalho.
Eu falei, pensativa:
— Eu não aceito que aquilo foi um acidente. Aquilo não pode ter sido só um acidente.
Ela retrucou, sem me dar credibilidade:
— Lógico que foi, Liz. Quem poderia fazer uma atrocidade daquelas?
Na minha cabeça, havia o dedo do Otavio e da Penélope naquilo, mas sem provas, não havia fato, eram suposições, era loucura. Um dos motivos de sair da comodidade de Praia de Itamaracá era desvendar aquele acidente, que meu cunho investigativo apontava como culposo os irmãos mais terríveis que eu já havia conhecido. Eu precisava descobrir quem fez aquilo e fazer justiça pela morte do nosso amigo. Eu investigava diariamente aqueles irmãos desprezíveis, porém, infelizmente todas as provas que tinham eram contra meus argumentos, pois eles só recebiam premiações por bom comportamento na cadeia e a Penélope, inclusive, havia sido solta há um mês. Eu respondi à minha amiga:
— Você sabe muito bem quem eu acho que fez isso.
— Liz, já foi comprovado que foi um acidente, não podemos condenar a Penélope e o Otavio por toda desgraça da vida.
Não adiantava argumentar sem provas, então eu levantei as mãos, rendida, e respondi:
— Ok! Vamos mudar de assunto.
Ela respondeu, com o tom de voz ainda entristecido:
— Zero ânimo para essa festa hoje. Estou tão cansada, a rotina do shopping tem sido bem puxada! Estou organizando a semana de promoção do shopping e a Beatriz me faz muita falta como amiga, como conselheira e como marketing.
Eu falei, com deboche, tentando quebrar o clima de tristeza que pairava sobre nós:
— Imagina eu passei o caminho todo ouvindo palavras desaforadas dos meus filhos, porque eu estava trazendo-os para fazenda e, não, para Praia de Itamaracá?!
Já havia passado seis meses do acidente, ainda continuávamos com as feridas abertas, sentindo a dor da perda. Embora ela ainda continuasse triste, entendeu que precisávamos mudar de assunto, pois era muito doloroso para nós falar sobre a morte do Marcelo e do luto da Beatriz, e precisávamos continuar com nossas vidas, mesmo vivenciando toda aquela dor. Ela então perguntou:
— E como você está com Daniel? Faz tempo que você não me fala dele. Ele continua bom?
Eu sorri timidamente e respondi, brincando:
— Ele continua muito bom.
Ela sorriu timidamente e respondeu mais animada:
— Então, temos mais um adjetivo: MUITO! — Ela apontou o indicador para cima.
Dei um leve tapa na mão da minha amiga e sorrimos juntas, com mais leveza, e era bom demais conversar com ela, sem sentir aquele peso da dor da perda. Então, eu falei:
— Ele é bom quando eu preciso e isso basta!
Ela me perguntou, com os olhos brilhando:
— Você não tem vontade de algo que seja extraordinário?
Observando o brilho nos olhos dela, confesso que senti falta do algo extraordinário que voltasse a trazer o brilho da vida. Ficamos um período em silêncio, enquanto eu tentava organizar mentalmente o meu grau de prioridades da vida e respondi em seguida:
— Não sei, hoje na vida amorosa o bom basta!
O Vicente e as crianças apareceram, sorrindo, sujos de lama e era extraordinário olhar meus filhos felizes. Eu já tinha o extraordinário na minha vida, que eram meus filhos e estavam no topo das minhas prioridades, então o Daniel, que estava lá embaixo, poderia ser só “bom”. O João falou, com os olhos tomados pelo entusiasmo:
— Mamãe, você não sabe o que fizemos.
Ele começou a contar que ficaram pulando em uma poça de lama igual a Peppa Pig e haviam dado comida aos bodes da fazenda. Como eu queria ver os olhos do meu filho tomado pelo entusiasmo o tempo inteiro. Como eu queria ouvi-lo falar mais vezes o “mamãe” que não fosse seguido com o: eu te odeio. Até a Joana estava sorrindo e se divertindo como criança, coisa que não fazia na cidade, pois só queria saber de maquiagens, unhas, moda... às vezes me perguntava se era mesmo o certo voltar a morar na cidade e se, principalmente, não deveria voltar a viver com o Rafael e ter a aprovação definitiva dos meus filhos. Mas viver com o Rafael era Otaviom para mim, por isso ainda insistia nos encontros casuais com o Daniel, que era bom e estava sempre por perto e disponível quando eu precisava.
A noite chegou rapidamente e começamos a nos aprontar para a festa da candidatura da Paulinha. Como eu me orgulhava dela. Agora uma mulher respeitada que lutava por nossos direitos de mulheres. Ela era a nossa voz e nos representava como ninguém. As crianças ficaram na fazenda com a Sra. Marinha, que amava crianças e me passou muita confiança que cuidaria bem nas minhas maiores preciosidades.
A cidade estava toda enfeitada com bandeiras de propagandas dos dois políticos. Era uma verdadeira batalha: Mariana x Coronel Aureliano. A vitória da Mariana era uma libertação para aquela cidade do coronelismo presente e repleto de preconceito no poder que fazia parte de uma histórica gestão de homens corruptos e cruéis. A praça estava cheia e de um lado havia um palanque no qual a Mariana discursava suas ideias e suas propostas. Do outro lado, um palanque no qual o Coronel apenas destilava veneno e difamava nossa amiga. Nossa, a Mariana era mesmo uma mulher de pulso forte! Impressionante o quanto ela tinha amadurecido e conquistado a confiança na sua cidade com mérito próprio.
Eu estava concentrada no discurso da minha amiga, que falava sobre libertação, direitos femininos, direito do povo, ideais...
— Liz?
Levantei meus olhos em busca da pessoa que falou o meu nome e ao encontrá-lo de imediato abri a boca, incrédula, era ele, era o...
— Otto, lembra?
Óbvio que eu lembrava, óbvio que eu sabia que era ele. Ele estava um pouco diferente, com os cabelos maiores e um corte que os deixavam arrepiadinhos para cima com um tom de vermelho menos intenso, também estava mais forte, corrigindo, bem mais forte. Não consegui falar nada com o meu coração batendo forte e acelerado que impediam que eu formasse qualquer resposta aceitável ou coerente. Era extraordinário o encontrar pessoalmente, depois de tanto tempo.
O Daniel apareceu com sua câmera, tirando fotos, e pediu para que eu, a Milena, o Vicente e o Otto nos juntássemos para uma foto. Quando a mão quente do Otto tocou as minhas costas, que estavam desnudas, e eu tive a certeza de que meu coração parou abruptamente. O momento de segundos me pareceu durar muitos minutos e após o clique da foto, quando ele tirou a mão das minhas costas, eu ao invés de voltar à homeostase e esfriar o meu corpo, que já estava pegando fogo, eu insanamente o abracei fortemente, sendo correspondida na mesma intensidade e foi extraordinariamente o sentir em meus braços de novo, me aquecendo como fazia antes. Tenho certeza de que saíram algumas lágrimas dos meus olhos, os sentimentos estavam muito aflorados naquele momento e transbordar seria só uma consequência. Ele falou no meu ouvido, estimulando mais um sentido do meu corpo:
— Tive medo do abraço ter mudado, mas surpreendentemente ele continua o mesmo!
Eu me soltei do abraço e fiquei o observando, sem conseguir falar nada, só conseguia sentir meu coração que mais queria pular do meu peito e se abrigar naquele abraço de novo. O cheiro, o toque, a voz foram capazes de acordar algo dentro de mim que eu nem lembrava mais que existia. Há tanto tempo eu não sentia isso! O Daniel, que estava na nossa frente, imperceptível ao meu entusiasmo, falou, nos interrompendo:
— Oi! Eu sou o Daniel, tudo bem?
O Daniel colocou a mão na minha cintura, como se estivesse tomando posse de algo. O Otto estendeu a mão e respondeu, com a sobrancelha levantada:
— Oi! Eu sou o Otto.
A Milena interrompeu aquela batalha, de sobrancelha levantada, colocou a mão na minha cintura, e falou:
— Liz, vamos pegar uma cerveja?
Balancei a cabeça positivamente e no caminho a Milena foi logo perguntando:
— Primeiro: o que foi isso entre você e o Otto?
Eu ainda tentava acalmar meu coração que continuava batendo tão forte que mais parecia que ia pular do peito. Eu não sabia o que responder, eu não consiga explicar aquele sentimento que parecia ter nascido naquela intensidade só para eu vivenciar com ele. Entendendo que eu não conseguia explicar aquele sentimento, ela continuou com seus questionamentos, que também eram os meus:
— E segundo: o que foi aquilo com o Daniel? Eu nem sabia que vocês estavam assim, tão sérios, para ele marcar território com tanta segurança.
Eu não queria me envolver com alguém de forma séria, pois eu ainda precisava organizar a minha vida como mãe, para depois, quem sabe em um futuro, viver um romance. E o Daniel sempre soube disso, porque estávamos juntos, mas sem muito compromisso, éramos bons ficantes e depois do acidente da lancha, eu fiquei tão sem tempo, que um compromisso fixo não se encaixava na minha rotina. Sem contar que se meus filhos suspeitassem que eu estava com alguém que não fosse o pai deles, seria uma catástrofe que nem meu pai com seus argumentos assertivos, ou minha mãe com seus infinitos doces, conseguiriam reparar. Então não dava para entender o sentimento de posse do Daniel, pois eu sempre havia sido transparente com ele a respeito dos meus sentimentos. Ali era sexo e pronto. E eu sempre achei que bastasse para ele, assim como bastava para mim.
A Milena parou repentinamente no meio da multidão e, olhando, para mim, falou sorrindo:
— E aí? Qual o final desse duelo?
Eu balancei minha cabeça — que estava confusa com aqueles questionamentos e sentimentos — com sinal negativo e respondi:
— Minha vida já é complicada o suficiente para eu estar pensando em romance.
Ela continuou andando e falou, com tom de ironia:
— Achei, por um momento, que minha amiga conquistadora estava de volta.
Não, eu não conseguia ser a mesma, nunca mais. Agora eu tinha marcas, cicatrizes, rotina e dois amores incondicionais, que jamais permitiram eu voltar a ser quem eu era no passado. Então, respondi:
— Aquela amiga morreu — apontei para mim —, para que essa renascesse.
Ela balançou a cabeça negativamente e respondeu:
— Eu não estou disposta a morrer para nascer uma outra pessoa, acho que por isso Deus não me permite ter filhos.
— Calma, não fale besteira! Na hora certa, você vai engravidar.
A Milena já havia feito três inseminações artificiais e não tinha sucesso em conseguir gerar um filho no ventre dela. Embora ela sempre falasse que não queria ter filhos, no fundo, a cada tentativa frustrante, ela sofria. Diferente de mim, ela tinha uma família muito problemática e gerar uma criança era reviver sentimentos de família que, segundo ela, não faziam bem. Mas eu também sabia que ela queria viver o que não teve e para fazer o certo.
Após pegar nossas bebidas, nos dirigimos para o ponto onde o Vicente, o Otto e o Daniel estavam e durante o caminho fiquei me perguntando infinitas vezes se deveria testar de novo se meu coração iria voltar acelerar, caso eu abraçasse o Otto de novo.
Ao chegarmos ao local, para minha decepção, o Otto não estava mais lá e sem pedir permissão, o Daniel colocou a mão de novo na minha cintura. O toque diferente do Daniel era frio ou, pelo menos, não tão quente como do meu Ruivo favorito. Ele não fez que meu coração batesse mais forte, porque ele era só bom ou, no máximo, muito bom, não era o necessário para alcançar aquela etapa que o Otto, sem esforço, atingia mesmo depois de passar tantos anos longe de mim.