O que era para ser só um discurso, se tornou uma festa, e pessoas que antes se odiavam e trocavam acusações para defender seus políticos, agora bebiam e se confraternizavam. Fiquei olhando as pessoas bebendo, animadas, mulheres com superproduções, as danças envolventes, as paqueras e os casais formados sem se importarem com as cores das camisas que indicavam suas escolhas de votos. O Daniel se afastou do nosso grupo e voltou para fotografar as pessoas e pegar os melhores ângulos daquela festa que era histórica pela disputa da nossa amiga, que tinha grandes chances de derrotar o coronelismo.
Meu celular tocou, era o Rafael com mais uma mensagem desaforada, dizendo que me deixaria sem dinheiro, se eu insistisse no divórcio e que eu sabia que o hotel pertencia só a ele e a família dele. Ele não era mais o “maré mansa” que a Milena falava, bastou ele conhecer o dinheiro, para seus valores mudarem e ele retirar a máscara que escondia, o quanto era ambicioso, articuloso e muito muito manipulador, apenas convivendo para descobrir o verdadeiro Rafael Medeiros, e foi uma pena que eu tenha demorado tanto para cair na realidade.
Até hoje não consigo entender como comecei a trabalhar com ele e não assinei nenhum contrato, ou até mesmo como permiti que o financiamento do hotel fosse apenas nos nomes dos pais dele. Como eu, advogada experiente, havia cometido aquele erro de principiante? Só sendo muito manipulada mesmo. Havia sido vítima e eu e meu amigo Fred iríamos provar, a justiça seria feita.
Afastei-me das pessoas e procurei um lugar mais calmo para responder à mensagem dele à altura que ele merecia. Eu escrevi e rescrevi um milhão de vezes a mensagem, porque nunca parecia estar boa suficiente.
— Será que agora a gente consegue conversar? — o Otto falou, me trazendo para o presente.
Ele estava com as mãos nos bolsos na calça jeans escuro, visivelmente incomodado, e quando nossos olhos se encontraram, o meu coração voltou a bater forte, suplicando para se abrigar no abraço dele de novo.
— Oi, Otto! — Foi só o que consegui responder.
Ele forçou um sorriso e perguntou, ainda incomodado:
— Você está bem?
Aquela pergunta era o que eu precisava ouvir há, no mínimo, um ano, quando decidi jogar fora a vida acomodada e tentar constuir uma feliz, que envolvia a não aceitação dos meus filhos com a minha separação e estar financeiramente quebrada. Os olhos dele continuavam fixos nos meus e tenho certeza de que ele enxergou as dores da minha alma, quebrando e queimando qualquer armadura que eu usava para esconder a realidade dos meus sentimentos, me fazendo de imediato desabar no choro. Ele me abraçou e eu fiquei aconchegada no abraço dele, entregando ao meu coração o abrigo que ele tanto suplicava com batidas persistentes e vorazes. Como era bom sentir o cheiro dele de novo, como era bom sentir aquele abraço quente, como eu sentia falta dele. Eu me larguei do abraço cuidadosamente e falei, enxugando as lágrimas, que caíam pelo meu rosto, sem meu consentimento:
— Estou vivendo tantas coisas diferentes na vida, que não sei como me comportar, como agir... eu não consigo nem explicar.
Ele limpou minhas lágrimas e falou, sorrindo, com solidariedade:
— Que tal começar dizendo como você passou todos esses anos? Faz tanto tempo que não nos vemos, não conversamos.
Eu balancei a cabeça positivamente e ele, com delicadeza, tocou meus dedos das mãos, como se fizesse um carinho, até que segurou com mais firmeza e disse:
— Vem, vamos nos sentar um pouco e conversar.
Eu estava concentrada naquele toque de segurança que há tanto tempo não sentia. Estava concentrada nos olhos verde-escuros dele, que tocavam minha alma. Como era bom relembrar aqueles sentimentos que só ele despertava em mim, quer dizer, era muito mais do que bom, era extraordinário. Então começamos a andar de mãos dadas pela multidão em busca de mais privacidade, eu estava suando e demonstrando o quanto estava nervosa com aquele toque suave dele nas minhas mãos.
Chegamos a uma praça que ficava mais afastada do local da festa e nos sentamos em bancos de concreto, um ao lado do outro, sem nos olharmos e apenas o toque de nossas mãos nos conectavam como no passado e naquela hora eu queria que o antes voltasse e pudéssemos reviver tudo que vivemos e, quem sabe, viver também o que abdicamos, ou melhor, o que eu escolhi abdicar de viver. Por minutos, eu conseguia acreditar que fosse possível sermos nós de antes, mesmo que no hoje nossas vidas tivessem tomado rumos distintos. Ele falou, interrompendo o barulho das batidas vorazes do meu coração:
— Eu soube que você teve mais um filho. Fiquei muito feliz em saber que você estava feliz e constOtáviondo sua família, como tanto sonhava.
Ah, ele lembrava! Ele lembrava que eu sonhava em constuir uma família, assim como eu tinha, pai e mãe casados por anos com uma filha que era extremamente amada e era criada em um lar de amor, compreensão e respeito. Infelizmente, foi tudo bem diferente com o Rafael, no início era tudo maravilhoso, nos respeitávamos e ele era um bom pai, porém, ele foi mudando, e quando menos percebi, era um péssimo marido. Eu não sei exatamente quando foi que começou a dar errado, ou quando ele mudou comigo, só sei que fui taxada de louca inúmeras vezes e passei a acreditar nisso, passei a acreditar que eu vivia uma loucura de desconfiança, cobranças indevidas e muita injustiça com ele, até que de repente ele estava transando com nossa funcionária na minha mesa.
Eu falei, tentando esquecer aquela cena que apareceu de repente na minha mente:
— Além da Joana, agora eu também tenho o João! — Dei uma leve tossida e continuei: — Soube que você também teve uma filha e construiu uma família!
Ele havia casado com uma modelo que, pela foto, tinha traços de índia, um corpo desenhado, cabelos lisos até a cintura, e eu sabia que o nome era Noemy. Sim, eu era stalker dela e toda vez que eu e o Rafael discutíamos, eu entrava no i********: dela com milhares de seguidores e curtia a vida pública perfeita que era compartilhada a todos gratuitamente.
Ele tirou do bolso o celular e me mostrou a foto de sua filha. Como se eu não soubesse. Ah, Otto, como eu sei quem é Hannah, a Noemy e esse cara incrível que aparece todos os dias no meu celular! Ele falou, entusiasmado:
— Essa é minha Hannah!
Linda igual a mãe! A Hannah já era uma mini youtuber com milhares de seguidores e uns deles eram eu, a mamãe, o João, a Joana e o papai. Ela amava a mãe, o pai e tantas vezes eu ouvi o: eu te amo, mamãe, sem nunca ser seguido por um: eu te odeio, que eu tanto ouvia dos meus filhos. Eu realmente era um fracasso como mãe! Eu respondi, com entusiasmo:
— Ela é linda, parece uma índia!
— Puxou a mãe! — Ele sorriu timidamente e ficou tocando a tela com o polegar, como se sentisse saudade. — Teve a sorte de não vir com o cabelo de fogo igual ao pai.
Sorrimos juntos e eu falei:
— Se tivesse cabelo de fogo, ainda assim, seria linda!
Ele voltou os olhos para mim e aquele encontro de olhares era o necessário para que voltássemos a enxergar a nossas almas. Ele não estava feliz. Ele não era o Otto das fotos e vídeos que eu tanto acompanhava nas redes sociais e estava longe de ser o Otto de tempos atrás, mas também, como poderia cobrar isso dele? Eu também não estava feliz e era muito diferente de quando nos conhecemos. Peguei o celular e mostrei meus filhos e falei:
— Esse é o João, e essa é a Joana.
— Eles são lindos! Possuem seus olhos e o seu sorriso.
Se tinha algo que eu me arrependia mais na vida do que ter deixado ele partir sem dizer o “eu te amo”, era ter afastado o Otto da Joana. Quando ele partiu, tentou contato com ela diariamente, mas juntamente com o Rafael, decidi apagar o Otto da memória da Joana. Não achávamos coerente deixar ele na vida dela e ela era tão pequena que à medida que passou a não o ver, passou a sequer lembrar que um dia ele existiu. Eu também queria ter esquecido, eu queria que o tempo também tivesse me levado aquelas recordações e, principalmente, a última noite de amor que tivemos, que por mais que soubéssemos que era uma despedida, foi uma noite que deixou gosto de quero mais e infelizmente eu demorei para descobrir que, na verdade, eu sempre quis mais. Ele continuou olhando para foto e falou:
— Ela está cada dia mais parecida com você e ele tem rosto de bem sapeca. O Vicente me falou que ele é bem ativo, que adora pular no sofá da casa dele e conquistou algumas medalhas no surfe.
Gargalhamos juntos e eu não pude deixar de notar que assim como eu, ele sabia da minha vida que não era pública ou exposta nas redes socais. Então, questionei:
— Quer dizer que você andou perguntando por aí sobre minha vida?
Ele voltou o olhar para frente, desviando os meus olhos, e respondeu:
— Eu nunca deixei de saber, na verdade, eu nunca deixei você sair...
Ele respirou fundo, sem conseguir terminar, eu sabia que ele tinha mágoas de mim, da minha atitude de me afastar, de tirá-lo da minha vida à força. Quase que um desespero de fazê-lo sumir, para que eu não pudesse pensar que eu estava fazendo a escolha errada, porque bem no fundo eu sempre soube que tinha escolhido errado. Eu falei, com o tom entristecido:
— Desculpa! O que fiz não foi correto...
— Passou! Agora vamos falar de presente. O que aconteceu com você? Por que você está triste?
Ele voltou de novo a fixar os olhos nos meus e eu não estava pronta, eu não estava pronta para desabar, não naqueles olhos que estavam tão entristecidos quanto os meus. Ele não tinha como receber minhas dores, naquela hora...ainda não estávamos prontos. Eu segurei a mão dele novamente que estava sobre a perna dele, encostei minha cabeça no ombro dele e falei, mudando de assunto:
— Olha só aquela estrela ali!
Ele se acomodou na postura com a cabeça encostada na minha e respondeu:
— Você é boa nisso!
— Em quê?
— Em me fazer bem!
Uma pena que eu era só boa, mas talvez naquela hora ser boa, era o suficiente.
Nós nos perdemos no tempo, ficamos por minutos, ou horas ali, encostados, conectados com um mix de sentimentos m*l resolvidos, olhando o céu e compartilhando suspiros, saudade, mágoas. Até que ele falou:
— O que você acha de a gente beber uma cerveja?
Eu respondi:
— Contanto que eu não fique bêbada, pode ser!
Gargalhamos juntos e ele falou:
— Você tem medo de perder o controle?
Não, Otto, eu já havia perdido o controle da minha vida há muito tempo. Eu respondi, gargalhando:
— Eu tenho duas crianças na fazenda, me esperando.
Ele sorriu e respondeu:
— Belos argumentos! Então melhor a gente continuar a noite só com água.
Ele se levantou e comprou água em uma barraquinha que estava mais distante e eu resolvi apagar a mensagem que iria mandar para o Rafael. A resposta eu daria no tribunal, ali sim ele teria a resposta mais adequada e de uma certa forma seria o ponto final que precisávamos. Ele voltou e se sentou junto a mim de novo. Me entregou a garrafa de água e abriu a dele. Ele não precisava responder e eu não precisava perguntar, mas ainda assim, eu perguntei:
— Cadê a Noemy?
Ele levantou as sobrancelhas com surpresa. p***a, eu confessei que era uma stalker. Ele bebeu a água lentamente e até aquilo era sexy nele. Então respondeu, surpreso:
— Não veio.
Eu havia visto o i********: dela antes de vir para a fazenda e ela havia viajado com a Hannah. No canal da Hannah as duas estavam em um avião. Será que ela ainda iria chegar? Já que eu tinha confessado que eu era stalker e não tinha nada a perder, continuei:
— Achei que vocês estavam viajando juntos em família.
Eu dei um gole na minha água e ele respondeu mais seco:
— Nem tudo que você vê nas redes sociais é a realidade do que se está vivendo.
Eu insisti:
— E qual a realidade?
— Que não somos um casal. Na verdade, nunca fomos.
Ele respondeu o que eu queria ouvir, porque se ele fosse casado e tivesse aquela família perfeita que eu tanto acompanhava nas redes sociais, eu teria que parar e acabar com qualquer sentimento que pudesse existir ou tivesse sobrevivido a todo aquele tempo. Mas para minha felicidade, ele estava tão livre quanto eu, então questionei para obter mais informações:
— Acho que os seguidores dela precisam de uma explicação melhor. Não é correto fazer propaganda enganosa. Como boa advogada, posso garantir que esse fato cabe um processo bem rentável na justiça.
Ele sorriu e, pela primeira vez desde que nos sentamos naquele banco, eu vi entusiasmo em seus olhos. Então respondeu:
— Fiquei feliz quando soube que você estava advogando de novo. Nunca imaginei você usando tênis, calça jeans e blusa polo como rotina de trabalho.
Como ele sabia disso? Tenho certeza de que tinha dedo dos meus amigos, Vicente e Milena! Eu respondi, sorrindo também:
— Você sabia que esse tipo de roupa é a melhor para correr atrás de duas crianças?
Gargalhamos juntos e ele continuou:
— Você é linda quando sorri, não importa se esteja com ou sem roupa.
Ficamos em silêncio de novo, eu senti meu coração voltar a acelerar, minhas mãos começaram a suar e meus olhos ficaram molhados. Droga, eu não podia chorar. Ele continuou:
— Por muito tempo, eu imaginei como seria nosso encontro.
— O que você idealizou?
— Nada de mais, talvez que pudéssemos ser apenas amigos.
— Acho que ainda há chances.
— De sermos amigos?
— Se você me der essa oportunidade.
Ele estava com os olhos fixos nos meus, aquela chance seria única e eu não poderia decepcioná-lo nunca mais. Eu só queria uma chance de tê-lo em minha vida de novo, porque só ele conseguia acelerar meu coração daquela forma, só ele conseguia enxergar minha alma e eu queria e precisava daquele mar que vivia nos olhos dele. Amigos. Apenas amigos. Como sempre deveria ter sido no início e durado até hoje. Ele respondeu, com a voz falha:
— Eu não sei se consigo.
— Eu sei, eu te magoei...
Ele, com a voz rouca e mais falha ainda, me interrompeu:
— Mais do que qualquer pessoa.
Eu insisti:
— A Joana viu a Hannah no canal do Youtube, dizendo que o pai dela era o homem mais generoso e, se me lembro bem, você perdoou quando ela enganou você, dizendo que ia para o parque e foi para piscina.
Ele sorriu com os olhos brilhando, o deixando ainda mais lindo. Ele respondeu:
— Eu fiquei muito bravo com ela naquele dia!
— Eu vi, mas você a perdoou e ainda pulou com ela na piscina. Significa que você é bom no perdão.
— Você realmente é uma stalker?
Respondi, com deboche:
— Só acho o canal dela legal.
Ele ficou me encarando e eu insisti, me ajustando no banco:
— Sem promessas, sem garantias, vamos só viver o agora...
— Foi exatamente o que você me disse há anos, no hospital, quando você estava grávida da Joana, lembra?
Senti uma pontada no meu coração, eu realmente falei isso e até que o “agora” foi a decisão de excluir ele da minha vida. Eu, como defesa, insisti:
— E estamos aqui, sem promessas, sem garantias, só vivendo o agora.
Ele levantou a sobrancelha e respondeu:
— Mas cheios de...
Eu o interrompi:
— Histórias, vidas...
Ele me interrompeu:
— Sentimentos.
Eu não podia deixar ele ir embora de novo e iria usar todos os argumentos necessários para mantê-lo ali comigo:
— Não dá para recomeçar...
Ele não me permitiu usar minhas técnicas, meus argumentos assertivos e me interrompeu, falando:
— Também não dá para esquecer...
Ah, Otto, eu não vou desistir de você.
— Mas dá para continuar, se você quiser, óbvio!
Ele respondeu:
— Não dá para ser óbvio.
As mãos deles se aproximaram mais de mim, quase que imperceptível para qualquer pessoa, mas para mim, que estava decida a conquistar a confiança dele de novo, foi um alerta de que ele queria continuar a nossa história. Aquela linguagem corporal foi o que eu precisava para ter a certeza de que ele queria ficar, assim como eu queria que ele ficasse. E como uma tacada final, falei:
— Não dá para ser um monte de coisas, mas dá para ser isso aqui. — Apontei para nós dois.
— Eu não sou o mesmo Otto.
— E eu não sou a mesma Liz. Vamos viver o que somos hoje, isso é o que precisamos para agora.
Eu nem sabia o que éramos naquele momento, na verdade. Eu era a nova Liz e ele era o novo Otto. Eu queria muito relembrar nossas noites de prazer, eu queria muito relembrar o toque quente dele na minha pele sem roupa, mas eu sabia que não podia, não seria justo, porque eu ainda vivia uma vida complicada e eu não queria viver um romance, ou pelo menos um romance sério. Se não dava para ser um casal por todas as circunstâncias, que fôssemos amigos, apenas bons amigos. Eu precisava dele e olhando aquele mar verde-escuro era óbvio que ele precisava de mim para voltar a ter brilho como era o antigo Otto.
No fundo, éramos duas pessoas em busca de ser o que o tempo tirou e estar juntos naquele momento, era como se pudesse ser possível voltar a ter brilho no olhar, nem que fosse em recordações ou na confiança.