A sexta feira amanheceu estranha, não mais estranha do que eu saindo da cama de madrugada por ter me lembrado das cartas e do bilhete de Dom, acabei guardando tudo dentro do cofre, no escritório. James nem mesmo sabia da existência dele... Mas fora esta culpa que eu estava carregando, com o passar das horas, o dia tornou-se abafado... Eu sabia que era o prenuncio de um temporal, sabia exatamente que em poucas horas, a chuva chegaria acompanhada de raios e trovões e que muito provavelmente, isso aconteceria ainda naquela noite.
Busquei as crianças na escola: eles estavam felizes e bastante empolgados com a escola nova, com a casa nova e tudo mais, e quando chegaram em casa, pareciam ter gasto toda a energia que tinham durante aquelas horas longe de mim, o que era bom, porque assim eles não viravam a casa que eu havia conseguido terminar de colocar em ordem, toda do avesso e eu sentia que podia ter alguns minutos de paz antes de cair dormindo, logo depois deles. Na manhã de sábado, o caminhão chegaria com o restante de nossos pertences, e eu sabia que tinha muito trabalho pela frente até dizer que estava com tudo pronto, apressei Benjamin que estava enrolando no banheiro:
- Vai dormir agora? - ele perguntou-me.
- Em uns minutos - bocejo, estava cansada - só quero um tempo para relaxar.
- Tudo bem - ele beija minha bochecha, está ficando grande, parece que cresce da noite para o dia, como uma abóbora - só espero que não fique triste.
- Eu não vou ficar triste - eu o beijo na testa sorrindo - não se preocupe, Ben.
- Sim - ele diz sério - eu me preocupo, na ausência do papai, eu sou o homem da casa.
Não consegui responder: meu filho de oito anos estava preocupado comigo, ele sentia-se responsável por coisas com as quais ele nem mesmo deveria se preocupar e aquilo cortou meu coração: precisava encontrar uma forma de tirar esse fardo de suas costas, não era justo com ele...
Poucos minutos depois de conseguir acomodar as crianças, voltei à sala: um Gim tônica caia bem... Com toda a certeza. Fui até a cozinha e preparei meu drink, um dos meus favoritos, e assim que me acomodei na rede que havia pendurado na varanda, com minha taça, a energia caiu e no mesmo segundo, de modo automático, eu pude ouvir a risada de Dom: ele ainda era criança... Corríamos pela casa escura por uma queda de energia, com uma pequena lanterna nas mãos.
- Você nunca vai conseguir me pegar – ele gritava enquanto ria, ofegante – Mel, você tenta e nunca consegue...
- Eu vou pegar você – eu respondo baixo e atiro uma almofada em um canto escuro tentando disfarçar os sons.
Eu tinha dezesseis e ele, onze daquela última vez. Eu não tinha mais o meu pai, minha mãe estava fora e a noite caíra: Dom nunca me deixaria sozinha à noite, ainda mais sem luz. Brincávamos como duas crianças nesses dias, e eu consigo lembrar claramente, eu quase consigo vê-lo em todos os cantos dessa casa.
- Mel, onde você está? – ele pergunta e eu não respondo, apenas observo-o se aproximando das escadas: eu poderia pega-lo antes mesmo que ele subisse o primeiro degrau.
Sorrateira, sai do meu esconderijo e quando dei por mim, tinha Dominic imobilizado no chão – eu o pegara distraído com uma das mãos no corrimão e com um pé pronto para subir, foi fácil pegar ele, eu tinha feito artes marciais por um tempo, e ele era magrinho.
Ele ria sem parar – chegava a ser covardia fazer cócegas em alguém que já está rindo. Soltei-o e deitei no chão ao seu lado, rindo também... Não sei por quanto tempo ficamos daquele jeito, mas lembro do momento em que saímos e que tudo mudou:
- Você me pegou – ele disse em um suspiro e logo virou-se de lado, me olhando nos olhos – não estava nos meus planos – ele sorriu – mas conseguiu.
- Nunca mais duvide de mim, Dom – eu digo ofegante.
- Mas parece uma senhorinha asmática agora – ele ri e se aproxima, colocando a mão sobre meu diafragma, fazendo uma leve pressão – precisa se acalmar, agora, e respirar fundo.
Aqueles segundos duraram uma eternidade: minha mão estava sobre a dele, e eu o sentia, trêmulo... Eu não sabia o que eu deveria fazer, eu queria beija-lo, mas sabia que não conseguiria, então, eu fiz aquilo que eu faço de melhor na minha vida: fingi normalidade e fugi da situação.
- Estou bem – eu disse num suspiro afastando de forma um tanto brusca a mão dele de mim – quer chocolate quente? - pergunto.
- Não - ele responde – acho que eu preciso ir para casa.
- Mas eu estou sozinha – eu digo em tom de súplica.
- Sim – ele ri – e vai ficar bem, sabe que vai... – ele apenas se aproxima, beija a minha testa e sai, e até hoje, se eu olhar para o vão em frente as escadas, eu me pergunto se ele também não esperava que eu o beijasse, e por isso foi embora naquela noite de temporal.
Eu não conseguia descobrir se aquilo era o que havia nos afastado, ou se era apenas mais uma parte de um monte de coisas que haviam nos afastado, era complicado de entender, mas nessa noite, com um temporal pesado caindo, quase como naquela vez, o sentimento de nostalgia era esmagador. Aproveitei o silêncio e a escuridão, com minha taça como companhia, eu gostava de aproveitar os momentos, e mesmo sozinha, aquele era especial para mim, por que tinha me trazido uma lembrança muito boa.
A luz ainda não havia voltado quando fui para a cama. Acendi as luzes de emergência e fui para o meu quarto: a cama vazia não me incomodava tanto quanto eu costumava pensar que incomodaria. Acho que a parte mais difícil era saber que eu era insuficiente e que isso levara meu casamento até aquele ponto.