Adriano amanheceu com dor de cabeça, não por ter bebido muito, porque no segundo copo de uísque ele já sentiu sono. Apenas tirou a roupa e dormiu. Tomou banho de manhã e sorriu secretamente ao sentir cheiro de bolo na casa. Jô já estava em pé, fazendo muito mais do que era paga para fazer.
Surpreendentemente sorridente, apesar da conversa do dia anterior, ela cumprimentou o patrão com disposição, servindo a ele um grande pedaço de bolo de fubá, o preferido de Adriano. Como estava atrasado, comeu rápido e não viu a irmã, que já tinha ido para a escola.
Ana estudava em período semi-integral, voltando para a casa por volta das duas da tarde. Ficava com Jô até Adriano chegar, no início da noite. Às vezes almoçava quando chegava, em outras, almoçava na escola. Quando ele precisava sair, pedia para que Jô dormisse lá, para ficar com a irmã. Acabava saindo pouco, pois era como se tivesse uma filha. Saía pouco e nunca voltava acompanhado para a casa. Achava Ana Luíza muito pequena para ter que lidar gente estranha lá, fazia de tudo para preservá-la do que pudesse, já que a vida não a tinha poupado de tristezas.
Aproveitou que estavam sozinhos e se desculpou. Disse que o filho poderia frequentar a casa.
— Já falei que ele não pisa mais aqui. — ela disse orgulhosa.
— Mas, Jô... — reclamou, todo sério.
— E não quero mais falar disso, Adriano. Eu fiquei chateada, mas eu te entendo. — falou, pretendendo encerrar o assunto.
— Tá... obrigado. — agradeceu quase aliviado. Ele também a compreendia, eram só o filho e ela, como ele e a irmã. E o mesmo sentimento de proteção que ele tinha com Ana, Jô tinha com Luan.
Conversaram sobre alguma trivialidade da casa naquela manhã e ele percebeu que, pela alegria normal de Jô, ela não tinha guardado mágoa. Mas ele ainda se sentia m*l, sabia qual era aquela sensação de ter quem se ama tratado m*l.
— Você sabe que vocês dois podem sempre contar comigo, né? — ele disse antes de sair.
— Eu sei, meu filho. Fica tranquilo que já passou... eu sei que você é um menino bom. — ela garantiu, colocando um ponto final no assunto. Ele sorriu e foi trabalhar.
Tinha muita coisa para fazer no trabalho. Uma das três unidades que a empresa tinha não estava mais alcançando as metas e ele sabia que não era por causa dos funcionários. As grandes empresas de aluguéis de carros eram sempre um grande empecilho para a ampliação dos negócios e as maiores concorrentes. Por isso, estavam pensando em algum tipo de publicidade ou promoção para aquela unidade específica.
Naquele dia, ele teve uma reunião com a equipe de uma empresa de marketing para pensar em alguma peça publicitária que pudesse levar mais clientes. Depois ele se reuniu com o gerente da unidade com problemas, para discutirem outras ações. Queria sugestões do gerente, pois achava que ele tinha uma visão melhor do que poderia estar causando a diminuição dos aluguéis.
Tinha sido um dia exaustivo mentalmente, porque depois de falar com o gerente, ele precisou resolver problemas com a venda dos carros que já tinham mais de cinco anos de uso. Chegou em casa cansado, encontrou, como de costume, a irmã sentada à mesa da cozinha desenhando e Jô terminando o jantar. Cumprimentou as duas, mas Ana com um beijo.
— Você poderia aproveitar e fazer um pouquinho de lição, né? Em vez de só ficar desenhando. — ele brincou com a irmã.
— Isso é lição... — ela disse, voltando a pintar os planetas do sistema solar, da forma que dava na telha. Havia planetas roxos e com bolinhas vermelhas, mas o sol ela tinha pintado de amarelo e laranja.
— Nossa, mas que arco-íris seu sistema solar. — ele gracejou.
— Tá bonito, não tá? — ela indagou, mostrando o desenho.
— Tá lindo. — ele riu e subiu para tomar banho.
Ao retornar do banho, Jô se despediu, dando algumas instruções sobre a comida. Ele arrumou a mesa para jantar com a irmã, porque fazia questão de jantar quase todos as noites à mesa com ela, como uma família faz. Não lavou a louça, porque teria faxina no dia seguinte. Nos finais de semana ele lavava, às vezes com a ajuda de Ana.
Depois do jantar, ele foi assistir ao noticiário na tevê da sala, enquanto Ana fazia a lição de casa na mesa de centro, sentada no tapete.
— A gente pode ter um cachorro? — Ana perguntou.
— Não sei... você vai cuidar ou vai deixar pra mim? — ele questionou.
— Claro que eu vou cuidar... — respondeu levantando as sobrancelhas.
— Eu vou pensar. — ele disse, olhando para a tevê.
— E um gato? — ela olhava para ele.
— Os dois, não. — ele olhou para ela.
— Tá... um gato, então.... não, um cachorro. Não sei...
— Isso... vai pensando no que quer e eu vou pensando se deixo. — Adriano sorriu de lado.
Sem conseguir ver o noticiário direito e estando ali mais para passar tempo com a irmã, Adriano descansava o corpo e a mente. Ele não sabia que seu celular estava prestes a tocar e que ele terminaria aquela noite muito mais cansado do que estava naquele momento. Cansado e profundamente triste.
Ouviu o celular tocar e saiu procurando por ele. Imaginou que fosse alguém do trabalho. Era raro alguém ligar àquela hora, o que o fez estranhar.
— Pega pra mim, Ana? — ele pediu, apontando a tomada onde ele estava ligado, carregando a bateria. Ela correu e voltou com o aparelho tocando. Viu que era Jô, atendeu preocupado.
— Alô.
— O senhor é parente da Maria Joana Santos? — uma voz de homem perguntou.
— Quem está falando? — ele inquiriu nervoso.
— O senhor é ou não parente dela? — a voz insistiu.
— Sou... — respondeu titubeante, pois queria saber do que se tratava.
— Ela sofreu um acidente e está sendo levada para o hospital. — o homem disse e Adriano entrou em completo desespero. Anotou o nome do hospital, colocou uma calça, pediu que Ana se trocasse às pressas e foi com ela para o local indicado pelo homem.
Descobriu ao chegar que se tratava de um hospital público. Com muita dificuldade para encontrar informações, insistiu na recepção da Emergência. Um médico foi falar com ele. E Adriano descobriu, naquele dia, que ele tinha perdido outra pessoa.
Maria Joana já chegou ao hospital sem vida, depois de ter sido atropelada. O médico informou e foi a primeira vez que Ana Luíza viu o irmão chorar. A irmã também perdia mais um ente querido e o choro que Ana não derramou pelos pais, pois era pequena demais para entender, ela derramou por Jô. Ela já sabia o que era a morte, a falta. Afinal, desde muito cedo ela convivia com a ausência, com aquele buraco infinito que é não ter os pais. E agora ela tinha que lidar com a morte mais uma vez à sua frente.
Mas aquele sentimento dos irmãos não se comparava ao sofrimento de Luan, que chegou logo em seguida, com a tia e o marido. Adriano não esqueceria facilmente aquele choro de puro desespero e dor. Aquela dor que ele conhecia tão bem e era talvez a pior de todas. Tentou consolá-lo, mas ele só conseguiu se acalmar um pouco depois de ser medicado.
Adriano sabia que não poderia simplesmente ir embora. Ficou. Resolveu todas as coisas da cremação e do velório com a irmã de Jô, pagou por tudo, uma vez que a família não tinha condições e esperou. Diferentemente de quando seus pais morreram, quando tudo foi resolvido pelos tios e quando ele chegou tudo o que fez foi chorar e sofrer, naquele momento, no último momento, Jô estava quase sozinha.
Aproveitando a responsabilidade que tinha assumido para si, já que o filho, coitado, não tinha condições para nada, Adriano trocou o choro pela burocracia, tendo que levar a irmã consigo a todo momento.
Velou o corpo da babá por toda a madrugada, junto com alguns vizinhos dela e a irmã. Havia um clima de desolação ali e Adriano sentia o assombro da solidão sussurrar mais uma vez em seu ouvido.
Depois da cremação, prestou mais condolências ao filho, oferecendo-se para ajudar no que fosse preciso. Luan tinha lágrimas eternas, mas, mais tranquilo com a ajuda de calmantes, sabia que precisava resolver o que faria da vida. Adriano ouviu a tia chamá-lo para morar com ela. Ele só tinha avós paternos vivos e como não sabia do paradeiro nem do pai, tudo o que tinha de família era aquela tia e mais duas que moravam em Pernambuco.
Foi Adriano quem o levou para a casa. E sentado no sofá, com a irmã de Jô, o marido dela, Luan e a vizinha Silmara, tentava ajudar na resolução do problema. Viu que a tia insistia para que ele fosse com ela, mas ele recusava. Lembrou-se que era ela quem o machucava quando criança, e pensou que era o provável motivo para a recusa do garoto.
— Eu posso pagar o aluguel pra você até você conseguir se sustentar. — Adriano falou, deixando todos mudos. Ele estava disposto a ajudar o filho da mulher que tanto o tinha ajudado.
— Mas eu estou desempregado, mesmo que o senhor pague o aluguel, eu não tenho como manter a casa. Mas obrigado, seu Adriano. Obrigado por tudo. — Luan dizia em completa tristeza.
— E a proprietária pediu o imóvel, vou ter que sair de qualquer jeito. Eu e minha mãe estávamos procurando outra casa já. — Luan complementou.
— Eu me lembro de ela comentar... — Adriano falou.
— Ele pode ficar comigo. — Silmara ofereceu.
— Você sabe que não dá, Sil. — Luan falou, triste.
— Eu dou um jeito... — ela ofereceu, sem falar com o marido. Luan sabia que ele não encararia bem a notícia. Quando ele era pequeno, o marido de Silmara não via problema algum nele, ele podia frequentar sua casa tranquilamente. Mas depois de ter crescido, sendo perceptível sua homossexualidade, soube que o marido dela já não o via com os mesmo olhos. Fora que eles tinham dois filhos e a casa só tinha um quarto.
— Obrigado, Sil. — ele agradeceu e deixou a proposta sem uma resposta definitiva.
— O que você vai fazer com as coisas da casa? — a tia perguntou, espantando a todos.
— Eu não sei... não sei ainda o que vou fazer. — respondeu atônito, desolado.
— Posso falar com você em particular? — Adriano perguntou a Luan, deixando os presentes em silêncio.
— Claro... vamos no quarto. — Luan respondeu meio mole pelos remédios, encaminhando-se para o único quarto da casa.
Adriano viu duas camas de solteiro naquele quarto pequeno e compreendeu que os dois dividiam o cômodo.
Luan sentou em uma das camas e Adriano em outra. Ele explicou que Jô era registrada, que ele tinha direito a receber o FGTS da mãe, que devia chegar perto dos vinte mil. Falou em particular para que as pessoas não ouvissem e quisesse explorar o menino, que já receberia tão pouco.
— E como eu faço pra pegar esse dinheiro? — Luan perguntou.
— Eu te explico direito depois. Te ajudo. — falou.
— Obrigado, seu Adriano. Muito obrigado. — Luan dizia ainda atordoado.
Eles não sabiam que Jô só tinha mil reais na conta e aquele dinheiro, somado ao fundo de garantia não ultrapassaria os vinte e dois mil reais. Para Luan, era muito dinheiro, para Adriano era absurdamente pouco.
— Eu posso te ajudar a pagar um aluguel por um tempo. — Adriano insistiu.
— O senhor já paga minha faculdade... não posso aceitar. — ele recusou.
— Você que sabe... uma vez eu prometi pra sua mãe que cuidaria de você se ela... — Adriano não terminou a sentença, porque a morte já estava implicitamente presente no lugar todo.
— Eu vou ficar bem...— Luan disse, voltando a chorar. Adriano queria gritar de desespero, olhando para os olhos profundos e perdidos do jovem. — Você já sabe o que vai fazer? — ele perguntou.
— Vou ficar essa noite aqui e amanhã eu decido. — Luan disse e Adriano prometeu voltar no dia seguinte.
Pegou Ana que estava na sala mexendo em seu celular e foram para a casa. Ao se despedir das pessoas, ele olhou bem para a irmã de Jô, muito diferente dela, tinha estampada no rosto a cobiça e mais alguma coisa r**m que ele não sabia definir.
Não foi trabalhar no dia seguinte e tentou resolver as questões burocráticas para o recebimento do FGTS de Luan, que não sairia automaticamente. De qualquer forma, ele ofereceu ajuda financeira ao jovem enlutado até o dinheiro sair e quando chegou à casa de Jô, a tia estava lá novamente. Ofereceu dobrar o valor que ele receberia do fundo de garantia, mas ainda assim, para não ter que ficar na tia, ele precisaria procurar uma casa para alugar. E como fazer isso sem comprovar renda? Como fazer isso às pressas e de luto. Adriano sabia que era difícil resolver aquilo.
Na sala, Luan contou para Adriano e para a tia que o marido da vizinha não deixou que ele ficasse lá.
— Ela me contou chorando, coitada. Mas eu já imaginava. — o garoto afirmou resignado.
— Mas por que ele não deixou? — Adriano questionou.
— Porque eu sou gay, né? — ele falou, causando indignação em Adriano.
— Então fica na minha casa até encontrar um lugar pra alugar. Se ficar uns meses na minha casa, você economiza o dinheiro do fundo de garantia da sua mãe por um tempo, pelo menos. — a tia analisava, e esperta, já sabia que o sobrinho tinha dinheiro para receber.
— Ela era registrada, não era? — perguntou ela a Adriano.
— Era. — ele respondeu seco, analisando-a também.
— Então... se não tiver problema, vou ficar na sua casa, tia. — ele decidiu, como quem caminha pelo cadafalso.
— Só por um tempo, até eu conseguir resolver minha vida. — Luan completou, já que a tia oferecera a casa deixando claro que era por um tempo limitado.
— Isso. Ótimo! Então já vou falar pro seu tio falar com um homem que faz carreto pra levar as coisas lá pra casa. — ela disse aparentemente animada, pegando o celular.
Adriano desconfiou qual era o interesse dela no garoto. Ela provavelmente queria as coisas, que eram tão poucas, mas estava empenhada em ficar com tudo para ela. Seus dedos corriam ágeis pela tela do celular, ansiosos para contar a notícia ao marido. Com o olhar ganancioso e um sorriso que não escondia intenções usurpadoras, ela tentava forçar uma cara triste vez ou outra. Adriano se horrorizava ao observá-la. Olhou para Luan que tinha os olhos distantes, num rosto inchado de chorar, e propôs outra coisa. Uma coisa que não queria, que ele evitava a todo custo e que faria com que ele se arrependesse, mas ele não poderia deixar o filho de Jô com aquela aspirante a psicopata.
— Ou você pode ficar na minha casa... — ofereceu, rígido como sempre. A tia deu um pulo. Largou o celular e olhou para ele arregaladamente.
— Não precisa... — ela falou, e foi ignorada pelo proponente, que esperava uma resposta de Luan.
— Não, seu Adriano... — o olhar de Luan voltou à Terra, estranhou a oferta, pois sabia que o patrão da mãe não gostava de ter homem em contato com a irmã e não gostava muito dele.
— E, você pode ficar no quarto de fora... é pequeno, você conhece, mas...
— Posso mesmo? — ele olhava para Adriano como quem agradecia com o olhar. Aliviado por não ter que ir com a tia.
— Claro. — Adriano falou baixo, vendo os olhos do garoto marejaram e percebendo um leve suspiro de alívio.
— Então eu vou... — ele disse. — Prometo que você m*l vai me ver. — Luan falava.
— Não! Ele tem família! — a tia interveio.
— Ele é maior de idade, ele decide onde vai ficar. — Adriano disse firme, ríspido, imponente, e ela se calou. Não se dirigiu mais a ele.
— Obrigado, tia. A casa dele é mais perto da faculdade. — ele alegou qualquer coisa para não ter que ir com ela.
— Assim que eu arrumar um emprego eu vou embora. — ele prometia, a fim de não perder a oportunidade.
Porque mesmo triste ele sabia que só tinha duas opções e uma delas era a tia. Ele preferiria qualquer coisa a ir com ela, até ficar na pequena casa da vizinha com marido homofóbico, se ele deixasse.
— Então... arruma suas coisas e a gente já leva. — Adriano queria resolver aquilo rápido. Precisava voltar para a empresa.
— Tá bom...muito obrigado... — Luan soprou as palavras com uma fraqueza mental e física.
— E o que você vai fazer com as coisas? — a tia insistia nas coisas.
— Se você deixar a casa vazia pra eu entregar pra imobiliária, você pode ficar com tudo. Só vou levar minhas coisas e uma lembrança da minha mãe. — Luan decidiu nervoso, acalmando os ímpetos materialistas da mulher.
— Eu esvazio, então. Pode ficar tranquilo, meu filho. — ela concordou, sorrindo.
Adriano não se meteu. Por ele, Luan doava tudo e não dava coisa alguma para aquela mulher interesseira, mas era um bom acordo. Ele não queria ter preocupação com a retirada dos móveis, que poderia levar um tempo grande.
A tia voltou a deslizar freneticamente os dedos pelo celular para contar a novidade ao marido. No fim das contas, ela saiu ganhando. Teria os pertences da irmã e não precisaria ficar com Luan em sua casa. Não gostava do garoto mesmo. Ele seria um grande peso para ela, portanto estava realizada. E Luan arrumou os objetos pessoais e levou a tevê no carro mesmo. Adriano tinha um carro grande e Luan tinha poucas coisas. Tudo se encaixou.
Adriano sentia uma mistura de tristeza e irritação enclausurada, não sabia se tinha feito a escolha acertada, mas pensaria em algo para que o garoto pudesse se virar sozinho, longe de sua casa. Mas ele não poderia deixar de lembrar da promessa que tinha feito anos atrás, meio que de brincadeira, para a babá. A querida Jô.
Naquele dia mesmo, Luan se despediu da casa e foi morar em um quarto, sem a mãe e sem grandes perspectivas. Apesar de estar cercado de gente, ele se sentia sozinho, porque não havia de verdade mais ninguém por ele no mundo. E aquela era uma verdade difícil de constatar.