Se tinha uma coisa que Adriano detestava era homens adultos em contato com sua irmã. Não confiava em homem algum com ela, porque eram tantas as histórias terríveis que se ouvia e era tanto o cuidado que tinha com a irmã, que tirando a Jô, ele praticamente não a deixava com mais ninguém sem ficar extremamente aflito.
Apenas na casa de uma amiguinha ele deixa a irmã dormir, na casa de Laura, porque ela morava só com a mãe. É claro que há mulheres que fazem m*l a crianças também, mas o número é ínfimo quando comparado com o de homens. Por isso, quando ele chegou do trabalho naquela quarta-feira e ouviu uma voz diferente conversando com sua irmã se irritou, pensando que pudesse ser a voz de um homem.
Na casa, havia uma porta de entrada na frente, pela qual se entrava pela sala, e havia também uma porta lateral, situada no meio do grande corredor, por onde se entrava pela cozinha. Adriano costumava entrar pela segunda, porque era na cozinha onde geralmente encontrava Jô, cozinhando ou limpando a pia. Pois era comum ela deixar o jantar pronto antes de ir embora. Fazia isso por gosto, por zelo. Não porque fazia parte de suas funções. Adriano, inclusive, dizia que ela não precisava se preocupar, que ele se virava, ou comia o que tinha sobrado do almoço. Mas quase sempre tinha uma comida fresca e quentinha esperando por ele. E era bom chegar e encontrar com ela lá, ou com as duas, porque Ana Luíza gostava de desenhar na mesa, enquanto Jô cozinhava.
Adriano entrou pela porta de sempre, a do grande corredor. No fim dele ficava o cômodo separado, chamado de quarto da empregada, muito comum em residências de classe média alta, e na qual costumam morar mulheres que dedicam suas vidas para cuidar da família dos outros, abdicando muitas vezes de suas próprias.
Os pais de Adriano tinham comprado a casa já com aquele cômodo, mas nunca pensaram nele como quarto da empregada. Viam os trabalhadores como funcionários e por mais que Rosana tivesse uma babá, não achava correto ter uma funcionária dedicando quase cem por cento de seu tempo à sua família. Pessoas precisam ter vida própria, íntima, para serem felizes. E tirar todo o tempo de uma pessoa, é violar um direito humano, é retirar-lhe a dignidade.
Isso Adriano também não faria. Também via as pessoas que trabalhavam para ele como funcionários e não como empregados. E Jô era mais do que isso. Desde que sua mãe era viva, o filho dela era bem-vindo na casa. Sempre muito quietinho e educado, Luan sabia se comportar. Em toda a sua simplicidade, Jô tinha uma capacidade inata para educar com afeto, sem violência.
Mas fazia muito tempo que Luan não ia ao trabalho da mãe. Depois que cresceu suas idas foram diminuindo, até que ele parou de ir. Adolescente, já não via graça em ir para o trabalho com a mãe, onde não tinha nada divertido pra fazer. Por isso, Adriano nem imaginou que fosse ele, que conheceu quando ainda era um menino, com sua irmã.
De longe não conseguiu distinguir a voz. Não sabia se era homem ou mulher, mas já entrou irritado, cumprimentou Jô com secura e foi direto para a sala. Viu a irmã sentada no tapete, com um jogo de tabuleiro aberto e explicando como se jogava para Luan. Não o reconheceu de pronto, precisou dar mais que uma olhada. Quando o garoto se virou, não teve dúvida. Ele estava diferente, maior, mas era indubitável o filho de Jô.
Não brigou, porque não queria se indispor com a mulher, mas deixou claro que aquilo o desagradou.
— Ana, está na hora de tomar banho. — ordenou, após cumprimentar asperamente o rapaz.
— Mas eu tô desenhando, Dri. — ela falou.
— Agora, Ana! — ele disse com secura.
— Tchau, tio Luan. — ela sorriu para ele e subiu resmungando, chamando Adriano de chato baixinho.
— Sem resmungar! — disse, sério. E com a mesma seriedade olhou para Luan, que se desculpou, guardou as coisas e saiu, sentindo-se ruborizar pela agressividade daquele olhar.
— Onde você vai, filho? — Jô perguntou, quando o viu passar pela cozinha.
— Vou esperar lá no quarto, tá, mãe? — ele disse, referindo-se ao quartinho onde ele havia dormido tantas vezes quando era pequeno e que Jô ainda usava de vez em quando.
Sensível, Luan foi para o quarto queimando de vergonha e de raiva, sentindo-se maltratado.
— Jô, você sabe que eu adoro você... — Adriano disse ao vê-la terminando o jantar.
— Já sei! O Luan. Desculpa, Adriano. Não vai mais acontecer. — ela falou claramente chateada.
— Jô, não fica assim. Você sabe que não é pessoal... eu tenho problema com isso. Não é que eu acho que seu filho vai fazer alguma coisa... — ele tentava explicar, sisudo como sempre.
— Tudo bem. Eu entendo. — ela falou, também séria.
— A Ana é minha responsabilidade. Eu nunca vou me perdoar se acontecer alguma coisa por negligência minha. Então, só te peço que entenda. Eu não quero ela sozinha com homem nenhum. — ele disse firme.
— Eu sei. Me desculpa. Não vai voltar a acontecer.
— Obrigado por entender. — ele disse, incomodado por ter que ter aquela conversa, e já saindo.
— Você sabe que o Luan é gay, né? Que ele nem gostar de mulher gosta...— ela perguntou.
— Não. Eu não sabia. — ele se virou para responder.
— Eu achei que por isso não teria problema. Mas eu vou conversar com ele. Vou pedir pra ele não vir mais aqui. — ela assegurou, chateada. — Mas sabe o que me chateia, Adriano? — ela continuou, fazendo-o parar para ouvir. — Que eu trabalho aqui há tanto anos, meu filho já brincou com a Aninha quando ele era criança e ela um bebê. Ele tá grande, mas não faz m*l nem a uma formiga. Pelo contrário, é um b***a mole.
— Ai, Jô, não queria que se ofendesse... eu sinto muito. — ele falou com aquela seriedade, velha amiga.
— Mas eu te entendo... — ela suavizou, virando-se para ele. — Porque ele é meu único filho, Adriano. O pai me abandonou antes de ele nascer. Somos só eu e ele. Ele é tudo o que eu tenho. Se você tem zelo com a Aninha, eu tenho com o Luan. — Adriano ouvia em silêncio.
— Eu já precisei dormir aqui diversas vezes pra cuidar da Ana e como eu sou sozinha, precisava deixar o Luan com a vizinha ou com a minha irmã, você sabe... e um dia ele voltou de lá todo marcado. Tinha tomado uma surra da tia, minha própria irmã! Foi quando eu descobri que não tinha sido a primeira vez que ela tinha maltratado meu filho. Várias vezes ela machucou o Luan, enquanto eu estava aqui, cuidando da sua irmã. Eu me culpei muito por isso e me culpo até hoje... por isso eu entendo seu zelo, Adriano. — ela pegou as coisas, deu boa noite e foi até o quartinho buscar o filho.
Não queria magoar a mulher que tanto o ajudava, mas não sabia se aquela informação fazia alguma diferença. Ficou pensando no assunto e, de fato, saber que o rapaz era gay o deixava menos preocupado. Mas ele já tinha magoado a mulher e se sentia m*l.
Adriano ficou parado na cozinha, soterrado com aquela história. Sentindo-se envergonhado, culpado. Subiu para o quarto levando a garrafa de uísque, pois sabia que, sozinho no quarto, seria difícil enfrentar a si mesmo. E bebeu sozinho, como em tantas outras noites, com a janela aberta, mas olhando para o vazio dentro de si.
E, sentado na poltrona, no escuro, abriu os primeiros botões da camisa branca que usava, porque só usava cores sóbrias, e bebeu só, saboreando o gosto amargo dos próprios erros.