A tia fez a limpa na casa. Levou realmente tudo. Mesmo que inevitavelmente abalado, Luan foi até lá três dias depois, verificou se estava tudo em ordem e entregou as chaves na imobiliária. Ficou uma semana sem ir à faculdade e só dois amigos foram ao velório, Lorena e Nicholas, os mais próximos que ele tinha, que o incentivaram a voltar às aulas, sob a alegação de que seria pior ficar sozinho o tempo todo pensando na perda. Era, sem dúvida, um pensamento correto, mas para alguém de luto é difícil pensar racionalmente.
O quarto que passou a morar na casa de Adriano tinha um grande armário embutido antigo, de madeira, como a cama. Havia uma mesa pequena, uma cômoda e um banheiro estreito, mas confortável. Todos os móveis eram antigos e assustadoramente maciços, grandes. Discrepavam do restante da casa do patrão da mãe, mas era confortável e limpo. Suas coisas couberam com facilidade e ele passou a primeira semana quase sem sair de lá e quase sem comer. Comprou salgadinhos e biscoitos e se alimentou daquilo por alguns dias, até que Adriano foi até lá conversar com ele.
— Eu posso entrar? — Adriano pediu, com a seriedade costumeira na voz, depois de bater na porta. Não entrou, esperou do lado de fora.
— Pode... — Luan levantou rapidamente da cama e abriu a porta, que ficava trancada.
— Vim aqui pra gente resolver umas coisas. — Adriano falou com uma rigidez assustadora e Luan pensou que teria que ir embora naquele momento. Por não estar acostumado com o jeito daquele homem, sentiu o estômago gelar.
— Eu percebi que você não foi comer e só fica aqui dentro. Eu sei que eu não fui muito educado com você quando te vi na sala no outro dia, mas você pode comer em casa. Não tem cabimento você ficar aqui e não comer. — ele dizia, depois de ter puxado uma única cadeira de madeira que havia no quarto, ao lado da cômoda, e sentado nela, com as pernas levemente abertas, mas não de forma que o fizesse parecer informal em demasia.
— Eu ando sem fome... e não quero incomodar. — Luan disse, ainda tenso com a presença duramente altiva de Adriano, que passou uma das mãos levemente nos cabelos escuros.
— Não vou ser hipócrita com você e dizer que essa situação não me incomoda. Porque não é o que eu queria e com certeza não é o que você queria também, por isso temos que ter algumas regras enquanto você ficar aqui. Eu não gosto mesmo de homens em contato com a minha irmã sem eu estar perto, ela é pequena e eu temo que façam m*l pra ela. Não que eu ache que você vá fazer alguma coisa, mas...— Adriano falava com a voz grave, impelindo o coração de Luan a bater acelerado de medo.
— Eu entendo. — Luan falou.
— Que bom. Então, vamos às questões práticas. Você pode usar o que quiser na cozinha, fique à vontade, coma o que quiser. A mulher que fazia a faxina três vezes por semana vai ficar no lugar da... da sua mãe. Vai cuidar da Ana e fazer a comida. A comida dela não é r**m e ela já está avisada que cozinhará pra você também e que você tem trânsito livre até a cozinha. — Adriano explicava, tentando não ser grosseiro, porque o garoto já estava passando por um momento terrível. E dizer que ele só poderia ir até cozinha e que não era para ficar perto de Ana sem outra pessoa junto não era a coisa mais agradável de se fazer.
— Tudo bem. Obrigado. — Luan entendeu a mensagem completamente e foi impossível não ficar um pouco constrangido.
— Eu gostaria também que você não trouxesse ninguém aqui. Por segurança.
— Claro. — Luan concordou.
— Então acho que é isso. Não vou perguntar se você está bem, porque sei que não está. Eu sei o que você está sentindo e perder sua mãe foi como perder uma pessoa da família pra mim também. — Adriano dizia emocionado, mas sem chorar. A tristeza era velha conhecida sua e ele já sabia lidar com ela, como lidava com o dia e a noite, sabia escondê-la. Luan já se desmanchava. Não podia ouvir a palavra "mãe" que o choro vinha.
— Você quer perguntar alguma coisa? — Adriano indagou, sem saber como lidar com as lágrimas que via escorrer pelo rosto do garoto.
— Não... só queria agradecer por deixar eu ficar e, como eu disse antes, eu prometo que você nem vai notar minha presença e que vou embora assim que possível. — ele falava encabulado.
— Não se preocupa com isso agora. Volte a estudar, que vai te fazer bem. — aconselhou, como os amigos fizeram.
— Na segunda eu vou voltar. Obrigado, seu Adriano.
— Prefiro que me chame só de Adriano. — aquilo soou como uma ordem e mais uma vez Luan sentiu o rosto queimar.
— Tá bom. — Luan tentou fazer um sorriso sair.
Cida estava no lugar de Jô, porque assim como a mãe de Luan, ela já trabalhava na casa há bastante tempo. Era funcionária registrada também e ficou feliz quando Adriano ofereceu a vaga para ela, que ganharia quase o dobro. Mas chorava ao lembrar da amiga. As duas se davam bem, o que fazia com que o clima na casa ficasse sempre ameno, a despeito da melancolia constante do patrão. Ela se dava bem com Ana também, fator importante para que Adriano a deixasse no lugar de Jô, ainda que com o coração partido. Cida indicou uma amiga para fazer a faxina em seu lugar, mas ela ainda estava em período de experiência.
A casa era grande, mas era fácil de limpar, fora que Jô sempre ajudou Cida, que agora pretendia ajudar a amiga. Ana Luíza passou a visitar uma psicóloga, assombrada por pesadelos constantes, ela passou a ir para o quarto do irmão no meio da noite. Tinha voltado a fazer xixi na cama e Adriano sabia que tinha a ver com a morte da babá. Foram os dois para a terapia, para tentar lidar com a morte que parecia estar sempre a rondá-los.
Adriano foi pela irmã. Se fosse por ele, teria dois ou três copos de uísque como terapeuta antes de dormir. Mas não era um hábito saudável e ele precisava durar muito tempo. Entrava em desespero ao imaginar a irmã na situação de Luan. Sozinha de repente. Com parentes querendo ficar com ela só por causa da empresa. Sentado no quarto escuro, na grande poltrona e olhando pela porta da sacada aberta para fora, ele bebia, atormentado por dentro. Lidando com trovões e demônios internos.
Dormiu na poltrona. Acordou no meio da noite e foi tomar banho. Quando voltou, Ana estava no quarto com o bichinho de pelúcia, dizendo estar com medo.
— Ana, você não pode ficar vindo aqui sempre. Você precisa dormir no seu quarto, meu anjo... — ele disse calmo, pegando uma roupa e voltando ao banheiro para se trocar. Ela dormiu lá, prometendo tentar dormir no quarto dela na noite dia seguinte.
Cida não trabalhava nos finais de semana e era quando Adriano pedia comida ou fazia alguma coisa para ele e para a irmã. Não era exímio cozinheiro, mas sabia se virar. Agora pedia para três, mas o garoto não foi almoçar. Ouvindo os dois conversarem na cozinha, Luan preferiu não ir até lá. Mas, faminto e sem vontade de sair de casa, esperou que a cozinha ficasse silenciosa e foi buscar algo para comer.
Morrendo de medo e de vergonha de ser pego mexendo na geladeira, ele a abriu devagar, tentando não fazer barulho. Pegou um pedaço de lasanha que encontrou, esquentou no micro-ondas e comeu. Lavou a louça, secou e guardou no mesmo lugar que pegou. Voltou correndo para o quarto.
Adriano explicou para Ana Luíza que era para deixar sempre a porta da cozinha fechada, a que dava para a sala, porque Luan também ia usar a cozinha e ele tinha vergonha. Essa foi a explicação dada à irmã, que perguntava o porquê de tudo. Mas não era a verdade.
Disse também para que a irmã nunca fosse ao quarto dele. Adriano se incomodava com a presença de outra pessoa na casa, não podia negar, e deixar a porta fechada fazia com que ele ficasse mais à vontade. Ele já tinha começado a pensar em forma de fazer com que o garoto pudesse se virar sozinho.
As semanas foram passando e Adriano percebeu que Luan cumpria a promessa, eles m*l se viam. Luan sempre comia antes ou depois deles e com o dinheiro do fundo de garantia comprou um frigobar para o quarto. Pediu autorização para o dono da casa antes, por intermédio de Cida, e o patrão disse que não tinha problema. Comia algumas coisas no quarto mesmo e sempre o mantinha impecavelmente limpo. Tinha os próprios produtos de limpeza e a moça que fazia a faxina dizia que aquele era o melhor cômodo para se limpar.
Antes da morte da mãe, era possível dizer que o garoto era daquelas pessoas que tinham uma espécie carisma discreto. Ele dançava, é verdade, não tinha vergonha de dançar e era desenvolto, mas corava com facilidade, apesar de ter o riso fácil e uma conversa agradável. Mas agora, não se sabia mais como defini-lo. Ele não sabia mais se definir, porque uma perda como a dele muda a pessoa para sempre. E seu novo modo de presença no mundo ainda estava em reformulação. Mas ainda se via uma vibração carismática lá dentro. Algo que nascera com ele e era próprio de sua natureza calma e alegre.
Adriano já tinha sua nova personalidade moldada pela perda. Tinha se tornado uma rocha. Se até os vinte anos diziam que ele era um rapaz feliz, cheio de vida, aventureiro, aos trinta e quatro ele era o oposto. Se até a data em que perdeu os pais ele só tinha amado de verdade uma vez, aos trinta e quatro aquilo não havia mudado. Ninguém entrava em sua vida. E por isso, para ele, ter alguém ali, era um grande tormento. Independentemente da relação estabelecida, relações eram difíceis para Adriano.
Luan estudava de manhã e chegava em casa antes de Ana Luíza. Já tinha suas próprias chaves e entrava e saía quando queria. Como se sentia sozinho, passava algumas tardes conversando um pouco com Cida. Evitava ir para lá quando ouvia a voz da menina. Não porque não quisesse, porque ele adorava crianças, mas porque sabia que Adriano não gostava.
Cida cozinhava razoavelmente bem, de fato, mas era péssima fazendo doces, então Luan começou a fazer alguns bolos e doces que havia aprendido com a mãe. Poucos, porque não queria irritar o dono da casa, que sabia que era ele quem fazia, porque a irmã contava.
No fim do corredor que levava ao quarto em que morava Luan, havia um espaço entre esse cômodo separado e a casa. E num domingo, Luan ouviu risadas ali e barulho de bola. Eram Ana e Adriano brincando de chutar uma bola naquele pequeno quintal de trás. Abriu a pesada janela de madeira e sorriu ao ver os dois. Fazia tempo que não sorria. Ana chutava direitinho, tinha jeito, e ele achou bonita a cena de o irmão brincando com ela.
— Quer jogar, tio Luan? — ela perguntou quando o viu na janela.
— Não, Ana. Tô cansado... obrigado. Mas você joga muito bem! Melhor que seu irmão... — ele brincou e arrependeu no mesmo segundo, sentiu o rosto esquentar e sabia que estava estampada na pele, evidente, a sua vergonha.
— Ela joga mesmo. — Adriano concordou, quase sorrindo, mas sem olhar para Luan, que logo fechou a janela, aliviado por não ter sido visto corar e se sentindo um i****a.
Ele tinha medo de Adriano, que era sempre tão sério, parecia bravo e tinha aquela voz estrondosa. Ficava apavorado também de incomodá-lo e ele o mandar embora.
Tinha um pavor estranho da casa da tia. Não se lembrava dos maus tratos físicos, pois era muito pequeno para recordar e a mãe, para poupá-lo, não havia contado toda a verdade. Ele lembrava dos gritos, das broncas, e tinha uma péssima recordação de um corredor no qual passava muitas horas, quase no escuro. Associava o corredor sombrio à tia e por isso tinha medo dela.
A mãe contava histórias ruins sobre a tia, para que ele sempre quisesse ficar longe dela. Todas verdadeiras. Histórias sobre traição e inveja, para criar no imaginário do garoto, uma imagem da tia que chegasse próximo do real. Mas não contou sobre os machucados, porque mesmo sem ter muito estudo, de forma meio inconsciente, com um insight desses que só quem é mãe tem, ela achava falar daquilo faria o filho reviver o que tinha passado. Por isso, preferiu que ele fosse poupado da verdade completa. Mas dentro de Luan morava a verdade, ainda que ele não conseguisse acessá-la. E por isso ele preferia viver na casa de Adriano.
Já havia se passado mais de um mês da morte da mãe e o semestre estava acabando. Agora os boletos da faculdade iam direto para o endereço de Adriano e ficavam junto com sua correspondência. Luan nem os via. Mas queria arrumar um emprego, um estágio, alguma coisa, para que conseguisse pagar sozinho a facildade. Mas seu curso, junto com o de Educação Física, era o único entre as Licenciaturas que impedia o estudante de dar aulas antes do término do curso todo. Então ele só conseguiria emprego como professor assistente, para ganhar muitíssimo m*l e ser bastante explorado, isso se o contratassem, porque muita escola não contratava professores homens para séries iniciais. As escolas públicas, sim. Mas para trabalhar em uma precisava terminar a faculdade. E ele ainda estava no início.
Ainda de luto, Luan não tinha vontade de sair com os amigos. E por mais que insistissem, ele não ia. Passou as férias todas enfurnado no quarto lendo e vendo tevê, m*l saía de lá. Passou alguns dias até sem escovar os dentes, tamanha a falta de vontade de qualquer coisa. Ia para a cozinha comer quando não tinha ninguém, furtivamente, como um ladrão, e aquela era sua vida depois da trágica morte da mãe. Ele vivia como se estivesse completamente sozinho.