1- Amor fraterno

1980 Words
Maria Joana chegou cedo ao trabalho, como todos os dias. Mesmo que morasse distante, sabia que seu atraso atrapalharia por completo a rotina do patrão. Algumas vezes chegava a dormir no quartinho de empregada que havia na casa, quando era necessário ficar com Ana Luíza até mais tarde, ou se Adriano precisasse dela muito cedo. Mas isso era raro. O patrão fazia questão de pagar cada centavo das horas trabalhadas a mais e ainda um extra pela disponibilidade, o que fazia com que o salário de Jô fosse mais alto que o de muitas babás que ela conhecia. Mas não era só o dinheiro que a fazia chegar sempre pontualmente. Ela gosta da menina e nutria uma grande compaixão por ela e pelo irmão. Ana Luíza já estava com oito anos e Jô ainda lembrava dela bebê. Nunca tinha sido babá antes. Aceitou o emprego por necessidade e por indicação de uma amiga muito próxima. Falou a verdade na entrevista de emprego. "Nunca fui babá, mas sou mãe de um menino de onze anos", argumentou a seu favor e a mãe gostou da sinceridade, resolveu arriscar. E Jô foi contratada pela família quando Ana tinha apenas alguns meses de vida. Rosana se afeiçoara à babá, e Jô cozinhava tão bem, que logo passou a ganhar para cozinhar todos os dias para a família Albuquerque Lazzio.  Foram apenas dois anos de convívio com o casal Rosana e Oswaldo, pois um acidente de trânsito na estrada tirou a vida dos dois. Rosana detestava avião, por isso tinha ido viajar com o marido de carro. Era uma viagem a trabalho, mas como Ana Luíza ainda era muito pequena e a viagem curta, a menina foi deixada em casa, aos cuidados da babá, foi o que a salvou. Quando Jô precisava dormir mais de um dia na casa dos patrões, levava o filho, Luan, que dormia com ela no quartinho e lá passava quase todo o tempo. Quando era coisa rápida, Luan ficava na casa da vizinha, Silmara, que recebia por cuidar do garoto. Foi Jô que atendeu ao telefonema aquele dia. Foi ela quem recebeu a notícia da tragédia e foi ela que cuidou da menina órfã de apenas dois anos até que o irmão voltasse de viagem. Adriano demorou dois dias para chegar. Arrasado, destruído e também órfão teve que largar o emprego e cuidar sozinho e sem experiência dos negócios da família. Ele fazia sua segunda viagem ao Oriente Médio e estava na Turquia quando foi informado do acidente pelo tio, irmão de seu pai. Foi uma fase terrível na vida dos filhos do casal e Maria Joana foi quem ajudou Adriano a cuidar da casa e da irmã, sendo muito mais que uma babá. Era quase uma governanta e uma amiga. Tinha uma história com aquela família, que agora tinha apenas dois integrantes. Os dois irmãos órfãos. Ana Luíza era muito pequena e para ela a perda dos pais, na infância, foi menos dolorosa. Foi ludibriada por muito tempo até compreender que os pais não voltariam. Adriano sofreu mais. Sofreu muito. E foi obrigado a assumir responsabilidades enormes muito cedo.  Com a ajuda de Jô ele criava a irmã, que o tinha como figura paterna e a tia Jô como figura materna. Tudo isso contribuiu com a criação do laço entre eles, ainda que Adriano fosse uma pessoa extremamente fechada. E Jô sempre dizia que jamais abandonaria os dois. Como os pais tinham dinheiro, Adriano terminou o Ensino Médio e foi fazer intercâmbio na Europa. Passou quase dois anos por lá e foi nesse período que se interessou, curiosamente, pela história dos povos daquela região. Foi por isso que quando retornou, aos vinte anos, já sabia exatamente o que queria estudar. E aos vinte e cinco se formava em Relações Internacionais.  Conseguiu emprego rápido e logo após terminar a graduação, já iniciou sua pós-graduação em História do Oriente Médio, tornando-se especialista em História do Curdistão. Era sua paixão. E aos vinte e oito anos ele realizava sua primeira viagem às terras curdas, um povo que vive entre três países e não tem reconhecimento legal de nenhum deles. O Curdistão é um país que oficialmente não existe, mas o povo curdo tem cultura e língua próprias, vivendo principalmente nas fronteiras da Turquia, Síria e Iraque, lutando para que seu país seja independente e reconhecido e sendo massacrado pelos três países que não reconhecem sua autonomia. Os curdos são uma das maiores populações sem pátria do mundo. E por não serem, em sua maioria, muçulmanos e viverem em países majoritariamente islâmicos, os curdos sofrem preconceito e perseguição. E era lá, no sul da Turquia, no lugar que deveria ser reconhecido oficialmente como parte do Curdistão, que Adriano se encontrava quando soube da morte dos pais. Ele, que estava em uma zona de intenso conflito e guerras constantes, quase na fronteira com a Síria, ficou sabendo que os pais morreram de acidente de carro, uma colisão na rodovia.  Porque viver é perigoso. E não precisa estar na guerra para ter de lidar com a morte. Sentiu-se só, como se sentiam os curdos, sozinhos e isolados no meio daqueles países e daquelas montanhas. E assim, aos vinte e oito anos, ele largou o emprego de internacionalista e teve que aprender a gerir o negócio dos pais. Uma empresa de aluguel de carros com quatro unidades. Seu mundo se estreitava outra vez.  Os donos de uma empresa de aluguel de automóveis tinham morrido em um acidente de carro, mostrando que a vida pode ser ironicamente c***l. A tragédia mudou completamente a vida de Adriano. De alegre e cheio de planos, ele se fechou num mundo próprio. Endureceu, tornou-se solitário. Mesmo tendo se passado seis anos do fatídico acidente, ele pouco sorria ou conversava, exceto com Jô, com quem ele até que falava bastante. Trabalhava muito e tinha poucos amigos. Foi preciso se dedicar tanto para aprender a lidar com a empresa e com a nova realidade que ele já não sabia fazer outra coisa.  Exceto quando se tratava da irmã. Com Ana Luíza ele sorria e se esforçava para dar toda a atenção de um pai. Fazia lição de casa com ela, ia às reuniões da escola, levava para comprar roupas e passear no fim de semana. Ele vivia para a empresa e para a irmã. Aliás, ele cuidava da empresa por causa da irmã. Para que ela pudesse ter um futuro confortável. Porque se fosse por ele, estaria no Oriente, estudando e vivendo lá. Ele amava os pais, que sempre foram maravilhosos, mas mesmo tocando os negócios da família, prometeu a si mesmo que seria mais presente para a irmã do que o pai foi com ele. Quando Adriano era jovem , a empresa, Lazzio, como o sobrenome da família, ainda estava em estágio embrionário e o pai precisava trabalhar muito, quase não tinha tempo para ficar com ele. E Adriano sentia essa ausência. A mãe era mais presente, mas crianças e adolescentes querem e precisam da atenção dos dois, quando é possível. Ainda assim, sempre fora consciente de sua sorte, porque a irmã nem sequer teria a chance de conviver com os pais. E por isso ele se esforçava, fazendo de tudo para que Ana se sentisse amada. Embora soubesse que nunca seria a mesma coisa. Eles só tinham um ao outro. E tinham a Jô, que havia se tornado uma figura materna até mesmo para Adriano, mesmo com toda a sua dureza. Luan, filho de Maria Joana, já estava com dezenove anos e tinha entrado recentemente na faculdade. Fazia Pedagogia, queria dar aula para crianças, mesmo sob protestos da mãe, ele teimou. Mesmo tendo pouquíssimo contato com o filho de Jô, Adriano se ofereceu para pagar a faculdade do garoto, para que Jô não precisasse tirar do seu salário. — Ah, Adriano... fico até sem graça de aceitar, meu filho. Você já é tão bom pra mim. — ela disse, quando ele se ofereceu para pagar. — Para com isso, Jô. Você que é boa pra gente. Eu faço questão de fazer isso por você. Só te peço pra colocar o boleto junto com as outras contas da casa, pra eu não esquecer.  — Mas... — ela tentou argumentar, realmente constrangida. — Mas nada, Jô! Por favor... já está decidido. — ele avisou, com a seriedade que era praxe. — Tá bom... muito obrigada, filho. Seus pais se orgulhariam de você... — ela disse emocionada, dando um beijo em sua têmpora, enquanto ele tomava café da manhã. Adriano sorriu curto e rápido, perguntando a ela sobre a irmã, para disfarçar que ele próprio também havia se emocionado de leve.  — Até que enfim, baixinha. — ele disse para Ana, ao vê-la entrar na cozinha.   — Eu tava me arrumando... — ela falou, sentando-se em seguida. — Quem vê pensa... tem nem tamanho e quer se arrumar. — ele brincou, porque só com ela que ele brincava.  Ela comeu rápido e Jô entregou a lancheira já abastecida, abaixou pra dar um beijo na menininha como fazia todos os dias e ela saiu com o irmão, que esperou no portão, até que o transporte escolar chegasse. — Eu não preciso abrir sua mochila hoje pra ver se você tá levando brinquedo pra escola de novo, né? — ele perguntou. — Não... mas hoje é dia de brinquedo... — ela se entregou. — Ana! Na escola tem brinquedo, se você encher a mochila de brinquedo não vai fazer lição e sua prô vai brigar... e eu vou ficar triste com você. — Vou brincar só no recreio... eu prometo... — ela fez cara de piedade. — Abre a mochila. — ele ordenou. Ela abriu e tinha cinco bonecas lá dentro. — Ana Luíza! — ele falou bravo.  E com uma carinha levada, ela começou a tirar as bonecas de dentro da mochila uma a uma e entregar pro irmão.  — Ótimo! — ele disse, segurando aquele monte de boneca. — Hoje à noite eu vou escrever um bilhete pra sua professora perguntando qual é o dia de levar brinquedo. E no dia certo você leva... — ele dizia. — Mas não cinco, né? — ele riu. — Tá bom. — ela falou, com o olhar sapeca. — E é pra brincar na hora certa... quero que você aprenda muitas coisas, pra ficar inteligente... — ele explicava com carinho. — A tia Gi chegou. — ele avisou, quando viu o carro do transporte escolar chegar. Cumprimentou a motorista e a ajudante que ficava atrás com a crianças, deu um beijo na irmã. E a esperou entrar no carro. — Vai, malandrinha... boa aula... se comporta. — falou, vendo-a ir. Voltou para dentro levando as bonecas e pediu para Jô guardar. — Mas fala se ela não esperta? — Jô riu ao ver aquela pilha de bonecas. — Ela é pilantra, isso, sim. — Adriano brincou. — Tô indo, Jô. — Bom trabalho, filho. Ele agradeceu e foi trabalhar, como todos os dias. Voltou cansado, mas fez lição com a irmã antes da refeição, na mesa de jantar da sala. Os dois continuaram morando na casa dos pais, mas Adriano fez uma grande reforma uns anos depois, para que o ambiente parecesse outro. Desfez o quarto dos pais, fazendo duas grandes suítes, uma para ele e outra para Ana. Manteve um quarto para hóspedes, embora não recebesse muitas visitas. Não mexeu na parte de baixo, só mudou a decoração. Queria manter os pais na lembrança, mas não que eles vivessem presentes ali como fantasmas. E, apesar de Adriano ser solitário e estar quase sempre sério e soturno, a casa tinha uma energia leve, conferida pela menina cheia de vida que morava lá e pela sua babá, sempre alegre e divertida. A despeito de todo o sofrimento que aqueles dois haviam passado, existia uma amor fraterno e genuíno entre os três e isso era fácil de se sentir.
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