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1852 Words
Dois Céu — Calma, Céu, agora mais do que nunca tu precisas ser forte. Engoli o bolo que se formou em minha garganta, após ver a última pá de terra ser jogada sobre a cova de papai. Ali seria sua nova morada, seu lugar de descanso depois de ter se sacrificado e trabalhado a vida inteira para cuidar de mim. Amor, carinho e educação nunca faltaram na minha criação. Seu Joaquim foi um homem incrível, não poderia ter tido um pai melhor. Infelizmente todos estamos aqui de passagem e chegou o momento de seguir meus trilhos sozinha, escrever minha própria história como ele escreveu a dele. — Vamos embora, não dá pra gente ficar aqui para sempre — Jacira, minha melhor amiga, estava empenhada em me dar todo apoio possível. — Descanse em paz, meu pai. Te amarei para sempre… — murmurei baixinho, sentindo as lágrimas escorrerem por minhas bochechas, enquanto colocava uma rosa sobre o lugar que ele ficaria eternamente. — Prometo nunca me esquecer de nada que tu me ensinastes. Obrigada por tudo… Quando dei as costas para seu túmulo meu coração deu um nó, mas eu sabia que precisava ser forte se quisesse seguir sempre em frente e tenho plena certeza, de que era isso que papai queria para mim também. Deixamos o humilde cemitério de Mandaraguia num profundo e doloroso silêncio, uma parte de mim, ficou ali. Um vazio se alojou em meu peito enquanto seguia pela estrada de chão pensativa, mas algo além do luto chamou minha atenção. Uma gigante caminhonete passou acelerada ao meu lado para depois derrapar bruscamente, bloqueando a passagem e jogando poeira sobre nós. Abanei o ar com as mãos para tentar respirar ou enxergar alguma coisa, quando a nuvem finalmente abrandou o vidro escuro do carro potente e luxuoso arriou, revelando um homem branco usando óculos escuros e cabelos lisos escondidos debaixo de um boné. — És tu, a Celeste, filha do seu Joaquim que morreu? — Engoli em seco com a rispidez do homem, que até então nunca tinha visto. — Responde à minha pergunta, tu és a Celeste? — Égua! Por que quer saber? — Vou ser direto contigo. Seu pai, antes de ir embora, deixou uma dívida com a gente. E quem pagará é tu. — Uma dívida… Dívida de quê? — Drogas — ele disse, abrindo um sorriso sarcástico, revelando alguns dentes podres que me fizeram sentir asco. — Meu pai era um homem direito, jamais teria a coragem de usar uma coisa dessas! — Tem razão, ele não usava, mas vendia. — Mentira! Impossível! Papai era pescador, ficava a semana inteira pelos rios para trazer o nosso sustento. — Isso era o que ele dizia. De qualquer forma, esse é o valor da dívida. O homem me entregou um pedaço de papel e eu tive que rir daquilo. — 20 mil. Égua! Então tu estás querendo dizer que meu pai morreu te devendo 20 mil em drogas? Ah, pare com isso moço, tome vergonha na cara, papai era um caboclo honesto. Se ele estivesse aqui agora diria que nem sabe o que é 20 mil reais, muito menos em drogas. Papai era um homem direito, não gostava nem de tocar no nome dessas coisas. Minhas palavras pareciam não ter a menor importância para o senhor à minha frente. — Você tem uma semana para me arranjar pelo menos a metade desse dinheiro, caso o contrário… — Caso o contrário? — Nem queira saber — foi o que ele disse antes de subir o vidro do carro e partir acelerado, deixando uma infernal nuvem de poeira novamente. — Égua! Quem era aquele homem e o que ele queria? — Ninguém. Prefiro acreditar que isso seja apenas um delírio do luto que estou sentindo. Jacira assentiu, mas em seguida ficou paralisada, com os grandes olhos negros arregalados quase saltando para fora, e disse involuntariamente: — Tome muito cuidado com ele. — Arrepios cobriram minha pele, o medo me varreu ferozmente. Quando caiu em si, Jaci se apavorou e tentou consertar o que acabara de dizer: — Não ligue para as coisas que eu falo. — Como não ligar, Jaci, tu me alertastes sobre a morte de papai, nunca mais deixarei de acreditar em nada que sai da sua boca. — Jacira tinha me alertado, da mesma maneira, sobre a morte do meu pai, ignorei, mesmo não sendo sua primeira previsão. Na verdade, desde que nos conhecemos, ainda crianças, Jaci sempre foi muito intuitiva, mas agora nos últimos tempos ela tem tido visões mais claras e um tanto assustadoras. Será que isso tem a ver com o fato da minha amiga ser uma índia? Talvez possa ser isso, Jaci fugiu da sua tribo com a irmã mais velha que se envolveu com um homem branco e hoje tem uma família com ele. Jaci ainda mora com eles, mas sinto que às vezes ela se sente deslocada. Minha amiga odiava falar sobre isso. [...] Chegando em casa, eu não tinha muitas alternativas senão trabalhar dobrado para me manter sozinha. E pior que me manter sozinha era viver sozinha, sendo uma moça de 17 anos. Papai, que sempre foi precavido, deixava uma espingarda comigo e me ensinou a atirar caso fosse preciso, mas agora, mesmo com uma arma me sinto um tanto indefesa e solitária. Meu coração dói só de pensar que papai nunca mais passará por aquela porta. Talvez eu tivesse mesmo que focar no meu trabalho, para espairecer e aceitar minha nova realidade. Eu tinha uma encomenda para finalizar ainda nesta semana. Minhas mãos estavam sempre calejadas e meus dedos feridos devidos as farpas do bambu. Faz algum tempo que me descobri artesã. Cresci vendo vovó tecendo peneiras e balaios com tiras de bambu. Eu ficava completamente encantada e admirada com aquilo e, não demorou muito para que começasse a me arriscar e ficar boa naquilo também. Muito criativa, além dos tradicionais balaios e peneiras de vovó, também comecei a tecer cestinhas, vasos e outros objetos decorativos. Quando ela partiu, me restou de herança seus fiéis clientes. Comerciantes que viam de fora ou nossos vizinhos ribeirinhos que eram fãs da resistência dos meus balaios. Passei o restante do dia tecendo balaios e quase virando a madrugada para dar conta de tudo. Mas aos poucos minha energia se esgotava e eu acabei desabando, dormindo como se aquela fosse a última noite da minha vida. Sonhei com papai. Ele me encontrava e dizia que nunca esteve tão bem, eu disse que queria ficar com ele, mas ele disse que a minha missão não estava cumprida e que eu tinha muito o que viver daqui para frente. [...] Beto — Abílio, por favor, não faça isso com nossa filha! — mamãe implorou, desesperada. Papai se fez de surdo e com um cinto continuou a açoitar minha irmã, como se ela fosse uma escrava e ele o feitor. Ela gritava, se contorcia, gemia de dor. Mas depois daquele circo não havia mais nada a ser feito, Lavínia nos envergonhou diante dos nossos sócios e de toda a sociedade. Amanhã viraríamos piada em toda cidade. Quando Abílio parou, mamãe abraçou minha irmã tentando acalmar seu choro de alguma maneira. — A culpa disso tudo é sua. Você não soube educar nossos filhos, que mulher imprestável escolhi como esposa. Deveria lhe dar uma surra… — Na minha mãe você não vai encostar nenhum dedo — cortei papai friamente. Cresci vendo ele espancar minha mãe por qualquer besteira, muitas vezes a culpa era minha e de Lavínia, que aprontávamos bastante na infância, mas no final das contas quem pagava por nossos erros sempre foi ela. Abílio também me agrediu e humilhou muitas vezes, mas desde o dia que aprendi sozinho a manusear uma arma, passou a me olhar com mais respeito. Minha relação com Abílio era um tanto incerta. Ele deixou marcas permanentes no meu corpo. Ser o filho homem significava sofrer mais e meu pai optava por usar um chicote grosso para me corrigir, mesmo não passando de um pirralho naquela época. O clima na casa estava pesado e nem se eu quisesse, conseguiria dormir. Estressado peguei minha caminhonete e rodei por Mandaraguia para saber como estavam as coisas. A reação dos moradores falava por si só, quando reconheciam minha caminhonete até mesmo as crianças corriam para dentro de casa, as senhoras fechavam as janelas e trancavam tudo como se eu fosse uma assombração. Levaria anos para construir meu próprio legado e limpar a imagem terrorista que meus antepassados deixaram marcada na cidade. Nunca quis ser temido, meu objetivo era ser respeitado o que era muito mais difícil de se conquistar. Mandaraguia ficava localizada num ponto estratégico. Poderíamos dizer que estávamos dentro da floresta amazônica e a poucos quilômetros da fronteira com a Bolívia. Na via que fazia conexão entre os dois países havia um hotel, que à noite também funcionava como um tradicional cabaré da cidade: A Sirigaita. Eu costumava frequentar o cabaré. Tinha gostos um tanto peculiares no sexo e somente as mulheres de lá conseguiam me saciar, sem se sentirem violadas. Lá eu descarregava meu prazer, meu ódio, meus sentimentos mais impuros sem nenhum remorso. Não precisava me controlar como fazia com minha noiva cheia de frescuras. Não perdi tempo, estacionei meu carro e entrei na casa onde fui recebido como um rei. A decoração era um tanto extravagante, havia lustres gigantes espalhados pelos quatro cantos do salão que faziam contraste com o vermelho que cobria as paredes. O bar de madeira expunha as bebidas para os mais variados gostos. Eu particularmente não gostava de perder tempo. Um minuto era mais que o suficiente para escolher quem seria meu brinquedinho da noite. Uma morena de cabelos longos e negros, extremante brilhantes, chamou minha atenção logo que entrei. Ela era exuberante e tinha cada curva do corpo em seu devido lugar. A lingerie vermelha contrastava com a pele clara e seu perfume era um ímã, mexia com meus sentidos e ascendia todos os meus instintos mais cruéis e sensíveis. Rapidamente a levei para a suíte vip onde deixei o monstro que vivia enjaulado dentro de mim, sair, extravasar, descarregar seus desejos, seu rancor e suas mágoas. Ali me libertei. Dei e recebi prazer. Queimei boa parte da minha energia fodendo aquela p**a e depois fui embora. Nervoso, angustiado e mais revoltado que nunca. Meu pós sexo nunca foi muito agradável, com isso já estava acostumado. Deixei o local e peguei meu carro o mais depressa que pude. Segui acelerado pela estrada de terra íngreme e esburacada, que levava à fazenda Magalhães. Apesar de escuro, no leste já era possível ver os primeiros raios de sol apontados por trás das gigantescas e robustas árvores daquela região. Diminuí a velocidade para passar pela pequena ponte de madeira que cruzava um riacho. Mas soube que minha manobra não seria o suficiente quando ouvi um estrondo e senti o impacto da madeira se desfazendo debaixo da caminhonete. Tudo aconteceu muito rápido, senti algo na minha cabeça, para em seguida me desligar por completo enquanto a água gelada do riacho tomava conta de tudo que havia à minha volta.
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