Tomou seu desjejum na estalagem naquela manhã. Ahura não pagava pelas estadias. Becca e o marido faziam questão de deixar o filho do rei pernoitar lá o quando quisesse e se tivesse alguém instalado no quarto que Ahura costumava usar, Becca tirava a pessoa de lá com pouca gentileza. Mas no geral ela evitava deixar que alguém ficasse naquele quarto. E poucas pessoas usavam a taberna como hospedaria, só alguns moradores de Shakya que precisavam ir à floresta colher algumas ervas ou plantas e precisavam passar a noite, ou algum moradores da floresta mesmo que não conseguia voltar para sua casa depois de uma noite de bebedeira.
Mas as noites de Ahura ficavam por conta da casa, assim como as de Idrya, se ele estivesse acompanhado do príncipe. Ambos pagavam pelo que comiam e pelo que bebiam, entretanto. E aquele desjejum de pão e leite, Ahura pagou. Depois saiu para a floresta, sozinho, a fim de que Kalish o encontrasse. Porque nunca se encontrava uma guardiã. Elas encontravam as pessoas.
Como ela não apareceu e nem Laya, ele treinou sozinho. Só depois de muitas horas, quando ele estava encostado em uma árvore descansando, sentindo a brisa fria e úmida incomodar-lhe a face, foi que Kalish apareceu, como surgida do ar.
Havia poucos cavalos na floresta e os que havia tinham sido roubados de Hybria e, naquele dia, Kalish apareceu a cavalo e Ahura, montado no seu, a acompanhou até uma pequena casa tão enfiada na mata e tão coberta de folhas que nem se ele quisesse muito conseguiria encontrar novamente sozinho. Vista de longe, a casa parecia um amontoado de folhas. Eram assim quase todas as casas na floresta, invisíveis para olhos destreinados.
Desmontaram dos cavalos, amarram-no próximos à casa e Kalish chamou baixo.
A porta se abriu e um garoto de aproximadamente doze anos apareceu. Nis, o filho de Devah, foi quem os atendeu e a guardiã mais velha já estava com a bebida pronta para o príncipe. Pediu que o filho saísse para brincar lá fora e ficaram somente os três.
— Alteza, o senhor está de barriga cheia? — perguntou a mulher mais velha, enquanto o príncipe olhava ao redor.
Coisas estranhas penduradas no teto, potes sobre uma mesa, um cadinho com ervas, mas tudo limpo. Cheio de apetrechos, mas limpo.
— Não. Faz tempo que eu comi. — ele respondeu, meio cismado.
— Excelente. Algumas pessoas passam m*l com a mistura que vou te dar e vomitam, por isso é melhor estar de estômago vazio. — ela explicou, já com o copo na mão.
— Então... eu vou passar m*l? — ele estranhou.
— Não. Mesmo se você vomitar, m*l vai sentir. E será seu corpo expulsando as impurezas. Não é nada forte. — ela o acalmou.
— Mas, se você não quiser, príncipe Ahura, não tome. — Kalish sentou ao seu lado na cama onde ele tinha sido instruído a ficar.
— Eu mesma não tomo mais isso. Eu já tomei, mas não gosto. E ninguém tem que tomar se não quiser. Existem outras formas de conhecer o mundo azul... — Kalish continuou.
— Sim. Algumas pessoas vão até lá de forma consciente e se lembram de tudo, mas precisa ser muito puro de coração pra isso. Não sentir raiva, nem ódio, nem cobiça, nem ciúmes... — Devah explicou e sorriu no final. — Ou sentir bem pouco, e conseguir dominar esses sentimentos. Coisa que quase ninguém consegue. Por isso, o mundo dos sonhos não é revelado para qualquer um a qualquer momento. Porque dominar o mundo dos sonhos e o corpo dos sonhos pode dar muito poder à pessoa e imagine, Alteza, uma pessoa cheia de ambição e maldade, com muito poder... — Devah fazia suas explicações e Ahura achava fascinante. Se era verdade ou não ele não sabia, mas estava ansioso para mergulhar no mundo azul.
— Mas tome cuidado, nem tudo o que você verá é real. — alertou Kalish, a guardiã que mais desconfiava do mundo azul.
— Kalish... Deixe o garoto ter as experiências dele... — Devah a repreendeu delicadamente.
— Mas é verdade, Devah. Você sabe que é. — a guardiã mais nova insistiu.
— Então, Ahura, não há perigo de você morrer, mas as coisas podem te confundir. Tente se manter focado. —Kalish alertou mais uma vez e Devah se aproximou com o copo.
— Você tem certeza que quer tomar? — perguntou a senhora.
— Tenho. — ele afirmou convicto, e ela entregou-lhe o copo.
— São duas doses. Vou te dar uma primeira e ver como você reage. Vamos ficar aqui com você até terminar, até você acordar e depois você poderá comer. — Devah avisou ao entregar o recipiente. E ele olhou para as duas sem demonstrar estar assustado.
— Pode beber. — Kalish falou, e o viu virar o líquido na boca. Bebeu de uma vez, fazendo uma careta.
— É amargo mesmo... — a amiga disse. — Agora deita. Estarei aqui. — ela se sentou perto da cama que ficava na sala que também era a cozinha da casa. Era ali que Devah e o marido atendiam os doentes. Naquele cantinho que tinha a cama onde Ahura estava deitado, e já começava a sentir os olhos fecharem.
Repentinamente, sem que adormecesse por completo, ele sentiu um puxão no estômago, que subiu para o peito como uma onda, uma vibração, e então ele ficou leve. Flutuou e quando percebeu estava com o rosto no teto da pequena casa. Tentou tocar a madeira ali e seus dedos não conseguiram, atravessaram, e ele puxou a mão assustado e num piscar de olhos estava no chão, em pé, ao lado da cama.
Olhou para a cadeira e viu Kalish sentada. Então o mais impressionante: viu seu corpo deitado na cama, dormindo, e o fio prata saindo do topo de sua cabeça. E tudo em volta era azul, um azul da cor da noite, mas uma noite iluminada por algo desconhecido. Era noite dentro do quarto e sem que quisesse, ele se viu fora da casa, mas não na floresta. Estava em Hybria.
Via um rei que não conhecia. Não era o seu tio, ele sabia. Não conseguiu chegar perto do rei, mas viu a si mesmo no espelho, com uma roupa cheia de adereços que não havia em Shakya, com tecidos e peles que não eram do seu reino e com uma coroa que não era a sua. Então,aquela escuridão que era clara, o levou para o mar. Caminhou na areia e fechou os olhos tentando sentir a areia nos seus pés, não conseguiu. E ao abrir os olhos já estava cavalgando com Laya por Hybria naquela noite, com espada, arco e flecha. Tudo mudava muito rápido, como em um sonho, mas diferente. Os cenários conhecidos em situações desconhecidas. Ele viu sangue. Gritou, correu, fugiu e sentiu outro puxão.
Foi levado para a floresta e aquela luz confusa, azul, o azul estava em toda parte, transformou-se em verde e ele ouviu as vozes da floresta. Vozes que sussurravam dentro de seu peito, sem que ele sentisse medo.
Dançou com Kalish, e atirou suas flechas e se sentiu voar e ouviu as folhas e as árvores e o ar, e dançava, rindo com a nova amiga, e cantava uma música difusa e estava livre. O prazer era tão grande que o seu corpo o o exigiu, sentiu ser puxado com força e acordou. Sorriu para Kalish quando a viu ali. Respirou fundo e tentou levantar.
Uma forte tontura o impediu. E ele ficou sentado por um tempo. Tomou uma sopa oferecida por Devah e só saiu da pequena cabana cheia de livros, registros em cascos de árvores e potes com líquidos que ele não fazia ideia do que eram, quando se sentiu melhor. Agradeceu Devah pela experiência e foi embora com a amiga.
Cavalgaram por poucos metros até que Kalish fez sinal para que parassem. Sorrindo, Ahura desceu do cavalo e se sentou no mato com a guardiã. Estava ainda sob o efeito do prazer onírico que sentiu com a dança na floresta, a melhor de todas as passagens daquele sonho.
— Eu queria muito saber o que você viu, Ahura. Você se importaria em me contar? — Kalish pediu, depois de pôr o arco de lado e enquanto apertava a fitava que amarrava a bota. Ela nunca usava vestido e sempre estava de botas leves, para facilitar a subida em árvores.
— Eu adoraria contar... — ele disse suave.
— Eu vi tudo azul e entendi porque chamam de mundo azul. Eu vi você sentada ali do lado, Kalish! Eu achei que eu teria alguma alucinação, mas eu te vi ali! — ele falava com uma estupefacientemente tranquilo.
— Sim. Você deixou seu corpo de carne. — ela afirmou sem espanto, e ele continuou.
— Eu me vi em Hybria, vi um rei, mas não consegui chegar perto dele e de repente me vi no espelho e eu era o rei! Depois vi a Laya e eu lutando, e tinha sangue e morte. Eu tive medo nessa parte. Foi a pior, porque eu sentia como se eu fosse morrer. Era um medo muito forte mesmo, como se eu estivesse acordado. Eu vi mais algumas coisas que não lembro e depois, por último, vi nós dois na floresta, dançando e praticando. Eu atirava e dançava e a gente ria. E nessa parte o mundo não era mais azul. Foi logo antes de eu acordar. Será que estava passando o efeito da bebida? — ele questionou.
— Não, Ahura. Só passa quando você acorda. E eu sabia! Eu sabia!! — ela falava em êxtase. E o abraçou emocionada.
— Me conta mais dessa última parte... — ela pediu, ansiosamente.
— Foi isso só... Ah, parecia que eu ouvia...
— A floresta! — ela completou.
— É! — ele confirmou surpreso, recebendo outro abraço inesperado dela.
— Você não sabe como estou feliz...— ela disse perto de seu ouvido.
— Não entendo... — ele expressou, quando se separaram.
— As guardiãs conhecem o segredo de acessar o mundo azul desde tempos muito antigos, desde a guerra e a separação. De todas nós, só a Devah e mais uma sabe a preparação. Ninguém sabe qual é a outra. Porque isso não pode se espalhar. Porque o correto é acessar o mundo azul sozinho, quando já se está preparado. Ele tem muitos níveis e pode trazer muito poder, porque de lá é possível ver o passado e o futuro. E quem vê o futuro, Ahura, detém o poder. E o poder não pode cair em mãos erradas, despreparadas e cruéis como as do seu tio, por exemplo.
— Hum... entendo...
— Mas o mundo azul tem muitas armadilhas, porque ele é o mundo dos nossos desejos e o que é mais enganador que nossos desejos, não é mesmo? Então, muitas vezes, quem vai até lá volta com a certeza de que uma coisa vai acontecer, mas aquilo foi contaminado pelo desejo da pessoa, não foi uma previsão correta do futuro. E é por isso que eu não tomo aquela bebida. Por isso que eu não gosto do mundo azul, porque eu ainda não estou preparada para diferenciar o desejo da previsão, do destino. Mas nem todas pensam como eu. Apenas a Kalpa, que estuda os registros, como eu. — Ahura ouvia atentamente, tentando compreender toda aquela informação.
— O fato é que todo mundo tem um corpo azul que sai durante a noite. Todo mundo, até as pessoas mais horríveis. E o mundo azul está cheio de seres maus, como esse nosso mundo aqui. Por isso, eu não confio muito nele. E também, porque depois que eu tomei a bebida que você tomou hoje e eu fui pra lá pela primeira vez, eu também fui parar na floresta, eu também saí do mundo azul. E depois disso, eu passei a ouvir os espíritos da floresta. E neles, Ahura, eu acho que posso confiar. Porque na natureza não tem bem nem m*l, ela é pura. E os espíritos da floresta vivem num mundo que a gente que não tem acesso para poder estragar com nossos desejos e ambições, lá, os homens ruins como o seu tio não vão. E é por isso que eu prefiro ouvir a floresta que o mundo azul.
— Faz sentido pra mim, Kalish... faz muito sentido.
— Eu te procurei aquele dia na cachoeira porque eu ouvi que tinha que te procurar... e eu fui atrás de você... porque você não tem só a marca aqui e no mundo azul, você também pode ouvir a floresta como eu... só precisava desbloquear isso...e o mundo azul desbloqueia algumas coisas na gente... mas mesmo assim todas nós só vamos para lá com a bebida em ocasiões muito especiais. Mesmo as meninas que gostam, não podem ficar tomando o tempo todo. Precisa de autorização de Devah.
— Entendi... mas... só você ouve a floresta? — ele perguntou.
— Só. E tem uma outra guardiã que acessa o mundo azul sozinha, sem ajuda de bebida. Não quando ela quer, mas ela se lembra de quando seu corpo azul se desprende. Só ela tem isso desbloqueado naturalmente. E ela, por estar mais habituada, sabe melhor quando algo lá é uma ilusão. E mesmo ela diz que às vezes se confunde. Por isso, eu disse para você tomar cuidado para não acreditar em tudo. Mas o que eu queria mesmo era saber se você iria ouvir os espíritos da floresta como eu. Se você vai ouvir daqui em diante.
— Se eu ouvir eu te falo... — ele sorriu. — E obrigado pelas explicações, Kalish. Eu estava em dúvida sobre essas coisas todas, mas agora... parece tão real pra mim.
— Porque é real, Ahura! É muito real. — ela falou com certeza.
E Ahura foi embora ainda naquela calma que a bebida tinha proporcionado. Chegou à estalagem ainda de dia, foi para o quarto de sempre, onde Idrya estava jogado na cama e se deitou na outra que tinha lá. Mas assim que pôs os pés para cima, viu a porta do quarto abrir e Laya entrar desesperada gritando:
— Ahura, por favor, você precisa me ajudar!