Abri a janela para que o sol da manhã entrasse e iluminasse a casa, trazendo consigo o calor. Ali era bem frio no início e no fim do dia, algo com o qual eu já tinha me acostumado desde pequena.
A manhã na Vila da Felicidade era linda. A imensidão da fazenda, onde os campos e a plantação de uvas davam um contraste deslumbrante, até parecia uma tela exposta em um museu.
Fiquei ali observando tudo e imaginando que eu era uma pessoa de sorte por viver naquele lugar. E ao longe vi meu pai voltando para casa. Ele costumava acordar cedo e sair para fazer alguma coisa. E não era o único, porque essa era a vida no campo.
Entrei na cozinha para preparar o café. Algo que sempre amei naquele local e na casa era o fogo à lenha. Apesar de termos um fogão a gás, ele era a minha opção favorita.
Tudo fica com o gosto mais aconchegante assim.
Logo pus a água para esquentar e peguei algumas frutas e o bolo de milho e mandioca que eu tinha feito no dia anterior.
Assim que papai entrou pela porta, sem dizer uma palavra, beijou a minha testa. Sempre, em qualquer ocasião, ele tinha essa demonstração de carinho comigo. Depois foi se lavar para o café.
Olhei as horas, pensando se daria tempo de eu passar na casa de Flora antes de ir para a floricultura. Mas como eu teria que ir andando, dessa vez seguiria direto para o trabalho.
Eu não reclamava da forma como vivíamos, pois amava o estilo rústico e simples. Desde que minha mãe morreu, eu ajudava o meu pai com tudo. E apesar de morarmos próximos aos nossos amigos, colegas e trabalhadores da fazenda, sempre éramos só eu e ele.
Eu ouvi uma tosse ao entrar na cozinha e liguei o meu alerta. Papai era teimoso e difícil de convencer de ir ao médico. Ele já estava há um tempo com essa tosse constante, e da última vez que fomos ao especialista, ele foi enfático sobre o cigarro, o qual meu pai fumava há anos. Eu era a pessoa que o cobrava sobre isso e tentava, de todas as formas, tirar esse vício dele, no entanto, quando eu dava as costas, eu sabia que o homem tirava de algum lugar o veneno que eu tanto odiava.
— Papai! — eu o repreendi e ele riu antes de afastar a cadeira para se sentar. — O senhor não está fumando de novo, certo?
— Oh, minha filha, você sabe que eu não consigo — ele disse como se fosse para eu entender a sua relutância. — Não consigo ficar sem ele. Sei que é um veneno, mas fazer o quê?
— Parar, papai. É isso que o senhor deve fazer — reclamei, andando até ele, depois de pôr um pouco do café já coado na sua xícara habitual. — Por isso a tosse. Deus me livre pensar no pior, mas o doutor já reclamou.
— Eu sei, eu sei. — Olhei para ele, que tinha o rosto cansado já naquela hora da manhã, com um aperto no coração. — Prometo que vou tirar um dia para ir ao médico.
— Irei junto — falei, sem esperar por uma palavra contrária.
Meu pai me observou andando de um lado para o outro pondo tudo na mesa
Ele estava cansado, desanimado, e não poderia dizer que aquela tosse era o menor dos seus problemas. Se Violeta soubesse que as dores no peito o incomodavam bem mais, ela o arrastaria para o hospital mais próximo.
Só que a vida ali não era fácil, apesar do meu amor pelo lugar onde vivemos.
Os Fontana pagavam bem e nos deu um pedaço de terra, mas se não trabalhássemos, não ganhariam. E meu pai queria juntar dinheiro o bastante para levar a mim para a capital e pagar pelos meus estudos, mesmo eu dizendo que não queria que ele trabalhasse tanto por minha causa.
Eu vivia com medo de que meu pai não voltasse para casa. Sempre ficava pendurada na janela, olhando para o lado de fora, esperando que ele aparecesse para que poder lhe levar um copo com água ou servir sua comida.
Temia ficar sozinha naquele mundo do qual só conhecia 1%. Amava meu pai e cuidava dele desde o funeral da minha mãe. E pensar que algum dia ele me deixaria rendia uma dor de cabeça imensa nela.
***
Passar o dia na floricultura era a melhor parte. Eu amava estar no meio das flores, sentindo seu perfume e vendendo amor. Era óbvio que certas vezes clientes homens adoravam dar em cima de mim, mas eu nunca lhes dava liberdade, fazia o meu trabalho e voltava para casa.
A floricultura ficava a quase 1 quilômetro da vila, que era dentro da fazenda dos Fontana. A cidade inteira girava em torno disso, pois além dos campos cheios de árvores frutíferas, tinha o vinhedo, que era o que realmente importava. A indústria ficava a alguns quilômetros. Tudo era produzido ali e exportado. Isso gerava uma economia para a cidade imensa, fora o turismo, já que adoravam visitar a cidade mais fria que produzia um dos vinhos mais deliciosos do país.
Estava na metade do dia e o sol se encontrava alto, mas não muito quente. Havia chovido mais cedo, o que diminuiu a temperatura e criou algumas poças em algumas partes da pista de terra.
Aproveitei aquele momento para pensar na vida e em mim. Apesar de eu amar o vilarejo, sempre quis saber como era a vida fora do campo. Mas eu nunca sairia dali para deixar meu pai sozinho nem por um dia. O homem trabalhava desde muito cedo, era sozinho e nunca reclamava das dores nas costas. E com aquela tosse por conta do cigarro, eu ficava aflita em pensar que ele estava doente.
Perdi minha mãe muito cedo. Ela adoeceu e piorou com o tempo. E papai nunca mais arrumou ninguém e se isolou, deixando-me preocupada.
Mas o que mais me preocupava no momento era a morte repentina do senhor Fontana, dono da fazenda e do vinhedo. Nós trabalhávamos e morávamos em suas terras. Ele e sua esposa moravam ali há muito tempo e nunca deixaram o lugar, mas seus filhos, herdeiros de tudo, saíram da cidade cedo para estudar e trabalhar.
Eu nunca os tinha visto. O que eu sabia era que eles não gostavam em nada da vida simples que tínhamos ali. E isso era o que mais me afligia, pois eu não sabia se dona Helena ficaria sozinha na casa grande administrando tudo.
O que acontecerá com este lugar?
Bem... É verdade que era dali que toda a riqueza dos Fontana saía, porém não queria dizer que eles sairiam da cidade grande para morar na fazenda e a administrar. Ricos e mimados como eram, era provável que colocassem alguém de fora ou uma equipe para fazer isso. O que não seria o fim do mundo, mas mudaria as coisas.
Já estávamos acostumados com aquela vida e com as tradições. E apesar de exigente, o senhor Fontana era um ótimo patrão. Ele era generoso e participava dos festivais do vinho. Na verdade, era ele quem planejava tudo.
Entretanto, tudo isso se tornou uma incógnita.
A alguns metros, eu já via a vendinha do vilarejo. Como os moradores tinham que andar alguns quilômetros até a cidade para comprar algo, um dos próprios moradores abriu a venda, a qual tinha o básico para uma emergência.
Eu estava com sede e não havia levado nada para beber. Minha casa ficava a uma pouca distância dali, mas eu gostava de conversar com dona Maria, que sabia de tudo no vilarejo. Meu intuito era descobrir quando os filhos do patrão chegariam.
A cerca à esquerda me impedia de sair da rodagem. Não tinha muitos carros passando, então essa não era uma preocupação minha naquele momento. Entretanto, deveria ter sido, pois antes mesmo de eu poder me distanciar da imensa poça de água barrenta que estava em minha frente, um carro desgovernado passou em alta velocidade diante de mim.
No mesmo instante meu corpo foi molhado com a sujeira da pista. A poça não era pequena, e com o tamanho do veículo, formou-se uma onda de barro vermelho que me molhou por inteiro. E para piorar, o culpado por isso simplesmente continuou o seu percurso como se nada tivesse acontecido.