Ao abrir os olhos encontrei o quarto escuro, com alguns feixes de luz entrando entre as cortinas. Corpos ao meu redor quase me impediam de sair do lugar.
Ao murmurar, eu me lembrava da noite passada. Também tinha a dor de cabeça e o cansaço no corpo. Por mais que eu tivesse acabado de acordar, ainda me sentia assim: cansado.
Eu sabia que tinha prometido parar com essas noitadas e focar na carreira e na vida que o meu pai tanto queria para mim, mas receber a notícia da sua morte me jogou de volta para esse lugar. Não éramos muito próximos, como pai e filho deveriam ser, porém eu o amava. Ele sempre era paciente comigo quando eu fazia merda e me dava conselhos que mais pareciam broncas, no entanto, no fim de cada conversa, dizia a mesma frase: “Você sabe que eu te amo, então vê se cresce e toma jeito”.
Bem... Nunca cresci tanto. E até ontem ele me dava bronca por meu nome estar sempre unido a alguma merda. Seu maior sonho era ter netos, vê-los correndo pelo vasto campo da fazenda e lhes ensinar as tradições e o ritual do vinho, que acontecia quando a última safra era colhida.
E naquele momento, saindo da cama na qual aproveitei a noite com duas mulheres lindas, veio-me à mente a sua voz: “Vê se cresce e toma jeito”.
Eu gostaria de ter feito isso antes de ele ir embora.
Sentindo-me um i****a, abri uma das cortinas e fui ao banheiro. O reflexo no espelho estava borrado e o homem era outro. Eu quase não me reconhecia. Beber e t*****r pareciam atividades que me tiravam da cabeça o quanto eu era um o****o e que apesar do diploma e das minhas aventuras em investimentos, eu não era alguém de se orgulharem.
Minha mãe estava com Bento. Ele era o mais velho e responsável, o cara que me olhava feio e reclamava dos meus maus atos. Desde o enterro, eu não tinha ligado nem dado notícias. Eu apostava que assim que nos encontrássemos, ele me diria uma daquelas frases de irmão mais velho e de bom moço.
Eu ouvi o barulho do celular, e isso incomodou os meus ouvidos. Não só os meus, já que uma das meninas, de quem eu nem sabia mais o nome, também reclamou.
— Desliga logo isso! — falou a morena nua em cima da cama. — E fecha a cortina — exigiu.
Não me importei com nada disso, peguei o aparelho e olhei para a tela. Um número conhecido. Eu sabia exatamente o que deveria ser.
— Bernardo — cumprimentei-o com bom humor, apesar da ressaca e da dor de cabeça. Eu nunca era ranzinza como o meu irmão. — Quais as novidades?
— Você sabe exatamente do que vou falar.
Eu poderia apostar que ele estava sentado à sua mesa revisando alguma papelada e de cara fechada, como sempre. Bernardo trabalhava para a família já há muito tempo. Ele era amigo pessoal dos papéis e foi o responsável legal deles.
— Seu irmão já foi notificado sobre a leitura do testamento amanhã, às nove, no meu escritório.
— Ah — limitei minha pronúncia antes de pensar no que dizer. Ler o testamento seria a parte mais fácil. Ou deveria ser. Papai podia ser durão, mas sua partida mexeu comigo. — Então, amanhã. Obrigado. — Passei a mão na minha cabeça, que doía ainda mais. — Até lá então. — Desliguei o telefone, podendo voltar ao m*l-estar da manhã.
Eu sabia que teria que encarar toda essa coisa. Mamãe ainda chorava, e a ver daquele jeito me deixava m*l.
Está na hora de assumir as responsabilidades.
***
Ouvir Bernardo foi o mais fácil do dia, e ver minha mãe e irmão também, mas o final daquele testamento foi surpreendente.
Éramos os legítimos herdeiros, disso não tínhamos dúvidas. Claro que em vida, nossa mãe tinha direito a ficar com tudo, mas papai fez questão de dividir toda a herança e botar um ponto final.
Eu até ouvi sua voz ao meu ouvido quando Bernardo leu as últimas linhas do papel:
— Cabem ao Bento e ao Benjamin administrarem e cuidarem da vinícola da família. Eles devem compartilhar esse dever em comum acordo de que um dos dois comande a fazenda.
Aquela fazenda!
Eu não digo que odiava aquele lugar, pois foi lá onde crescemos e o que nos deu a oportunidade de ter o que era nosso na capital. Porém, deixar tudo o que tínhamos para morar no meio do mato seria um exagero. Bento e eu éramos homens da cidade grande. Torcemos para sair do interior, estudar e fazer nossas vidas na capital, mesmo isso sendo o que nossos pais menos queriam.
— Você sumiu. — Eu sabia que mamãe viria reclamar comigo assim que saíssemos. — Fiquei preocupada.
Esse era um dos meus pecados. Ela já tinha problemas demais para se preocupar comigo.
— Eu sei. Desculpa — lamentei e beijei o seu rosto preocupado. — Precisei de um tempo.
— Sei bem como você aproveitou esse tempo — alfinetou-me o meu irmão, que estava sério, como sempre.
— Não é hora para julgamentos, Bento. — Em um breve olhar, ele me julgou.
Meu irmão mais velho não me disse mais nada, e eu podia apostar que era por causa da mamãe, já que ele sempre aproveitava uma oportunidade para me criticar.
— Bem... E essa cláusula do papai? — mencionei.
Eu confesso que estava me sentindo m*l e que contrariar o pedido dele seria um sacrilégio no momento.
— Irei à fazenda amanhã — comentou ele. — Pensarei em algo.
— Vou de carro — falei, tentando mudar o clima de enterro.
Sempre que eu voltava para casa, ia dirigindo. Saber que não iria encontrá-lo justificava a opção.
— Você irá? — Bento me questionou, levantando uma das sobrancelhas. — Você?
— Me ofende o seu questionamento — brinquei, tirando um sorriso dos lábios da nossa mãe. — Foi o que o papai pediu. Ele queria que nós dois, juntos, decidíssemos a respeito de quem vai administrar a fazenda.
— Posso contratar uma equipe, alguém...
— Não é isso que tem no testamento — pontuei.
— Então, o que você quer, Ben? — Ele parecia irritado.
Revirei os olhos, sabendo que meu irmão era o que tomava a frente e decidia tudo. Entretanto, daquela vez eu tinha que fazer o que o nosso pai queria. Pelo menos isso.
— Quero resolver isso, mas não aqui e assim, Bento — expliquei, levantando as mãos. Mamãe estava entre nós apenas ouvindo, e seu rosto estava triste. O que me deixou triste. — Nosso pai amava aquela fazenda e as tradições. Talvez seja por isso que queria nos levar de volta para lá.
Meu irmão não falou mais nada. Seu silêncio era explicado por um sentimento que eu compartilhava. Seria doloroso voltar. Não queríamos deixar a cidade, mas pôr as coisas no lugar seria o certo.
O que Bento não sabia era que eu, apesar de ser um desordeiro cafajeste, que fez de tudo para sair daquela fazenda, era alguém que, em situações difíceis, resolvia os problemas. Eu amava o meu pai, embora desse muita dor de cabeça.
Meu remorso era por não ter aproveitado enquanto ele ainda era vivo, e farei de tudo para reverter esse meu erro, mesmo que para isso tenho que voltar ao lugar onde prometi nunca mais ficar por mais de cinco dias.
Minha mãe pareceu ficar orgulhosa de mim pela minha atitude e isso me deixava feliz. Meu irmão nem tanto, pois para ele seria coisa simples botar alguém que fosse bom nessas coisas para tocar o que meu pai deixou ou, simplesmente, vender a fazenda. Bento já tinha uma carreira pronta, uma vida escrita, e não deixaria tudo para trás por conta de um testamento.
O que ele não sabia também era que eu nunca deixaria o que nosso pai mais amava, depois da família, nas mãos de alguém que nunca trataria daquilo com amor e zelo, como o meu pai fez por tanto tempo.