Eu estava esperando a pior reação possível de Hades.
Ele parecia ter um prazer estranho em me torturar e me fazer desejar estar morta, mesmo nossos dois dias de casamento. Quero dizer, essa sensação começou no dia em que descobri que ele seria meu marido. Não foi como se ele tivesse me dado qualquer escolha. Ele sequer teve a decência de me conhecer, de conversar comigo, tentar descobrir quem eu era.
Meus pais, ainda piores que eles, me empurraram para uma vida infeliz nas mãos do homem que eu sequer sabia quem era. Um homem que parecia querer se vingar de algo que eu mesma não sabia o que era. Mas, uma coisa era fato, eu era seu alvo.
Não tinha escolha. Não tinha para onde correr. Ainda segurando a minha bochecha, meus olhos pinicam, mas não tenho coragem de abri-los. Não quando a voz de trovão de Hades ecoa pela mansão, rosnando como um cachorro com raiva, se aproximando. Vindo na minha direção.
— Acho que a pergunta certa seria: Quem permitiu que você entrasse na minha casa? Já disse que não quero a sua presença. — Ele disse, e eu sou obrigada a abrir meus olhos.
Hades está entre mim e sua mãe. Suas costas largas tampam a minha visão dela e eu sinto algo se remexer em meu interior? Ele está me defendendo?
— Hades! — Sua mãe exclama. — Não acredito que ainda está com essa atitude comigo.
— Veja bem, eu nunca disse que mudaria de atitude com você. Eu odeio você. Ainda não colocou isso na própria cabeça?
Sua mãe dá uma risada cheia de escárnio e meus olhos recaem sobre a irmã de Hades, com os olhos arregalados, encolhida. Está usando um conjunto de moletom, mesmo com o tempo ensolarado.
— Eu não acredito que consegue dizer uma coisas dessas para a sua mãe enquanto ainda se enfia entre as pernas dessa... — Ela aponta o dedo para mim, seu rosto se contorcendo em nojo. — Não vou terminar essa frase para não descer meu nivel.
— Essa mulher é minha esposa. Sua primeira dama. Você deve respeito a ela. — Hades diz, puxando-me pela cintura para me juntar a ele. — Você bateu nela?
Os olhos de Hades estão me analisando enquanto eu me encolho. Seu dedo segura meu queixo e ele suspira alto. Apoio minha mão em seu peito e sinto seus dedos me deixando, enquanto ele se vira para a mãe.
— Que direito você acha que tem?
A mãe dele me encara com ódio, como se eu fosse a culpada do que está acontecendo agora. Como se eu fosse o motivo de Hades estar a atacando — e não ela ter vindo até aqui, mesmo quando ele pediu para não vir e ter me batido, como se tivesse algum direito.
— Hades... — Ela sussurra. — Você não pode falar assim com a sua mãe.
Eu olho novamente para a jovem atrás dela, que parece a ponto de chorar.
— Está tudo bem comigo. — Eu digo, por fim. — Vou deixar vocês conversarem. Se importa se eu levar sua irmã comigo para a cozinha?
Hades me analisa, sua testa franze e ele parece perceber a irmã ali pela primeira vez. Seus olhos suavizam quando olham para ela, que não diz nada. Atônita. Fechada em seu próprio mundo.
— Certo! — É a única coisa que ele diz, como se a ideia de sua irmãzinha participando dessa discussão fosse insuportável para ele.
Eu queria que meus irmãos fossem desse jeito comigo. Queria que eles tivessem me protegido também, assim como Hades protege a própria irmã.
Ela parecia uma brisa suave, difícil de alcançar, e eu não queria ser a tempestade que a arrastava de volta para o abismo. Mas, ao mesmo tempo, não podia deixar de sentir que, por mais que ela tentasse se esconder, algo dentro dela queria sair.
— Venha comigo. — Pedi, segurando seu ombro para tirá-la daquela situação desagradável.
A cozinha estava silenciosa, exceto pelos sons suaves do relógio na parede e o farfalhar das taças sendo colocadas na mesa. A irmã de Hades se senta à minha frente, as mãos no colo, os olhos no vazio. Ela parecia pequena, retraída. Algo me dizia que ela não estava acostumada a estar perto de outras pessoas, e isso me fez sentir uma pontada de empatia. Eu também não me sentia confortável com as pessoas, nem mesmo com Hades, mas, ao contrário dela, eu ainda tentava me abrir.
— Você está com fome? — Perguntei, tentando puxar uma conversa, algo simples.
Ela me olhou brevemente, como se não esperasse a pergunta. Seus olhos estavam distantes, e por um momento, pensei que ela não responderia.
— Não... — A resposta foi baixa, quase como um sussurro.
Eu não insisti, não queria pressioná-la.
— Eu sou a Tate.
— Eu sou a Giulia. — Ela se apresenta, dando-me um sorriso que não chega aos olhos.
O silêncio entre nós voltou a dominar, mas, ao invés de ser desconfortável, ele se tornou uma espécie de espaço compartilhado. Talvez, se eu fosse paciente o suficiente, ela começaria a falar. Ou talvez, eu tivesse que esperar que ela encontrasse seu próprio ritmo. Não sabia ainda.
— É bonito aqui... — Ela disse, de repente, em uma voz frágil. Seus olhos estavam voltados para a janela, onde a luz suave do sol iluminava as folhas das árvores lá fora. — O jardim... as flores...
Eu segui seu olhar, vendo o jardim lá fora, colorido e tranquilo. Tinha se tornado um dos meus lugares preferidos da casa.
— Sim, é bonito. — Concordei. Não tinha muito mais o que dizer sobre isso, mas sua voz suave me pegou de surpresa. Ela parecia... querer tentar, de algum jeito. Como se, por um momento, ela se permitisse ser mais do que a sombra que estava tentando esconder.
Giulia suspirou, seus ombros relaxando um pouco, mas a tensão em sua postura não desapareceu completamente
— Você... você já esteve em lugares como esse? — Perguntei, tentando continuar a conversa, sem forçar nada. Eu queria saber mais sobre ela, mas não sabia como chegar perto sem invadir.
Ela olhou para mim, mas os olhos estavam desconfortáveis, quase evasivos. Eu percebi que ela não gostava de falar sobre si mesma. Seu olhar, que antes parecia tão distante, agora estava mais fechado, como se estivesse se protegendo. Eu sabia o que era isso. Eu fazia o mesmo o tempo todo.
— Eu... — Ela começou, mas as palavras falharam em sua garganta, como se estivesse lutando contra algo interno. Seus dedos se apertaram contra a roupa, como se estivesse buscando alguma forma de segurança.
Eu não sabia o que fazer. Não sabia se deveria pressionar, ou se deveria apenas deixá-la falar quando estivesse pronta. Mas uma coisa me dizia que ela não queria falar sobre seu passado agora, talvez nem nunca. E tudo bem. Eu sabia como era se sentir quebrada demais para falar. Mas, ao contrário de mim, Giulia parecia carregar algo profundo e pesado. Algo que ela estava decidida a esconder.
— Eu... não sou boa em conversar. — Ela murmurou, sua voz suave e ainda cheia de hesitação.
Eu sorri de leve para ela, acenando com a cabeça.
— Eu também não sou boa com palavras. — Falei com um tom leve, tentando aliviar a tensão entre nós. — Mas às vezes... a gente não precisa de palavras. Às vezes, só estar aqui já é o suficiente.
Ela me olhou com uma expressão confusa, como se estivesse tentando entender o que eu queria dizer. Mas, aos poucos, seus olhos se suavizaram, e pela primeira vez, ela não parecia tão distante. Era um pequeno passo, mas eu percebi que era um passo.
— Você... não me acha estranha? — Perguntou, como se tivesse medo da resposta. Seus olhos estavam baixos, mas eu vi uma vulnerabilidade crua em sua pergunta.
Eu senti uma dor aguda no peito. Eu entendia essa sensação. Quem não se sentia estranha quando se estava tão quebrado?
— Não. — Respondi, com sinceridade. — Eu não te acho estranha, Giulia. Você só está... tentando lidar com as coisas do seu jeito. E tudo bem.
Havia um silêncio depois dessas palavras. Ela me observava, e por um momento, eu pensei que talvez ela tivesse desistido de tentar se proteger um pouco.
Ela mordeu o lábio inferior, seus olhos cheios de emoções contidas, mas então disse, com uma leveza que eu não esperava:
— Talvez... eu tenha sido... só um pouco... difícil.
Eu ri baixinho, sem querer soar como se estivesse rindo dela. Era uma risada tranquila, uma risada que surgia da compreensão.
— Todos somos difíceis de vez em quando. — Falei, tentando quebrar o peso do momento. — Mas, Giulia, eu sei que não nos conhecemos, que por algum motivo, sua família me odeia. Mas somos cunhadas agora e você pode contar comigo, se você quiser.
Ela me olhou novamente, dessa vez com um olhar mais suave. Por um breve segundo, algo mudou. Não era uma grande mudança, mas era um passo. Eu sabia que, com paciência, ela poderia se soltar aos poucos. E talvez, só talvez, ela começasse a confiar um pouco em mim.
Eu só estava muito curiosa para saber o que tinha acontecido com Giulia e o motivo de ela ter ficado tão fechada.