O dia demorou a passar e a minha concentração no trabalho foi comprometida com os meus pensamentos ininterruptos em como a minha mãe deveria estar no restante do dia. O i*****l do Messias já deveria ter ajudado a dopá-la com vários remédios que ela tomava sem nenhuma necessidade, mas simplesmente pelo vício da sensação que eles lhe causam, ou pelo menos era isso que ela me relatava.
Nada entrou no meu estômago e pulei o almoço com facilidade. Já estava no final do expediente, assinei todos os contratos pendentes das lojas e finalizei pedindo para que o jurídico fizesse o distrato com as lojas que o Otávio possuía no “shopping”. Só me restava finalizar o plano de marketing do final do ano que a Beatriz havia enviado por e-mail para poder ir para casa e tentar esfriar a cabeça que fervia. O plano de “marketing” era muito bom, envolvia promoções, inovações nas divulgações e uma linda decoração Natalina que iria atrair tanto o público infantil quanto o adulto. Comecei a pensar em como o Otávio queria tirar uma profissional tão boa do seu setor por pura prepotência.
Os meus pensamentos foram interrompidos por uma batida sutil na minha porta, olhei no relógio e vi que já tinha passado e muito do horário de trabalho, quem seria? Senti meu corpo tremer pensando na possibilidade de ser o Otávio. Abri as câmeras do shopping no computador e vi que era a Beatriz. Estava inquieta, se balançando de um lado para o outro, e eu até imaginava que devia ser pelo constrangimento de estar envolvida no teatro que o Otávio fez logo cedo.
— Pode entrar, Beatriz — falei alto para ela ouvir.
Ela abriu a porta lentamente, com o rosto corado de vergonha e uma inquietude com os dedos que tamborilavam a porta.
— Estou mesmo precisando falar com você — falei.
Ela parou de imediato e arregalou os olhos, assustada.
— É sobre o seu plano de marketing do final do ano — a tranquilizei, sorrindo.
Ela suspirou aliviada e se sentou na cadeira que ficava à frente da minha mesa. Mas ainda estava nervosa e balançava as pernas repetitivamente.
— Beatriz, eu preciso que você fique tranquila para podermos conversar. Eu sei que hoje não foi um dia legal e que o Otávio fez um espetáculo extremamente desnecessário.
— Desculpe, Milena. Eu realmente não sei nem como começar — ela falou com a voz trêmula.
— Você pode começar esquecendo o que aconteceu de manhã e se concentrar nessa… — Enquanto estava apontando para o computador, ela interrompeu:
— Não, eu realmente preciso contar a minha versão.
— Não precisa contar nada. Sua vida pessoal é particular. Como empresa, não temos o direito nem a intenção de estar nos envolvendo em suas intimidades.
— Mas eu preciso, por favor, senão, eu vou enlouquecer.
— Não, Beatriz, me desculpe, mas você não precisa de falar nada. Eu asseguro que seu trabalho está atendendo perfeitamente à empresa, na verdade, você diariamente nos orgulha com seu trabalho impecável. Então não há motivos de preocupação com seu cargo e sua função.
— Não é isso. Minha preocupação é com a minha reputação como mulher.
— Já disse que isso não importa para nós como empresa.
— Por favor, Milena, isso é importante demais para mim. A minha idoneidade implica no meu rendimento profissional.
Respirei fundo, revirando os olhos.
— Ok. Mas como já disse, isso não vai influenciar em nada profissionalmente. Fora daqui, você pode fazer exatamente o que quiser. Quer dizer, até aqui dentro você pode fazer, desde que não prejudique seu trabalho.
— Vou ser breve, prometo.
— Tudo bem.
Ela respirou fundo e engoliu seco.
— O Otávio me chamou para sair. Eu sabia que ele era sinônimo de confusão, todos daqui do shopping sabem disso, mas eu confesso que me deixei levar pela beleza dele. Ele é bonito, é charmoso e sabe conquistar uma mulher.
Revirei os olhos, discordando bastante da última frase dela.
— Depois dele insistir bastante, resolvi dar sorte ao azar e aceitei o convite para sair. — Seus olhos se encheram de lágrimas — Saímos uma vez, mas percebi que a conversa dele era extremamente infantil, além de muito fútil. Aquela beleza toda é contrastante como o babaca que vive no interior dele. Eu percebi que jamais iria me envolver com ele e estava na hora de ir embora, eu já tinha bebido umas duas caipifrutas e, depois disso, não me lembro de mais nada daquela noite. — Ela fechou os olhos e lágrimas escorriam por seu rosto. Quando ela os abriu novamente, percebi um desespero em seu olhar e suspeitava que agora seria a pior parte de seu desabafo.
— Beatriz, esqueça isso. Ele é um verdadeiro i*****l e não merece o seu sofrimento.
Ela balançou as mãos de forma negativa e continuou:
— Eu preciso contar, por favor.
Balancei a cabeça positivamente e ela continuou:
— Eu não sei o que tinha naquela bebida, mas tenho certeza que ele colocou algo. Eu bebi duas caipifrutas e perdi completamente a memória. Há um gap enorme de recordações, com alguns flashes dele tentado me beijar e eu tentando sair, dele pegando nas minhas mãos e eu tentando me soltar. Em nenhum desses poucos flashes, eu consigo entender por completo o que ocorreu. — Ela começou a chorar desesperadamente e com a voz trêmula, falou: — A única coisa que lembro por completo, é quando acordei em uma cama de motel, nua, com ele ao meu lado.
Ela chorava tanto que soluçava.
— Beatriz, isso foi criminoso. Você precisa falar com a polícia — falei assustada. Sempre soube que ele era um i****a, mas não criminoso.
— Foi horrível aquela situação, porque eu não me lembro de nada direito, só de a gente bebendo e eu querendo ir embora. Voltei para casa e achei que tudo não passava de excesso de bebida. Estava com nojo, com raiva de mim, com medo de ser desacreditada. Imagina só, eu chegando na polícia e falando: saí com meu chefe, bebi um pouco e acordei em uma cama de motel. Qual policial iria entender que eu não quis aquilo?
— Qualquer policial correto. Isso foi um crime — falei, segura.
— Não, Milena. Eu não tenho provas de que não quis.
— Faria um exame! — respondi ainda incrédula com tudo que ela passou.
— E ele compraria o resultado do exame. — Ela revirou os olhos com ironia. — Vocês possuem muito dinheiro, Milena, e eu sou apenas uma funcionária.
Ficamos em silêncio nos observando e eu entendia o silêncio da Beatriz, porque há 12 anos eu também escolhi o silêncio.
— Ele passou a me procurar diariamente no meu setor, mandava recados, flores, sem contar com a inconveniência. — Ela limpou as lágrimas — Se eu já não o queria antes porque ele tinha um interior extremamente repugnante, depois do que passei, criei medo e uma necessidade de estar longe dele a todo custo, isso incluía também as obrigações de trabalho. Se, por acaso, ele tivesse alguma função ligada à minha diretamente, pode ter certeza, mesmo precisando muito estar aqui, eu pediria demissão.
— Eu nunca imaginei que seria dessa forma, Beatriz. Meu Deus, precisamos fazer algo por você. Ele não pode ficar impune.
Ela sorriu ironicamente e falou:
— Eu tentei seguir com minha vida e conheci o Marcelo, acho que você sabe quem é.
— Ele é do setor de qualidade?
Ela respirou fundo e balançou a cabeça positivamente.
— Pois é, estava tentando seguir em frente, esquecer o que passou e me concentrar no presente, mas aquele cara é muito perverso. Quando descobriu que eu estava seguindo em frente e não era com ele, enlouqueceu e passou a me seguir, falar grosserias comigo, me ameaçar no trabalho e o Marcelo, uma vez, o flagrou falando umas merdas para mim e não gostou. Eles quase entraram em uma briga corporal.
— Eu soube que teve uma briga, mas me disseram que o Marcelo era cabeça-quente e não gostou de uma brincadeira do Otávio.
Ela balançou a cabeça de forma negativa.
— O Marcelo é um doce, Milena, ele jamais perderia a cabeça por algo que não fosse necessário.
— O Otávio deve ter manipulado a informação até chegar a mim.
— Com certeza. Assim como faz com tudo.
Ela respirou fundo e quando se perdeu nas lembranças, começou a chorar de novo sem controle.
— O que você lembrou? — perguntei, preocupada.
— Ele percebeu que não teria outra chance, se não me ameaçar com algo que a todo momento eu tentava esquecer. Então ele colocou fotos íntimas minhas em cima da minha mesa, fotos essas tiradas no motel que estivemos juntos. As fotos não aparecem nos meus flashes, elas estão justamente nos meus gaps de memória. Mas sou eu, quer dizer, é a minha v****a, é a minha b***a, é a minha barriga, minha cintura, minhas mãos. Sou eu, sendo usada por ele.
Eu me levantei e fui abraçá-la. Queria salvá-la de suas recordações, queria ajudá-la de alguma forma a sofrer menos. Ficamos um período abraçadas e choramos juntas. Impossível não palpar aquela dor e não desabar na dor. Ela se soltou dos meus braços lentamente quando se acalmou e eu limpei suas lágrimas.
— Nunca me senti tão m*l, me vendo em uma imagem minha que não me representa. Imediatamente, fui procurá-lo e tirar satisfação daquela atitude e ameaçá-lo de denunciá-lo à polícia. Mas ele só sorria, Milena, e dizia que não sabia quem tinha feito aquilo comigo. Acredita que o cretino falou que as fotos mostravam ainda mais minha beleza? Foi aí que percebi que em nenhuma das fotos ele ou eu aparecíamos de verdade. Eram recortes de fotos, zoom em locais específicos e, embora eu me reconhecesse, jamais o reconheceriam. Por fim, ele ainda foi irônico e sugeriu que se eu voltasse a sair com ele, ele poderia me ajudar a descobrir quem fez aquilo comigo.
— Beatriz, precisamos fazer algo, precisamos colocar esse bandido na cadeia. Ele é um criminoso e certamente continuará cometendo esse tipo de crime por aí se não fizermos nada.
— Ele é um louco e está com uma fixação por mim.
— Quando tudo isso aconteceu?
— Há um mês, mais ou menos.
— Meu Deus, como não soube de nada? Fui omissa sem saber de vários crimes bem debaixo do meu nariz — falei.
— Isso só explodiu porque eu disse que ele poderia divulgar as fotos, que se não reconhecessem ele, certamente não iriam me reconhecer também, e falei que se me reconhecessem, veriam que eu estava inconsciente e jamais me deitaria com ele por livre e espontânea vontade, e assim ele seria preso. Foi então que ele perdeu o controle e quis me demitir a todo custo, mas você não permitiu e, bom, deu no que deu hoje.
— Meu Deus, que vergonha de fazer parte da mesma família que ele!
Eu limpei mais lágrimas dela e fui pegar meu celular do outro lado da minha mesa.
— Você fez certo, você o colocou no lugar dele. Mas foi pouco, porque ele precisa pagar por esse crime. Você precisa de justiça e eu sei quem poderá nos ajudar.
— Não, Milena, não vamos envolver mais ninguém. Eu só te contei, porque temo que as fotos cheguem até você, e como aquele louco usará o contexto para isso ocorrer. Por isso, preferi falar a minha versão antes que ele traga a versão errada dele.
Peguei o celular e falei:
— Eu garanto que essa pessoa vai nos ajudar e encontrará a melhor forma de o colocar na cadeia. Ela já o detesta por o conhecer há alguns anos e ao saber do que ocorreu, duvido muito que ela sossegue enquanto não conseguir o colocar no xilindró.
— Não sei, eu tenho medo — ela falou apreensiva.
— Ela é a melhor advogada que conheço na vida e, se você quiser, garanto que conseguiremos te dar mais conforto em ver a justiça acontecer.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, em seguida, balançou a cabeça positivamente. Liguei imediatamente para a Liz, minha melhor amiga e a melhor advogada que conhecia.
— Liz, amiga, eu preciso da sua ajuda como a melhor advogada que conheço na vida.
— Se eu não tivesse a sensação de que você se meteu em alguma merda grande, até ficaria feliz com seu elogio. Mas pensando no contexto, estou mesmo é com medo do que vai vir pela frente — ela brincou.
Eu sorri.
— Estou com uma funcionária que está sendo ameaçada pelo Otávio, que é um criminoso. Preciso da sua ajuda! — contei.
— Milena, você sabe que não dispenso um desafio e se você falou que é contra o Otávio, eu nem preciso saber do que se trata, mas já aceito e garanto que teremos uma vitória implacável!
— Sabia que poderia contar com você.
— Sempre! Agora preciso desligar, estou fechando o escritório, te ligo já, já.
— Fique tranquila.
— Diga à sua amiga para vir ao escritório, amanhã de manhã.
— Combinado.
Eu não tinha dúvidas de que ela era movida pelos desafios e pela emoção e expliquei à Beatriz que a Liz era importante na minha vida. A Liz era a melhor advogada que conhecia, para ela não importava a área, mas o desafio que lhe era proposto, por isso nunca aceitou trabalhar comigo no shopping, pois ela falava que era muito monótono e ela precisava de grandes histórias em sua carreira. Eu não tinha dúvidas de que as duas conseguiriam arrumar uma forma de incriminar o Otávio e conseguir justiça pelo crime que ele praticou. Sorrimos um pouco e o clima de tensão foi amenizado com conversas aleatórias.
— Amanhã vai acontecer uma festa legal no bar da praia, o título da festa é "solteiros por opção". — Ela deu um leve sorriso. — O que você acha? Pelo menos, a gente escuta uma música legal, bebe uns drinks diferentes e te conto como foi a reunião com a Liz.
Não seria uma má ideia aceitar o convite, talvez a festa me ajudasse na minha missão de viver mais ativamente o presente no quesito vida pessoal. Minha vida era dedicada apenas ao shopping e meu convívio social estava restrito praticamente aos encontros business que eu era convidada ou mesmo anfitriã e quase beirando os 30 anos, eu sentia falta de experiências que fossem mais pessoais. Tudo bem que estar na posição que me encontrava não era por falta de convite e se a Liz conseguisse ouvir meus pensamentos, brigaria comigo, afinal, ela me chamava praticamente toda semana para fazer algo descontraído. Mas por escolha, ou talvez fuga, eu sempre a dizia não. Mas agora era diferente, estava de frente para alguém que assim como eu precisava seguir em frente, mesmo repleta de mágoas e medos, e de repente me senti fortalecida para tentar um sim.
— Me falaram que terão vários gatos! — ela falou piscando com um olho de forma sugestiva.
Sorrimos juntas e a confiança parece que desapareceu um pouco, ao me lembrar das inúmeras tentativas de esquecer o único cara que conseguiu mexer comigo de uma forma inexplicável. Eu sempre soube que o desejar era errado e vira e mexe estava lendo sobre a síndrome de Estocolmo, mas, ainda assim, não conseguia esquecê-lo. Nunca consegui falar para os meus terapeutas sobre esse sentimento que eu tinha vergonha de sentir, mas sentia.
— Se não for pelos gatos, vá pela diversão. Todos falam que você vive para o shopping, que nunca tem seu momento de descontração.
Eu gargalhei.
— Vocês falam isso de mim? — perguntei.
— Ah, falamos muitas coisas. — Ela sorriu. — Mas você é uma chefe que todos nós admiramos. Tem um pulso firme, mas briga por nós e por nossos direitos. É unanimidade que todos possuem uma gratidão de ser você no poder, do que qualquer outra pessoa da sua família.
Gargalhamos juntas.
Talvez ela estivesse certa, talvez eu devesse começar pensando em me divertir e, aos poucos, me libertar do sentimento que ele deixou no meu coração.
— Gostei do título da festa! Me passe o endereço, quem sabe eu apareça! — exclamei.
— Eu te mando por mensagem!
Balancei a cabeça e nos despedimos.
Caminhando pelos corredores para chegar ao estacionamento, peguei o meu celular e liguei para a Liz, ela me respondeu por mensagem:
Estou na aula de MBA. Fala por mensagem.
Enviei uma mensagem:
Festa amanhã às 14h, topa?
Ela deveria estar com o celular na mão, porque respondeu de imediato:
Que novidade é essa? A senhora solitária resolveu viver a vida?
Eu sorri da minha amiga. Então, antes que eu pudesse responder, ela enviou outra mensagem:
Não acredito que você conseguiu se libertar da teia de aranha que se instalou no meio das suas pernas por tanto tempo!
Eu caí na gargalhada imaginando a reação dela escrevendo a mensagem. A minha amiga conseguia me tirar das mais sérias depressões. Sempre foi assim. Quando eu precisava, lá estava ela me apoiando e tentando me fazer sorrir. Éramos opostas, eu a razão ela, a emoção. Ela havia me adotado como irmã e a família dela era como uma família para mim, os quais me acolhiam sempre e me tratavam como integrante daquele time. Então respondi antes que ela ficasse com raiva, achando que estava saindo com algum cara e só falasse para ela depois, afinal, ela também era bem ciumenta. Ainda escrevendo a mensagem, ela enviou várias interrogações em busca de minhas respostas, porque ela também era extremamente ansiosa. Enfim consegui responder:
Você é muito ansiosa, quase não consigo responder com suas interrupções instantâneas de interrogações ou mensagens com "RESPONDE".
Não estou saindo com ninguém. Quem me convidou foi aquela colega de trabalho que você vai receber amanhã no escritório. Achei que seria uma boa ideia sair para me divertir e viver um pouco a vida. Está vendo que eu também ouço seus conselhos!
Ela respondeu:
Ainda bem que essa sua nova amiga fez o convite e o seu anjo da guarda replicou no seu ouvido o que te falo há tanto tempo. Você precisa viver a sua vida e t*****r um pouco.
Tinha certeza de que ela estava gargalhando. Respondi:
Tudo na vida se resume a sexo para você?
Ela respondeu em seguida:
As melhores, sim. Mas mudando de assunto, estou doida para saber o que o seu irmão metralha fez para colocá-lo na cadeia. Eu nem conheço essa sua amiga, mas já gostei bastante.
Respondi:
Amanhã ela te conta direitinho, mas garanto que é muito pior do que você possa imaginar. Eu já comecei a fazer algo aqui no shopping e vou tirar ele daqui de dentro. Não quero mais ele trabalhando no meu shopping. O jurídico já está à frente de tudo.
Ela respondeu:
Puta que pariu, eu não gosto dessa sua amiga, eu amo essa sua amiga. Ela conseguiu abrir seus olhos para aquele cara nojento que é um sanguessuga do seu dinheiro e ainda conseguiu te convencer a sair para uma festa que não envolva investimentos ou assunto empresariais?! Kkkkk gente do céu, estou contando os segundos para conhecê-la.
Respondi:
Vem conosco, então?
Ela respondeu:
Eu queria muito, mas vou passar este fim de semana com meu gatinho barbudo cheio de sardinhas. Desta vez vou te abandonar, preciso conversar com ele.
Eu respondi, surpresa:
Ainda está saindo com ele? Ele não faz teu tipo, que eu sei! Por que anda insistindo nisso?! Abra o seu olho, Liz.
A Liz gostava de homens mais engomadinhos que estivessem empacotados em ternos e que usassem o dicionário de palavras estranhas e difíceis como rotina, típico os amigos de trabalho dela. O cara que ela estava saindo era todo largado, vivia de sandália, nem a barba o cara conseguia manter aparada, completamente diferente de todos os caras que ela havia se envolvido. Era difícil achar ligação entre minha amiga, que vivia no salto 15cm, com unhas sempre impecáveis e que advogava para grandes empresas, com um cara que era o oposto dela, inclusive, nas ideias e proposta de vida. Ela demorou muito mais que o normal para responder, apostava que estava se justificando por que ainda estava saindo com esse cara que nós duas sabíamos que não daria certo:
Você não tem ideia do que ele é capaz de fazer na cama. Sério, virou vício! E como te falei, preciso conversar com ele.
Eu respondi de imediato:
Sexo não é justificativa. Lembro que seu parâmetro de melhor sexo já mudou muitas vezes, não tenho dúvida que você encontra algo melhor que ele, por aí! E essa conversa é sobre o quê?
Ela respondeu:
Vai t*****r, vai! Você tá atrasada há pelo menos seis anos, estou certa?
Respondi sorrindo:
De tentativa frustrante, sete anos. E a conversa? É sobre o quê? Estou começando a ter medo do assunto, pois quando você me enrola mudando de assunto, algum problema sério você está metida.
Peguei-me lembrando a última vez que tentei t*****r com um cara.
Eu já estava com 22 anos e virgem, minha colega de classe, Cláudia, já havia pegado todos os caras da faculdade e ficava me enchendo a paciência porque eu só vivia para estudar. Eu nunca contei sobre o cara do sequestro para ela e ela nunca conseguiu entender o porquê de eu não conseguir me apaixonar por alguém. Então ela me levou para uma das festas da turma de faculdade e fez com que eu tomasse todas as bebidas que tinham ali. O resultado foi que fiquei bêbada e aceitei t*****r com o Eugenio, que me foi apresentado na festa. Ele era muito bonito, moreno, alto, forte, com o cabelo baixo fino que se mantinha em pé arrepiado, tinha um sorriso lindo e como moldura duas covinhas nas bochechas que o deixava ainda mais fofo. Ele era do tipo de homem que todas as mulheres ficavam caidinhas por ser fofinho, gentil e muito lindo. Aquele homem para você idealizar em casar e ter filhos. Embora ele tenha sido gentil e cavalheiro, minha primeira vez não foi boa, mas não porque ele não era bom o suficiente, mas porque não havia o sentimento necessário para aquela i********e se tornar agradável. Ainda insisti e tentei mais umas quatro vezes, mas continuou péssimo e eu não consegui mais sair com ele, não estava sendo justa com nossos sentimentos e, principalmente, com meu corpo. Meu corpo e minha cabeça ainda estavam no passado e por mais que aquela covinha fosse fofa e chamasse minha atenção, ele não conseguia me libertar dos sentimentos vivos em meu coração.
Meu celular tocou, me trazendo para o presente:
Depois te conto! Até hoje não entendo por que você fez voto de castidade. É sério, você já tem quase trinta anos e só transou com um cara? Você é um bicho em extinção!
Eu respondi, pensativa:
Um dia, quem sabe, eu encontro alguém que vá valer a pena sair do meu casulo.
Mas eu queria mesmo responder: “Quem sabe um dia eu o encontro.”
Ela respondeu:
Espero com toda sinceridade que seja amanhã! Queria ir com vocês amanhã para ter certeza de que você vai aceitar sair com alguém. É sério, você precisa tentar! E, por favor, coloque uma roupa bonita. Perca 30 minutos de seu tempo precioso para escolher algo sensual e instigante.
Eu respondi a mim mesma no meu íntimo: "eu preciso mesmo tentar", mas não enviei para minha amiga. Não queria pressão e, embora eu soubesse que a pressão da Liz fosse benéfica para mim, preferia viver a ilusão de que estava fazendo o máximo que podia, quando, na verdade, eu estava fazendo apenas o máximo que apenas queria.
Então, respondi, finalizando aquela conversa:
Sabe que não gosto de perder tempo escolhendo roupas, por isso otimizo meu guarda-roupa, mas fique tranquila que eu vou me esforçar para escolher algo diferente do que você está acostumada a ver. Boa viagem, amiga, divirta-se! Tenha juízo, porque esse cara que você tá saindo, não tem nenhum.
Ela respondeu:
Juízo? Me liga logo depois de você ter finalmente descoberto o que é t*****r e principalmente gozar! E, por favor, nada de terninho ou calça social. Invista em um belo vestido que facilitará a sua vida. Te dei um ano passado e você ainda não usou, acho uma excelente oportunidade!
Eu respondi, já sentada no meu carro:
Eu te amo também, Liz!
Cheguei em casa exausta, o dia havia sido difícil em tantas circunstâncias: memórias, revelações, discussões e enfrentamentos. Sentei no sofá do meu “flat”, um apartamento pequeno que escolhi para destoar da mansão que a minha mãe vivia. Ela tinha inúmeros funcionários e eu, apenas diarista. Eu fazia questão de ser o oposto de todos daquela casa, já bastava carregar o sobrenome e a imagem perfeita que a minha mãe divulgava na mídia.
Abri uma garrafa de vinho e a cada gole, eu passei inevitavelmente a ser transportada para o cativeiro.
Eu conseguia ouvir os passos dele que paulatinamente se aproximavam de mim, me causando uma angústia e um medo que transbordavam através de movimentos sem controle para tentar me libertar. Quando se está desesperado, não se consegue organizar os pensamentos e ter ações mais efetivas e o seu corpo é automaticamente anestesiado, a sua maior dor é na alma. A dor dos nós que me amarravam era insignificante se comparado à dor de medo. Quanto mais ele se aproximava de mim mais eu tinha a certeza de que iria morrer — e morrer sem sequer poder se defender, é um pesadelo que ninguém quer viver.
Então, teve um momento que ele se aproximou tanto de mim que pude sentir seu hálito fresco soprando o meu rosto, como uma brisa suave.
— Você precisa confiar em mim, eu vou te tirar daqui! Mas você não pode gritar quando eu tirar essa proteção da sua boca. Trouxe água e comida para você aguentar bem até que a gente possa fugir.
Ele começou a desamarrar o tecido que tapava a minha boca de forma delicada e pelo contraste do toque, percebi o quanto a pressão do tecido estava machucando meu rosto. Ele fez um leve carinho no meu rosto e eu instintivamente me afastei. Eu só queria ter uma chance de defesa para me manter viva, por isso gritei:
— SOCORROOOO!!!!
Ele, com agilidade, abafou os meus gritos com o tecido novamente.
— p***a! Assim não vamos conseguir!
Ele tentou mais duas vezes e eu tive a mesma reação, até que na terceira vez, quando, de novo, com os seus dedos suaves desatou o nó do tecido e libertou a minha boca, imediatamente encostou a testa dele na minha e falou, tão próximo à minha boca, que pude sentir a sua saliva ardida encostar meus lábios:
— Eu só posso te ajudar se você deixar! Eu só vou conseguir te tirar daqui, se você estiver forte. Os caras que estão lá fora querem te matar a qualquer custo, não terá resgate. Eles só querem o dinheiro e estão decididos a matar você. Acredite em mim, diferentemente deles, eu quero o seu bem!
A minha respiração estava ofegante, e o meu coração começou a se convencer de que ele era a única chance que eu tinha de sair dali.
Ele era a chance que eu tinha de me manter viva.
— Por que eu deveria confiar em você? — perguntei com a voz falha, machucada por tanto tentar gritar.
Ele ainda estava com a boca bem próxima da minha quando me respondeu:
— Linda, você não tem alternativa!
Eu estava aflita, o medo tomava conta de mim, mas de alguma forma aquele hálito e aquela voz me passaram confiança e eu fiz o que ele mandou, me calei, bebi a água e comi pão através dos cuidados dele. Por fim, ele colocou o tecido na minha boca de uma forma menos lesiva.
— Eles devem entrar aqui mais tarde para fazer um vídeo seu. Ouvi que eles irão enviar o vídeo para sua mãe, ainda hoje, então não esquece, para eles esse encontro nunca aconteceu, por favor, é para seu bem! Ainda esta noite eu te tiro daqui, minha linda! — ele falou.
Como ele me avisou, os outros sequestradores foram ao local que eu estava, me xingaram e me bateram no rosto algumas vezes de forma covarde. Me perguntei várias vezes se o outro homem estava ali com eles também, me perguntei várias vezes por que ele não apareceu para me salvar. Chorei sem esperanças, com medo, com dor e pela primeira vez pedi para que o meu fim chegasse rápido. Não sabia por mais quanto tempo iria aguentar aquela tortura física e psicológica.