Savannah, Geórgia
Junho de 2018
Como de costume, todas as vezes em que o seu pai decidia que a visitaria, Ellie tratava de livrar-se de todo e qualquer compromisso que tomasse muito de seu tempo. Não fazia isso por consideração ao pai, longe disso, fazia apenas por que sabia qual era o efeito devastador da presença dele na sua vida: ele a deixava constantemente irritada, estressada, esgotada. Apesar de ter sido uma vida inteira ausente, por vezes, ele a culpava por não manterem o contato e a acusava de não ser uma boa filha, por que ela não o visitava – onde quer que ele estivesse.
Ellie o buscaria no aeroporto. Norah deixava o quarto de hóspedes sempre pronto e ele sempre acabava optando por ficar em algum hotel nas redondezas, ele mesmo tratava da sua reserva antes de chegar em Savannah. Ele sempre dizia que era para não atrapalhar a rotina da casa, mas Ellie sempre acreditava que era para evitar ter que passar muito mais tempo com ela. Que tipo de pai fazia questão de ficar longe do filho, até quando se estava milagrosamente por perto?
- Eu devo ser a pessoa mais sem sorte no mundo todo – ela resmunga enquanto dirige lentamente em direção ao aeroporto e no rádio, toca um dos sucessos do verão de 2006, Because of you, que tinha embalado momentos complicados da vida dela.
Sem muita paciência para relembrar suas dores antigas, afinal, em pouco tempo ela teria uma série de novas dores para se ocupar, tratou de mudar a estação do rádio e curtir uma musica mais nova e animada, pelo menos melhoraria o seu astral enquanto podia, antes que a nuvem de grosserias e insensibilidades do pai tomasse conta de seu dia.
Ela esperou pacientemente perto do portão de desembarque... Vinte, trinta minutos, até que o homem na casa dos cinquenta anos apareceu. Ele parecia um pouco mais magro do que da ultima vez que haviam se encontrado e mais velho, com certeza. Ela podia ver de longe os cabelos mais grisalhos e a aparência mais cansada, ainda que ele tentasse se manter austero e andasse, como sempre, bem vestido.
- E então – ele sorri – como está a minha garotinha? – ele pergunta assim que chega perto o suficiente e a abraça – Parece cansada.
- Dormindo pouco – ela responde um pouco impaciente – Fez boa viagem?
- Melhor do que normalmente eu fazia – ele suspira – acho que eu gostei dessa companhia aérea...
- É boa – Ellie encara o bilhete do pai – peguei alguns vôos com eles no ano passado, quando estava fazendo a minha especialização e também quando fui à uma convenção em Boston.
- Sim – ele diz sorrindo – eu fiz uma reserva no Ritz...
- Certo – ela concorda – vai fazer o check in e almoçamos?
- Sempre – ele sorri e caminha até o carro.
- Desistiu da motocicleta? – ele pergunta
- Ainda não – responde Ellie, sabendo que depois da resposta virão as críticas – apenas achei que seria um pouco inadequado para buscar você.
- Nisso vamos concordar – ele resmunga – sabe que eu acho que motocicletas são coisas de gente v*******a, não sabe?
- Sim – ela responde sorrindo, ao menos podia divertir-se um pouco provocando o seu pai – tatuagens também são... Sabia que eu fiz mais duas?
- Você não se cansa de me decepcionar, não é? – ele pergunta.
- Não – ela responde rindo – acho que depois de anos tentando apenas fazer você se sentir orgulhoso sem sucesso, descobri que eu sou bem mais feliz te decepcionando... Lamento se é o que eu faço de melhor.
- Ao menos tem consciência do quanto é boa nisso – ele diz de forma desagradável, mas isso não a atinge.
Ela aguarda enquanto ele entra no hotel com sua bagagem e faz o check in, por mais ou menos vinte minutos. Ela envia uma mensagem de texto para Norah dizendo apenas “eu avisei para nem perder o seu tempo... ele vai ficar no Ritz” e ela apenas responde com “o prevenido sempre vale por dois. Bom almoço”. Claro que Ellie não acreditava que fosse realmente possível se bom, afinal, ela estaria, possivelmente, com a pior companhia possível para uma refeição: alguém desagradável e com complexo de superioridade.
Patrick volta, com roupas um pouco mais casuais do que o terno bem cortado com o qual chegara e Ellie logo está dirigindo em direção ao centro da cidade onde, segundo ele, havia “um ou outro lugar decente”. É sempre assim, a discussão já começa antes mesmo da refeição, os problemas são criados para que não exista nenhuma solução e absolutamente tudo o que existir no mundo, é insuficiente, medíocre e indigno de atenção.
- Acho que eu não vou ter muito tempo por aqui dessa vez – ele diz assim que consegue, depois de um tremendo esforço, fazer o seu pedido – e então, me obrigo a ir direto ao ponto na nossa conversa, embora eu aprecie refeições em silêncio.
- Ah – ela diz fingindo estar desconcertada, mas verdadeiramente aliviada – então temos um motivo especifico para a visita?
- Na verdade – ele suspira – nós temos mais do que um motivo, mas enfim, acredito que você possa se sentir aliviada em saber que amanhã mesmo embarco de volta...
- ... para onde, exatamente? – ela pergunta.
- Washington – ele responde – tenho um trabalho para finalizar por lá e bem, coisa de uns quinze dias, e eu finalmente poderei ir para casa.
- Férias? – ela pergunta.
- Aposentadoria – ele responde sério – acho que esta na hora de me aposentar e aproveitar o restante da minha vida.
- É uma escolha interessante – ela diz contente – sempre pensei que a sua aposentadoria seria quase que compulsória.
- Muita coisa aconteceu – ele diz.
- Que tipo de coisas? – ela pergunta e o encara.
- Estou velho – ele diz – velho e cansado...
- Só isso? – ela pergunta.
- Sim – ele responde – não estou doente, se é o que está pensando... Só acho que passei tempo demais trabalhando e cuidando de coisas que não me levaram a nada e acabei me afastando do pouco que eu tinha e me importava.
- Certo – ela suspira profundamente e o encara – e é sobre isso que precisa falar?
- Sim – ele sorri – eu sou um cara bem influente ainda, eu tenho muitos conhecidos e até mesmo grandes amigos em New York, inclusive em grandes complexos hospitalares... Acho que poderia considerar mudar-se para New York e ficar comigo. Vai conseguir um bom emprego e uma boa vida, se você se esforçar um pouco...
- Entendo – ela diz ainda tentando digerir o que ouvira – mas não te passa pela cabeça que talvez eu tenha uma vida por aqui?
- Você está bem acostumada com mudanças – ele diz.
- Mas eu tenho a vovó, meu emprego... – ela protesta.
- Sim – ele responde e então, a encara com certo sarcasmo – como se a sua avó não pudesse passar o resto dos dias dela em uma casa de repouso, como todos os idosos normais.
- Eu não vou deixar a vovó Norah – Ellie responde, como se o que pai dissera não passasse de um tremendo insulto – sabe que depois que eu perdi a mamãe, foi ela quem cuidou de mim? Tipo assim, a vida toda?
- Nunca disse o contrário – ele responde – só acho que você precisa viver a sua vida...
- E eu vivo a minha vida – ela diz, indignada – pelo amor de Deus, eu sou a chefe do setor de Oncologia, esse é um excelente trabalho. Tenho amigos, tenho o Thom...
- O ex noivo? – ele pergunta, em tom de deboche – Aquele que está com um dos pés na cova?
- Vou ignorar o seu comentário infeliz – ela suspira e dá um gole em sua taça de vinho branco, ao menos para isso serviam os encontros com o pai: ele nunca economizava quando o assunto eram bons vinhos – não tenho pretensão de sair de Savannah.
- Nem mesmo para ter o que você sempre quis? – ele aogra parece, pela primeira em toda a sua vida, confuso e hesitante.
- E o que é que eu sempre quis? – agora ela o encara séria.
- O seu pai por perto – ele responde, como se aquilo fosse óbvio.
- Isso deixou de ser a minha prioridade na vida há muito, muito tempo – ela responde com um suspiro.
Encerram o assunto mudanças assim que o pedido chega afinal, nenhum dos dois está disposto a abrir mão de uma refeição quente e deliciosa para levar adiante uma discussão que ambos sabem que não levará a absolutamente nada.
Nisso, Patrick sabe que Ellie é parecida com ele: totalmente irredutível quando o assunto são os seus valores e seus princípios. “Teimosa como uma mula empacada” – conforme sua falecia esposa costumava descrever quando Ellie era apenas uma garotinha. Esse temperamento era totalmente dele, devia vir no DNA, ele tinha certeza de que não convivera o suficiente para dar, nem mesmo o mau exemplo.