— Oh, meu Deus... olhe só para isto!
Era cedo e Samantha estava parada na porta da casa que seria sua clínica, espantada com o que via. Longe de estar pronto, o lugar mais parecia ter sido varrido por um furacão.
Várias caixas estavam abertas, com o conteúdo espalhado pelo chão, junto com folhas de papel. As cadeiras estavam de pernas para o ar, as gavetas abertas e vasculhadas. E o mais intrigante era o fato de estar tudo coberto de sujeira. Mas não se tratava de ** e teias de aranha que se acumulam com o tempo, eram punhados de areia e lama em toda a parte.
Samantha perdeu a fala diante daquela cena incompreensível. E a situação era mais desesperadora do que imaginava. Nesse instante, ouviu o ruído repugnante de ratos correndo para fugir da luz que entrava pela porta aberta.
Enquanto olhava para aquela sujeira, o senso de frustração virou raiva. Já estava refeita da longa viagem e não pretendia voltar para a casa da viúva Tarai e ficar se lamentando. Aquela sujeira precisava ser limpa. Tinha força e raiva suficientes para arregaçar as mangas e agir.
Virou-se para Felicity, que a tinha acompanhado até ali com uma má vontade evidente e não dissera uma palavra até aquele momento.
— Venha. Pelo jeito, temos muito a fazer.
— Como? Aqui?
— Exatamente.
— Mas... está tão sujo!
— E vamos limpar tudo.
Samantha fechou a porta e começou a andar de volta para a casa, da Sra. Tarai, deixando a outra sem ação. Felicity não teve outra alternativa senão seguir a médica, surpresa com aquela reação. Quando estavam chegando, falou num tom cauteloso:
— Você estava falando sério quando disse aquilo sobre limpar toda aquela sujeira?
Samantha parou com a mão na cintura e encarou a moça.
— E você tem alguma outra sugestão?
Felicity baixou os olhos e apenas balançou a cabeça negativamente, continuando a andar calada.
Quando chegaram, Samantha foi para o quarto trocar de roupa. Colocou short e camiseta, mais apropriados para o trabalho pesado que precisariam fazer. A Sra. Tarai ficou horrorizada com a descrição do estado em que o consultório estava e se ofereceu para ajudar, mas Samantha nem pensaria em aceitar.
— Eu e Felicity daremos conta do serviço; só precisaremos de material de limpeza.
Uma hora depois, voltavam para o escritório, munidas de balde, panos e vassoura, além de detergente, desinfetante e inseticida.
Constrangida de andar pela rua em trajes mínimos, Samantha vestiu por cima um camisão, mas Felicity parecia bem à vontade com apenas um short minúsculo e a parte de cima do biquíni. Afinal, estavam numa ilha tropical, onde os costumes eram bem diferentes.
Passaram a manhã toda ocupadas na faxina. Pelo menos Samantha se esforçou, porque Felicity apenas fingia estar ocupada, empenhando-se quando percebia que estava sendo observada.
Samantha ficou irritada com a negligência da moça, mas não sabia o que dizer. Achou que a melhor solução era tentar incentivá-la com seu próprio exemplo.
No começo, isso deu resultado, contudo, o calor aumentava com o passar das horas, tornando o trabalho mais árduo. Animada com o progresso que faziam, Samantha não dava trégua.
Perto do meio-dia, sugeriu uma parada para o almoço e teve a resposta mais inesperada.
— Vou parar sim! Para mim chega!
— Sei que está quente e não é um trabalho muito agradável, Felicity. Também estou cansada. Vamos comer o lanche que sua mãe preparou e aposto como nos sentiremos melhor.
Felicity não cedeu àqueles argumentos sensatos e sacudiu a cabeça.
— Estou morrendo de calor e a única maneira de me sentir melhor é dar um mergulho!
Samantha fez outra tentativa para salvar a situação.
— Você está sugerindo um mergulho antes do almoço? Está bem, acho uma boa idéia.
— Não. Estou dizendo que para mim chega de faxina por hoje!
— Pelo que entendi, você foi contratada para ser minha assistente.
— Tem razão, mas como uma assistente de enfermagem e não como sua empregada.
Apesar de Samantha também não ter sido contratada para fazer aquele trabalho desagradável de lavar chão e limpar gavetas, resolveu ficar calada, lançando apenas um olhar de advertência. Felicity certamente entendeu a mensagem, mas não se alterou e sorriu com um ar insolente.
— Não adianta fazer cara f**a. Não estou nem um pouco preocupada. Chris não me demitiria por uma bobagem dessas.
Samantha não podia forçar ninguém a ficar e apenas acompanhou com o olhar a saída da moça. Mais do que furiosa com aquela prova de má vontade, estava preocupada com as conseqüências daquele incidente no seu relacionamento no futuro. Perdeu até o apetite e só tomou um pouco de suco antes de voltar para o trabalho.
A raiva lhe deu mais forças e atacou a sujeira com energia redobrada. No meio da tarde, já tinha conseguido aprontar uma das salas. A mobília foi colocada na posição certa e tudo estava limpo, faltando apenas um jato de inseticida.
Lamentando não ter trazido uma escada, tentava alcançar as prateleiras mais altas equilibrando-se na ponta dos pés nas prateleiras inferiores, numa posição muito incômoda. Estava concentrada aplicando o inseticida quando ouviu um barulho e quase perdeu o equilíbrio com o susto.
— Ei, tenha cuidado — um homem advertiu, segurando suas pernas.
— O que... Solte minhas pernas!
— E deixar que você caia?
— Não vou cair.
Samantha não sabia o que fazer de tanta vergonha por ser vista naqueles trajes e toda coberta de poeira. Os braços daquele estranho continuavam em suas pernas enquanto tentava se soltar.
— Ei, o que está pretendendo fazer agora? — O estranho riu, mas não a soltou.
— Descer.
— Isso é mais fácil.
— Quer me soltar, por favor?
— Eu ajudo.
O homem passou o braço pela cintura de Samantha, que descia as prateleiras com todo cuidado. Quando chegou ao chão, seu corpo cansado estava pressionado ao outro, forte e viril, despertando emoções que jamais sentira nos braços de um completo estranho.
Apesar de estar com os pés no chão, o homem continuava com os braços à sua volta e os olhos pregados nela, tirando sua respiração e provocando uma onda de calor que nada tinha a ver com o clima tropical ou o trabalho árduo. Era difícil saber o que aquele homem queria e Samantha fez um esforço para quebrar aquele silêncio constrangedor.
— Quem é você?
— Tirou a pergunta da minha boca.
— Mas... foi você quem invadiu a minha casa.
— Bem... sinto muito informar que esta casa é minha.
Samantha ficou confusa, mas tudo se esclareceu num instante.
Embaraçada pelo desmazelo em que estava e muito mais ao lembrar da atitude dele... e de sua reação, sentiu uma leve tontura e se apoiou numa mesa. Falou com a maior calma possível:
— Você deve ser Christopher Girard.
— E você deve ser Samantha Hall. — Ele estendeu a mão, assustando-a. Sem graça, ela limpou a mão suja no short antes de apertar a dele. — Isso não era necessário. Afinal, você já me atacou com uma camada de **.
— A questão é quem atacou quem.
— Não vamos nos preocupar com detalhes, está bem? Apesar de tudo, foi um encontro muito agradável.
— Não vejo nada de agradável em nosso encontro.
— É mesmo? Meu sexto sentido deve estar falhando. Geralmente, sei quando estou agradando a uma mulher — disse em tom de zombaria e correu os olhos pela sala. — O que esteve fazendo?
Samantha ficou vermelha como um pimentão e recuperou um pouco da compostura ao lembrar do estado em que encontrara a clínica.
— O que você acha? Passei o dia todo limpando este lugar.
— Limpando?
— Sim. Por acaso, você achou que poderia atender meus pacientes num... num chiqueiro?
O semblante de Christopher Girard revelava confusão e seus olhos examinaram novamente a sala. Viu os baldes de água, os sacos de lixo e frascos vazios de desinfetante. Como se entendesse tudo, foi para a outra sala, ainda no estado em que Samantha a encontrara.
Quando voltou, a fúria estava estampada em seu rosto e, sem dizer uma palavra, desapareceu nos fundos da casa. Um momento depois, ouviu-se passos pelos quartos no segundo andar.
Samantha ficou tão chocada com o estado da clínica que nem pensou em subir para examinar o resto da casa. Contudo, podia imaginar a bagunça e sentou no chão desesperada. Levaria semanas para limpar tudo e era óbvio que não poderia contar com a ajuda de Felicity.
Ouviu passos na escada e as feições de Christopher Girard amenizaram a tensão.
— Deixaram o segundo andar intacto.
— Quem você acha que fez isso?
Christopher se aproximou e estendeu a mão para ajudá-la a levantar, mas Samantha hesitou, irritando-o.
— Prometo que não vou morder.
Sua voz revelava tensão e Samantha aceitou a mão que lhe era estendida. Ficou parada, esperando ouvir a explicação dele, quando Christopher a puxou para fora da sala.
— Vamos conversar em outro lugar.
— Mas... olhe como estou. Não posso sair assim, estou me sentindo imunda.
— Está bem. É que fico irritado só de olhar para esta sala.
Puxou duas cadeiras para perto da janela e sentaram. Só então, Samantha teve oportunidade de observar melhor seu patrão. Girard era moreno, atraente, com um corpo esguio e musculoso. Muito parecido com Felicity nos cabelos e olhos negros, assim como na sensualidade que parecia transpirar por cada poro.
Era, sem dúvida, uma presença perturbadora. A camisa estava aberta no peito e a calça jeans era justa. Agora que a raiva parecia ter passado, os olhos brilhavam de entusiasmo.
— E então? Passei no exame? — Esse comentário zombeteiro trouxe Samantha de volta para a realidade, deixando-a completamente embaraçada. — Não precisa ficar com vergonha. Também estava observando você.
Furiosa por ter sido apanhada em flagrante, Samantha transferiu novamente a raiva para o que aconteceu na casa.
— Você pode explicar o que fizeram aqui? Por que a clínica não estava pronta para ser usada?
— Devia estar, Dra. Hall. Na verdade, faltava apenas uma ou duas coisas para ficar pronta, da última vez que vim inspecioná-la. E garanto que não estava assim três dias atrás.
— E como você explica isso?
— Gostaria de ter uma explicação. É óbvio que alguém invadiu a casa e fez a sujeira.
— Por que alguém faria isso? — Nem bem tinha feito a pergunta e uma idéia assustadora passou por sua mente. — As pessoas da ilha não me querem aqui? Não querem um médico?
Christopher cobriu aquelas mãos delicadas com as suas, enormes.
— Não é isso. Querem você aqui. Deve ter sido coisa de vândalos, talvez até de outra ilha.
Teve de se contentar com esta resposta, embora desconfiasse que Christopher sabia muito mais do que queria revelar. Falaram sobre outros assuntos e Samantha viu se confirmarem suas suspeitas sobre o poder daquele homem. Precisava de uma geladeira para guardar remédios? Muito bem, seria providenciada. Estava gostando das acomodações na casa da viúva Tarai? Se não, poderia mudar para outro lugar. E como gostaria de mobiliar a casa? Era só dizer o que queria que fosse acrescentado ao que já tinha sido arranjado.
Enquanto conversavam, Samantha começou a olhar de modo diferente para aquela figura fascinante. As cartas que trocaram e o intermediário tinham lhe dado uma vaga idéia da extensão de sua autoridade na ilha, mas era só agora, enquanto falava sem afetação sobre o que podia fazer para tornar a vida dela mais confortável, que compreendeu por que a Sra. Tarai, e provavelmente outros habitantes da ilha, o admiravam tanto.
Não era nenhum deus, é claro, mas alguém com um domínio considerável sobre centenas de vidas, que tentava contrabalançar o prazer do poder com as exigências da responsabilidade.
Parte da mente de Samantha prestava atenção na conversa enquanto a outra observava Christopher Girard com a fascinação de quem admira uma estátua grega. A lembrança da emoção de ter aqueles braços a sua volta continuava viva na memória e provocava calafrios.
Queria poder sacudir o corpo como um cachorro molhado que quer tirar a água dos pêlos, com a diferença de que queria se livrar das sensações que a invadiam. Fez um esforço para prestar atenção na conversa e desviou o olhar de Christopher Girard. Foi um movimento sutil, mas não passou despercebido.
— Em que estava pensando agora?
— Nada... Estou apenas cansada.
— Deve ser conseqüência da viagem de avião.
— E também de todo o trabalho que tive hoje. — Samantha percorreu o olhar pela sala.
— Fique tranqüila. Não precisará fazer nada amanhã. Mandarei alguns empregados terminarem a faxina e poderá tirar o dia de folga.
— Isso será ótimo. — Samantha sorriu para sufocar um bocejo e reparou na alteração da fisionomia dele; parecia preocupado.
— Onde está Felicity? Saiu para buscar alguma coisa para você?
— Você deve estar brincando! Já faz algum tempo que largou o trabalho pesado, disse que estava cansada.
Para sua surpresa, Christopher levantou num movimento tão brusco que quase derrubou a cadeira.
— Está brincando! Quanto tempo faz que ela saiu?
— Saiu antes do almoço. — A suspeita de um relacionamento mais íntimo entre os dois se confirmou com a fúria faiscando naqueles olhos negros.
— E você sabe para onde ela foi?
— Acho que foi nadar, disse que estava com calor.
— Nadar...
Como se não bastasse ter sido deixada sozinha para limpar a sujeira, Samantha se via agora sendo responsabilizada pelo sumiço de uma moça caprichosa, que nem a mãe conseguia controlar, e explodiu:
— Sim, nadando ou dançando por aí, ou talvez v******o com aquele rapaz preguiçoso que mandou me buscar ontem. Ela decidiu que era boa demais para esse serviço e saiu. É tudo que sei.
Passada a raiva, suas pernas estavam trêmulas e ficou arrependida por aquele descontrole emocional. Girard, por sua vez, ainda mais furioso, foi até a porta, onde ficou olhando para a rua sem movimento algum naquele fim de tarde. Permaneceu calado por um longo tempo, deixando-a tensa.
— Ouça, sei que Felicity é caprichosa, mas tem um bom coração — disse, afinal. — Vai se comportar melhor assim que começar a trabalhar na clínica. Quando era mais jovem, costumava tomar conta de animais doentes e tem um jeito especial com crianças. Acho que poderá ajudar muito aqui.
Samantha ficou desolada. Mesmo depois daquela explosão, Christopher ainda queria que trabalhasse com Felicity. Na certa, estava cego para os defeitos da moça, por motivos mais do que óbvios.
Pensou em colocar as cartas na mesa, exigindo a cooperação da moça caso quisesse realmente trabalhar como sua assistente, mas desistiu. Nada o faria mudar de idéia e, gostasse ou não, teria que aceitar a presença nada agradável de Felicity Tarai.
Suspirando, levantou da cadeira com a intenção de fechar o consultório e voltar para casa, mas Girard segurou seu braço e a fez sentar de novo. Aquele breve contato fez sua pele queimar e ficou aliviada quando ele a soltou.
— Por que disse aquilo sobre George? Sei que não é o homem mais ativo da ilha, mas não é preguiçoso.
— Não? Talvez você ache que eu deveria carregar toda a minha bagagem sozinha depois de passar mais de quinze horas em três aviões? Se é que se pode chamar aquela última geringonça de avião.
— É um bom avião, porém não acho que deveria carregar sua bagagem. Acho que existem coisas melhores para uma mulher fazer. — Christopher se aproximou e a segurou pelo queixo para poder olhar bem no fundo daqueles olhos verdes. — Samantha, não sei por que George agiu dessa maneira, mas pode ter certeza de que descobrirei. Aliás, parece que tenho muitas coisas para descobrir.
Essas palavras e o toque gentil de seus dedos fizeram Samantha relaxar, mas foi por pouco tempo. Não gostou nada do tom paternalista de sua voz quando falou:
— Enquanto isso, você será uma boa menina, não é?
— Farei o meu trabalho. É por isso que vim para cá.
— É um alívio saber que não está pensando em desistir de tudo e tomar o primeiro avião para casa.
— Não sou do tipo que desiste tão facilmente. Além do mais, a experiência nesta ilha será muito importante para minha carreira.
— Muito bem. — Ficou calado como se esperasse o próximo passo de Samantha e andou novamente até a porta. — Ouvi dizer que parte de sua bagagem ainda não chegou.
— É verdade. Outra surpresa que tive em minha chegada triunfal.
— Sua bagagem estará aqui amanhã — Christopher garantiu, ignorando o tom sarcástico das palavras de Samantha. — A menos que precise de alguma coisa hoje.
— Não, posso esperar até amanhã. Onde foi que encontrou a bagagem? Está tudo bem?
— Aparentemente, se extraviou no caminho e a encontrei ontem por acaso, num depósito na ilha de Halekai. Trouxe tudo no meu avião. Calculei que não gostaria de esperar mais algumas semanas pelo barco.
— Muito obrigada. — Samantha não conseguia pensar em mais nada para dizer, perturbada com aquele homem parado bem na sua frente.
— Bem, então, até amanhã...
— Até amanhã.
— Samantha... — Christopher continuou parado e ela ergueu a cabeça a tempo de vê-lo se inclinar para tocar seus lábios num beijo rápido, sem lhe dar chance de reagir. — Seja bem-vinda a Boa Providência.
Antes que Samantha pudesse se recobrar do choque, Girard saiu. Era um homem estranho e, apesar do controle que parecia ter sobre os habitantes da ilha, era claro que não tinha explicação para aquele ato de vandalismo na clínica. No entanto, confiava em sua determinação para descobrir o que estava por trás daquilo.
Com o olhar perdido na rua vazia, Samantha passou os dedos pelos lábios, consciente do intenso poder de atração daquele homem. Jamais imaginaria uma saudação de boas-vindas tão perturbadora para o início de sua nova vida. Aceitara aquele emprego motivada pelo espírito de aventura e pelo desejo de ser útil. Agora sabia que teria mais aventuras do que esperava... e de outro tipo.