— Lá está, senhorita. Do lado esquerdo.
O coração de Samantha disparou quando viu a ilha da Boa Providência.
— É tão pequena... — comentou, fazendo o piloto rir.
— Sim, tem apenas uns catorze quilômetros de extensão e fica a uns vinte da ilha mais próxima.
O piloto continuou a falar sobre as dificuldades de comunicação com a ilha e os problemas causados pelas constantes tempestades. Samantha tentava prestar atenção, afinal era de seu interesse saber tudo sobre seu futuro lar, mas estava excitada demais para ligar para detalhes.
A ilha da Boa Providência seria seu lar por um ano, a duração do contrato. Samantha arregalou os olhos verdes em expectativa. Como seria sua vida ali? Tinha esperado muito tempo por uma chance como aquela para colocar em prática seus conhecimentos de medicina tropical, e foram anos de preparação.
Agora estava mais perto do Japão e das Filipinas do que da costa dos Estados Unidos. Eram mais de dezesseis horas de vôo e, quanto mais o avião se aproximava da pequena ilha, mais desejava adiar aquela viagem.
Começava a achar que deveria ter feito mais um ano de residência, mais algum curso de especialização, qualquer coisa que lhe desse mais experiência para desempenhar com segurança o papel de única médica numa ilha com centenas de homens, mulheres e crianças. O bem-estar e até a sobrevivência de todos dependeriam dela e não era nada consolador saber que, até aquele momento, nunca tiveram a assistência de um médico.
Aos poucos, a ilha tomava forma, e faixas de verde, púrpura e marrom ganhavam vida. Estavam tão perto que podiam ver as encostas escarpadas das montanhas e até o topo arredondado de um vulcão. Finalmente, avistaram a faixa branca da areia.
— Segure firme agora!
O avião começou a baixar e Samantha se agarrou ao assento, como fizera desde a partida. À primeira vista, o avião não tinha lhe causado boa impressão, mas já estavam atrasados e embarcara com os dedos cruzados.
Pararam em duas ilhas, onde crianças e porcos brincavam despreocupadamente na pista de cascalho e, agora que se aproximavam do destino, imaginava que tipo de recepção teria. Certamente, haveria alguma cerimônia, por mais simples que fosse, de boas-vindas para a primeira e única médica da ilha.
A cor da água também mudava enquanto o avião baixava, passando de um forte púrpura para um azul-escuro e finalmente para um azul-esverdeado transparente, pontilhado de manchas escuras que mostravam a existência de bancos de corais.
O avião mergulhou no ar, passando por uma faixa branca de areia e um cinturão de árvores antes de fazer uma aterrissagem brusca. Estavam na ilha da Boa Providência.
— Olá, George! — O piloto cumprimentou um rapaz preguiçosamente encostado num jipe. — Venha cá. É você quem vai levá-la até a Casa Grande? — Mas o rapaz não parecia muito disposto a se mexer. — Ande logo, George! Ela é sua responsabilidade agora.
Samantha jamais imaginaria uma recepção tão calorosa e começou a descarregar sua bagagem enquanto o rapaz se movia com lentidão.
— É... acho que é minha agora. — Sem dizer mais nada levou as malas para o jipe enquanto o piloto se encarregava de algumas caixas com equipamento médico. — É só isso?
— Mandei o resto por navio, algumas semanas atrás.
— Mandou? — George coçou a cabeça. — Pelo que sei, não chegou nada ainda.
Era só o que faltava. Samantha tinha mandado algumas roupas, livros e várias caixas com suprimento médico com antecedência e, sem esse material, ficaria ainda mais difícil começar a clinicar. O piloto notou sua apreensão.
— Ora, não se preocupe, senhorita. George não sabe de tudo. Bem... adeus, Dra. Hall.
George deu a partida no jipe e Samantha acenou para o piloto. Sua apreensão aumentou com a irresponsabilidade do rapaz ao volante e decidiu tomar uma atitude contra aquilo.
— Vá mais devagar. Pode dirigir assim quando estiver sozinho, mas estamos levando equipamento médico que não servirá de nada para o seu povo se estiverem quebrados. Aliás, se continuar a dirigir assim, será um dos meus primeiros pacientes.
O rapaz ficou, sem dúvida nenhuma, chocado com aquela reação. Diminuiu a velocidade e seguiram em silêncio por uma rua estreita, cercada de arbustos e colinas. A faixa verde que Samantha tinha visto do alto correspondia a uma área cultivada com cana-de-açúcar.
O ar estava impregnado com uma fragrância inebriante de flores tropicais e, depois de algum tempo, surgiram os primeiros sinais de habitação. O jipe tinha que parar de vez em quando para dar passagem a crianças, cachorros e cabras.
As casas eram diferentes daquilo que esperava encontrar numa ilha tropical do Pacífico e lembravam muito os vilarejos na costa de New England. Eram feitas de madeira, pintadas em branco, azul ou verde e cercadas de palmeiras altas.
— O que tem lá em cima? — Samantha indicava uma construção toda branca despontando no topo de uma colina.
— Oh, aquela é a Casa Grande. É onde mora o Sr. Girard.
Foi Christopher Girard quem contratou os serviços de Samantha, que não o conhecia porque os contratos foram feitos através de um intermediário. Tudo que sabia era que administrava uma plantação de cana-de-açúcar, a única atividade produtiva da ilha. A família Girard estava na ilha há gerações e não era apenas a dona das plantações, mas praticamente da ilha toda.
Sua curiosidade aumentou e tentou ver melhor a tal Casa Grande, mas estavam muito longe e o sol ofuscava sua visão. Em todo caso, o piloto dissera que seria levada para lá e logo conheceria a casa.
Isso significava também que logo seria apresentada ao seu patrão. A idéia não era nada animadora em vista do estado em que se encontrava. Não tivera chance de se lavar e tentou em vão alisar os cabelos ondulados com a mão.
O vestido estava todo amassado depois da longa viagem e daria tudo para retocar a maquilagem. Apesar do calor, sentiu calafrios de nervosismo. Que maneira de se encontrar com o seu patrão!
Logo adiante viu uma bifurcação. A da direita continuava pela costa e a da esquerda subia pela colina onde ficava a Casa Grande. Mas, para sua surpresa, George continuou pela costa.
— Para onde estamos indo?
— Para onde esperava ir?
— Para a Casa Grande, é claro.
— Não. Estamos indo para a casa da viúva Tarai.
— Mas... o Sr. Girard deve estar me esperando!
— Ele não está na ilha.
George não era muito sociável e interrompeu a conversa ali, deixando bem claro de que não queria dizer mais nada. Samantha não sabia o que pensar. Embora estivesse aliviada por não ter que se apresentar com os cabelos despenteados e a roupa amassada, nunca pensou na possibilidade de Christopher Girard não estar na ilha. Não se conheciam pessoalmente, mas tinham se correspondido e ele era seu único ponto de referência naquela terra estranha.
Depois de alguns minutos, o jipe parou diante de um sobrado distinto.
— Chegamos.
George continuou sentado, sem a mínima disposição de ajudar com as malas e, suspirando, Samantha desceu do jipe. Estava começando a descarregar a bagagem quando o rapaz tocou a buzina, fazendo-a dar um pulo de susto.
— Ora, deixe-me ajudar. — Uma senhora de rosto redondo e cabelos brancos apresentou-se como a Sra. Tarai.
A mulher repreendeu o rapaz pela preguiça, fazendo-o descer e carregar as malas, contrariado. A casa tinha um ar aconchegante, com um jardim muito bem cuidado e uma passagem de areia e cascalho que levava a uma graciosa varanda.
A Sra. Tarai falou durante toda a caminhada sem perder o fôlego, e foram direto para o quarto.
— Você ficará hospedada em minha casa por alguns dias. Espero que fique confortável aqui.
— Oh, está ótimo, obrigada. — Samantha olhou pelo quarto simples, mas bem arrumado.
— Que bom que gostou. Só ontem fui informada de que você ficaria aqui.
— Não se preocupe, tenho certeza de que ficarei muito confortável. A senhora só foi informada ontem?
— Sim. Pensei que você ficaria em sua própria casa. O Sr. Girard fez o possível para que tudo ficasse pronto, mas houve alguns contratempos... Ainda por cima, teve que deixar a ilha por alguns dias e nada dá certo quando ele está fora. Por isso, sua casa não ficou pronta. Mas ficará bem aqui e será só por algum tempo.
— Essa casa que estão preparando para mim fica muito longe daqui? E a clínica?
— Não fica longe, dá para ir a pé. Felicity, minha filha, lhe mostrará onde é mais tarde. Agora, precisa descansar um pouco e depois comer alguma coisa.
Samantha estava realmente precisando de um descanso e aceitou a sugestão da Sra. Tarai. Foi ao banheiro tomar um banho e começou a desfazer as malas, mas o cansaço a dominou e, nem bem encostou a cabeça no travesseiro, adormeceu.
Quando acordou, o sol já estava se pondo e o crepúsculo se refletia nas cortinas brancas. Levantou depois de se espreguiçar e foi até a janela, de onde se via a aldeia. Embora não se visse o mar, a paisagem montanhosa era magnífica.
Estava mais bem disposta depois daquele breve repouso e trocou de roupa antes de descer. Um aroma apetitoso vinha da cozinha, fazendo seu estômago reclamar, pois fazia horas que não comia.
— Bem, você sabe que dia é hoje? — a Sra. Tarai disse num tom brincalhão.
— Não estou certa. A diferença de fuso horário me deixou um pouco confusa.
— Felicity descerá num minuto para o jantar. Estou tão feliz pelo Sr. Girard ter conseguido um emprego para minha filha. Espero que dê tudo certo. — O tom da velha senhora era confidencial.
— Onde ela vai trabalhar?
— Você não sabe? Pensei que soubesse...
— Soubesse o quê?
— Felicity vai trabalhar com você, será uma espécie de assistente na clínica. Foi o Sr. Girard quem sugeriu e achei uma ótima idéia. Sua decisão de trazer um médico para a ilha foi muito sábia, mas o que ele está fazendo por minha menina é muito importante também.
— Entendo...
— Felicity tem estado muito rebelde depois que terminou o colegial, sabe como são os jovens de hoje. O Sr. Girard achou que ela precisa de uma ocupação e lhe deu alguns livros de enfermagem...
— Ouviram passos na escada e a Sra. Tarai colocou o dedo nos lábios, mudando de assunto: — Não acha lindo o pôr-do-sol?
Quando Felicity entrou na cozinha, Samantha ficou boquiaberta de admiração. Era uma moça muito bonita, que não lembrava em nada os traços comuns da Sra. Tarai. Não passava de uma menina com seus dezoito anos, mas o corpo era de mulher.
Sendo uma mulher muito atraente, Samantha não sentia nenhuma inveja quando via outras mulheres bonitas. Era esbelta, de formas e traços delicados, cabelos castanho-ruivos; muito diferente da beleza exótica de Felicity, uma moça alta, de cabelos negros e pele bronzeada. Seus olhos, também negros, tinham uma expressão sombria que destoava da perfeição de sua beleza.
— Soube que você vai trabalhar comigo — Samantha comentou para quebrar o gelo, mas a moça fez apenas um sinal com a cabeça, obrigando-a a tentar outra vez: — Você tem noção de primeiros socorros?
Felicity concordou com a cabeça e a Sra. Tarai interveio, visivelmente embaraçada com o comportamento da filha.
— Felicity, por que não responde direito às perguntas da Dra. Hall?
— Aprendi os princípios básicos num livro de enfermagem.
Samantha continuou tentando conversar com a moça durante todo o jantar, num esforço inútil. Felicity não era só rebelde, mas também antipática e pouco sociável.
De qualquer maneira, teriam que trabalhar juntas. Por alguma razão, Christopher Girard achava que seria uma boa idéia e, sendo o patrão, tinha o direito de empregar quem quisesse. Samantha faria o possível para não criar problemas, só que sua paciência tinha limites.
O jantar consistia de um ensopado de mariscos com legumes e batatas, servido com pão caseiro. Tiveram abacaxi e bananas para a sobremesa, seguida de café. Estava tudo delicioso, mas a conversa ainda deixava muito a desejar. Cada assunto que a Sra. Tarai tentava introduzir era descartado com presunção por Felicity.
Foi quase um alívio quando a refeição terminou e Samantha recusou mais do que depressa a sugestão da Sra. Tarai de que fossem visitar a clínica.
— Na verdade, já está tarde e estou muito cansada. Por que não deixamos para amanhã?
A moça continuou calada e a impressão era de que a Sra. Tarai tinha sempre que cutucar a filha para falar.
— O que você acha, minha filha?
— Acho que está bem.
— Você quer começar o trabalho amanhã, Felicity? — Samantha se esforçava para compreender os caprichos daquela moça.
— Se você quiser... Chris, quero dizer, o Sr. Girard me disse para começar quando você precisar de mim.
— Está bem. Iremos até a clínica amanhã, assim poderá me ajudar a arrumar os equipamentos e o remédio que trouxe.
Falando nisso, Samantha lembrou da carga que mandara por navio.
Infelizmente a Sra. Tarai também não sabia de nada.
— Felicity poderá verificar isso amanhã.
— Está bem, obrigada.
Samantha não via a hora de se deitar e foi para o quarto. Era desanimador ver as malas ainda por desfazer, mas, pensando bem, não tinha espaço para guardar tudo ali e, além do mais, seria apenas por alguns dias e não valia a pena tentar arrumar nada.
Sentou na cama sentindo um cansaço tão grande que chegava a ser desesperador. Um torpor invadiu seu corpo, deixando os braços e as pernas pesados e sem forças. A cabeça pendeu para a frente e lágrimas começaram a rolar pelo rosto. Seu primeiro dia não poderia ter sido mais desencorajador!
Primeiro, era recebida por um rapaz preguiçoso e nem um pouco solícito que, ainda por cima, parecia um louco dirigindo; depois, era levada para a casa de uma estranha em vez de ir para sua própria casa. E como se não bastasse a clínica não estar pronta e parte da bagagem não ter chegado ainda, seu patrão nem estava na ilha.
Christopher Girard... Felicity o chamara de Chris, o que era, no mínimo, muito suspeito. Apesar de ser rebelde e m*l-humorada, essa moça tinha um ponto a seu favor: era linda. Talvez existisse mais do que gentileza a uma senhora viúva por trás daquela oferta de emprego...
Não gostou nada daquela idéia. Se era esse o caso, teria que suportar uma assistente provavelmente incompetente só para satisfazer o patrão. Deitou de bruços na cama, remoendo a frustração.
Era óbvio que a Sra. Tarai considerava Christopher Girard uma espécie de deus: providenciou um médico para o local, um emprego para sua filha e administrava a única fonte de renda da ilha. Ainda segundo a viúva, nada dava certo quando ele não estava por perto. Bem, tudo tinha saído errado naquele dia.
Mas, o “deus” da Sra. Tarai não parecia tão eficiente. Não conseguira aprontar a casa a tempo, apesar de ter meses de antecedência, nem pôde evitar que sua bagagem se extraviasse. Além de tudo isso, havia um rapaz desmazelado para lhe dar as boas-vindas e uma assistente antipática e sem treinamento para ajudá-la na clínica.
Na verdade, Samantha não queria nenhuma assistente e achava que Christopher Girard poderia ter dado mais atenção à sua bagagem. Algumas especulações começaram a tomar forma em sua mente.
Aquele homem tinha um poder espantoso sobre centenas de vidas. Sem ele, os habitantes da ilha não teriam emprego nem serviço aéreo ou assistência médica, tendo que viver da agricultura ou da pesca. Que tipo de mundo era aquele em que todos dependiam de um único indivíduo? E que tipo de homem poderia ser esse indivíduo? Um ditador obcecado pelo poder? Um playboy que arrumava empregos para suas mulheres ou apenas um homem decente preocupado em ajudar a filha única de uma viúva?
Pela primeira vez, percebeu o quanto também dependia de Chistopher Girard. Sua vida seria diretamente manipulada por esse homem. Sua casa, seu emprego, sua assistente, tudo seria selecionado e controlado por ele.
Apesar de todo o seu treinamento profissional e cursos de especialização, não se sentia preparada para aquele trabalho. Estava assustada. Não tinha pensado que viveria isolada numa ilha tropical, totalmente dependente do humor e caprichos de um completo estranho.
Enquanto o sono não vinha, sua mente era povoada por imagens de George encostado no jipe, de Felicity frustrando todas as suas tentativas de aproximação e de sua bagagem afundando em algum ponto do oceano Pacífico.
O perfume doce das flores tropicais que entrava pela janela aberta não ajudava em nada para amenizar as dificuldades que tivera naquele dia e que temia ter no futuro.
O que mais a amedrontava era a figura incógnita de um estranho chamado Christopher Girard. Num minuto, pensava nele como um pastor guiando suas ovelhas; no outro, imaginava um senhor feudal açoitando seus vassalos.
Antes que pudesse chegar a um consenso, caiu num sono pesado, vencida pelo cansaço.