17- Prosaico

4273 Words
A vida diária poderia ter mais poesia. Ser repleta de lirismo, de metáforas e não cheia de mesmices, de obviedades e de clichês dos piores tipos. Porque tem aquele clichezinho  bom, que é capaz de fazer qualquer um sorrir, que faz a gente sentir aquele friozinho na barriga minutos antes de aparecer. Aquele clichê bobo de filme, que quando acontece com a gente parece até um presente dos céus, de um anjo ou de um deus que estava de bom humor ou foi com a nossa cara. Mas não é desse clichê ameno que a vida cotidiana é cheia. Ela costuma ser a repetição de eventos monótonos protagonizados por pessoas tediosas. Ou, quando se foge do prosaísmo, pode-se cair num poço de tristeza e lamentação. E isso ninguém quer. É preferível ficar entendiado em meio a pessoas enfadonhas do que sofrer, sem dúvidas. Mas a vida é dinâmica, e entre um extremo e outro, há muito barulho. O mundo é um lugar barulhento. Tudo emite som e os ambientes urbanos são os piores de todos, pois são dominados por sons artificiais. Os sons da natureza são, no geral, agradáveis, quando muito, são fáceis de suportar. Danilo tinha um certo problema com barulhos de chuva, mas ainda não tinha chovido desde que se mudara, então não havia passado por nenhum constrangimento. Torcia para que seu segredo continuasse guardado. Porque se incomodar com os insuportáveis ruídos que rangem a  realidade ininterruptamente urbana era comum, mas com os sons da natureza era raro, por isso, Danilo tinha vergonha. Nas grandes cidades, as pessoas estavam tão acostumadas ao ruído artificial, constante e excessivo, que nem mais o notavam, já tinha se tornado parte da urbe. Mas Aquiles, que percebia os sons do mundo, pois sabia ficar quieto, notou que havia algo estranho naquela manhã. Mas não foi excesso de barulho que ele percebeu, ao contrário, ele percebeu o silêncio. E na eloquência daquele silêncio, ele soube que algo não estava bem. Porque a vida é como música,  e se não há pausa, que é o silêncio da música, não há som. Não há música. E aquela era uma manhã de pausa. Ele ouviu. Pois ele já ouvia Danilo Ele estranhou o comportamento de seu hóspede. Mesmo conhecendo-o pouco, podia afirmar que havia algo diferente nele. Havia uma sensação intrusa que dizia que a mesmice diária tinha sido interrompida, que o ritual cotidiano de monotonia estava suspenso. Aquiles não sabia a causa, nem tinha certeza de suas suspeições, mas sabia que algo estava fora do tom, pois Danilo estava quieto demais, estranhamente silencioso, e ele geralmente era falante, curioso, divertido. Danilo, claro, não fazia ideia da forma que era lido, pois Aquiles o ouvia, e embora fosse possível ouvi-lo também era realmente difícil penetrá-lo. Mas Danilo era inconsciente desses movimentos todos,  e por algum motivo desconhecido a imagem de Aquiles não o assustava. Assustava-o mais o fato de ter ciúmes daquele homem tão estranhamente sério, tão evasivo, tão desconhecido, que praticamente o desprezava e que nem sequer era mais bonito que seu namorado. Aquilo o espantava. Ele nem sabia se Aquiles era um homem interessante. Imaginava que fosse, por ser jornalista e ter lido seus artigos, que eram realmente bons, mas nunca tinha tido uma conversa que comprovasse empiricamente aquilo. Ele poderia ser pedante. Não ser charmoso, pensava. Mas não era o que seu corpo, traidor ingrato, dizia quando ele se aproximava. Era como dançar à beira do abismo, com Hades a estender-lhe as mãos. Mas o jovem que costumava não perder a oportunidade fazer tantas perguntas como se estivesse numa entrevista todas as poucas vezes que eles se encontravam pela manhã estava em silêncio. E ao contrário do que sentia com relação à curiosidade das outras pessoas, Aquiles se importava menos com a de Danilo, que não parecia se acanhar, ou se intimidar na presença do jornalista, e de certo modo aquilo o agradava. Ele tinha uma ousadia ingênua. Era charmoso. Mas naquele dia ele estava diferente. Aquiles não sabia do encontro de Danilo com seu parceiro na noite anterior, então não suporia se tratar daquilo o seu silêncio. E seu comportamento evasivo, quieto, esquivo, despertou preocupação e suspeita no Editor, que além de abrigar o jovem em sua residência era, também, de certo modo, responsável pela sua segurança. Por isso, ao achegar à sede da BW naquela manhã, procurou Kauan, a fim de descobrir os motivos da mudança de comportamento do estudante. — Oi, Kauan, tudo bem? — perguntou Aquiles, quando chegou à mesa do estagiário, assustando-o. — Oi... tudo, Aquiles... e você?  — Também estou. Mas eu preciso te perguntar uma coisa. — Pode perguntar.  — Você e o Danilo são amigos, não são? — Somos, sim. — E ele te conta coisas da vida pessoal dele? — Algumas. — Kauan estranhou a pergunta. — Ele não estuda de manhã, estuda?  — Não... Por quê? — perguntou Kauan, desconfiado. — Porque ele saiu hoje cedo pra ir à faculdade... e estava muito estranho... fiquei preocupado. — Ele estuda à noite e tem algumas aulas à tarde. Mas pode ter ido estudar... algo do tipo. — Kauan tentou explicar. — Não acho. Ele estava esquisito. Veja, Kauan...eu fico preocupado, porque sou responsável por ele aqui. Não quero que nada aconteça, entende? — explicou sedutoramente Aquiles, tentando dissuadir o estagiário a falar o que possivelmente sabia. — Olha, Aquiles, não fala que eu te contei... mas a única coisa que eu sei é que esses dias ele e o namorado fariam um ano de namoro e parece que o namorado esqueceu a data e ele ficou muito chateado, então deve ser isso... não tá acontecendo nada além disso... o Danilo é um menino legal, certinho... ele não tá fazendo nenhuma besteira... pode ficar tranquilo.  — Kauan tentou tranquilizá-lo. — Hum... entendi... então deve ser isso.  — É. Ele só deve estar triste... nada além disso, mas hoje à noite eu vou me encontrar com ele e descubro... se for alguma coisa preocupante eu te falo. — garantiu o estagiário. — Tá bom. Muito obrigado, Kauan. — Aquiles agradeceu, aliviado por não ser nada mais grave. — Por nada. — Kauan falou e viu o homem voltar à sua mesa mais tranquilo. Nem Kauan sabia do encontro de Danilo com o garoto de Aquiles na noite anterior. Não sabia dos tapas ouvidos, não sabia do ciúmes sentido. E não saberia. Ninguém sabia a bagunça que estava a cabeça do jovem estudante de Biologia que tinha fugido para passar o dia estudando, pois sentia que não tinha um único lugar naquela cidade onde se sentia bem. Kauan sabia que Aquiles acharia i****a a história do aniversário de namoro, mas precisava tranquilizá-lo. Não contaria ao amigo, mas sabia que tinha feito o melhor para ele. Nem Kauan nem Danilo sabiam, no entanto, que Aquiles se compadeceria da história, pois tinha grande empatia por corações partidos e histórias de amor difíceis. Ninguém sabia disso. Mas Aquiles tinha um grande coração. Fechado, era verdade, mas generoso, e demasiadamente indulgente com o sofrimento amoroso. Por isso, naquela noite, na tentativa de compensar, pelo menos um pouco, o incompensável, Aquiles decidiu que cozinharia para Danilo, a fim de fazer-lhe uma pequena gentileza em meio à tristeza que imaginou que pudesse estar sentindo. Não poderia resolver o problema do aniversário de namoro por motivos óbvios, mas alguma coisa ele poderia tentar fazer. Mas ele não sabia o que o garoto gostava de comer. Percebeu então que ele não sabia muita coisa sobre seus gostos, sabia que não gostava de peixe. Lembrava de ouvi-lo dizer em algum momento que por morar no literal havia enjoado. Por isso, não faria nada do mar. Já era um começo. Aquiles sabia que nada que fizesse substituiria o aniversário esquecido pelo namorado, mas ele não suportava ver pessoas sofrendo. Ainda mais sob o seu teto. Então gostaria de proporcionar ao menos algum momento de alegria para o garoto que há muito já vinha negligenciando. Resolveu fazer massa e carne. É difícil alguém não gostar disso, pensou. Fez do zero uma massa que tinha aprendido com a avó paterna, já falecida. Foi para a casa mais cedo, tendo antes passado no mercado para comprar as coisas necessárias. Como tudo ficou meio pronto rápido, resolveu que buscaria Danilo na faculdade. Achou que seria uma boa ideia, para arrematar o pequeno agrado, pelos dias ruins que ele achou, acertadamente, que o garoto vinha tendo. Avisou-o pelo celular, sem usar pretexto. Apenas disse que iria buscá-lo, imperativo, deixando-o flutuante de alegria, mas um tanto desconfiado, porém, da tão repentina diligência. A melancolia de Danilo desapareceu quase magicamente ao receber aquela mensagem. Só a ideia de ser levado para a casa por Aquiles fez com que o motivo da recente tristeza se turvasse. Isso, sem saber que um jantar feito por ele o esperava. Para completar a onda de sorte daquela noite, Kauan saía uma aula depois, o que permitiu que a carona dada por Aquiles não se estendesse ao seu amigo. Assim, foram só os dois para a casa. — Obrigado por vir me buscar. —agradeceu sem jeito, tentando entender aquela gentileza repentina. — Por nada... fiquei preocupado com você... saiu tão cedo hoje... e eu sei que você não estuda de manhã... e estava tão quieto... e no geral é mais falante. — Aquiles sorriu, simpático, tentando explicar por que estava ali. — Eu encho o saco, né? — Danilo riu, sem graça. Olhando aquele homem que dirigia com os cabelos presos num coque meio desleixado, vestindo uma camiseta branca, uma calça jeans básica e que ainda assim parecia um herói de uma saga antiga. — Eu não disse isso. — Aquiles olhou para ele com um sorriso charmoso, depois voltou a olhar para a frente, enquanto dirigia. — Fiquei preocupado com você... te achei triste. — Eu... tô bem agora... obrigado. — Danilo disse, deliciado por ter sido notado por aquele homem, que até então ele pensava que não o enxergava. — Você gosta de massa, Danilo? — ele perguntou, sério, mas menos sisudo que o normal.  — Gosto... — Danilo murmurou, quase suspirando por ouvi-lo dizer seu nome. — Que bom... e você tá com fome?  — Tô, sim. — Danilo sorria, tentando inutilmente não sorrir. — Ótimo. Eu fiz dois tipos de molho... não sabia qual você gostava... espero que de um deles você goste. — Aquiles falava. E sorria bem de leve. — Você cozinhou? — Danilo perguntou espantado. — Cozinhei. — ele respondeu rindo. — Eu não sabia que você... — Que eu sabia cozinhar? — ele sorria, claramente. — É... desculpa se... — Não me ofendi... e eu sei cozinhar, sim... depois você me diz se eu cozinho bem. — Aquiles sorria charmoso, olhando ora para Danilo, ora para a frente. — Tá bom. — Danilo respondeu desacreditando que estava indo para casa comer o que Aquiles havia feito para eles. Ainda pensava ter entendido alguma coisa errado, porque aquilo tudo parecia insólito demais para ser real. Mas antes que seu cérebro pudesse deglutir as informações novas, eles já tinham chegado e Danilo se viu entrando no apartamento atrás daquele homem enorme. — Vai guardar as coisas que eu já deixei quase tudo pronto.    — Tá bom... — balbuciou incerto, levando a mochila para o quarto, depois indo ao banheiro lavar as mãos. Foi nesse momento que pôde ver de relance que a mesa da sala de jantar já estava posta. Era um jantar planejado de fato. Para duas pessoas. "Ele cozinhou pra mim, meu Deus!", foi o que Danilo conseguiu pensar antes de entrar no banheiro com o coração em desespero. Até então, talvez ele não tivesse compreendido, talvez achasse que Aquiles tivesse cozinhado e o chamou porque ele estava morando ali. Por educação. Mas naquele momento ele compreendeu que talvez pudesse ser deliberado. "Será que é por pena?", questionou-se, já que ele havia mencionado que o achou triste. Não importava, pensou. Seu próprio namorado nem lembrou do aniversário de namoro. Ele pouco se importaria se ele estivesse fazendo aquilo por pena. Aceitaria o agrado de boa vontade. Então lavou as mãos, o rosto, respirou fundo algumas vezes, tentou acalmar os batimentos cardíacos, que insistiam em ficar fora do ritmo depois da revelação, e saiu do banheiro. Aquiles ainda estava na cozinha, por isso Danilo foi até lá. — Precisa de ajuda? — perguntou timidamente. — Não... obrigado. Tá tudo pronto já... — O cheiro tá ótimo... — observou Danilo. — Tomara que o gosto esteja também. — brincou, simpático. —Agora, vai pra sala, que eu já vou levar as coisas. — disse surpreendentemente delicado. Danilo estava assustado com a mudança de temperamento daquele homem. — Tá bom. — Danilo não sabia como se comportar direito diante daquele novo e estranho Aquiles, mas queria sondá-lo, para saber o motivo daquela repentina mudança. Ele levou as coisas para a mesa em duas viagens, pois não aceitou a ajuda de Danilo. Explicou que tinha molho de tomates frescos e molho branco, ambos feitos por ele, bem como a massa. O jovem, que adorava massa de tudo que era tipo, ficou boquiaberto, já que não era sempre que comia uma feita à mão e sabia que não era tão simples de fazer. Já tinha tentado fazer em casa. Havia uma carne assada também, mas o que tinha impressionado mesmo era a massa. Danilo comeu três vezes, com ambos os molhos, deixando o anfitrião mais que satisfeito. — Tá tão gostoso, Aquiles... nossa... eu gosto tanto de macarrão... na verdade eu gosto de qualquer massa... caseira então... acho que nunca comi uma massa tão gostosa. — Danilo enchia a comida de elogios. — É uma receita da minha avó, que já faleceu... muito boa, né?  — Deliciosa! — Mas os molhos são receita minha. — orgulhou-se. — Maravilhosos também.  — Obrigado. Fico feliz que tenha gostado... — disse, sincero. — Eu adorei. Muito obrigado. — falou Danilo, sem jeito. — Acho que além da minha mãe, nunca alguém tinha cozinhado pra mim antes... — sentiu-se esquentar no momento em que falou. — Não que você tenha... — Eu cozinhei pra você, sim. — Aquiles sorriu e viu que Danilo estava vermelho. — Ai, eu sou um i****a, né? — disse envergonhado. — Não. — Aquiles achou graça. E sorriu. — Você quer um pouco de vinho? Não sei se você bebe... — Eu quero... acho que iria querer mesmo se não bebesse depois dessa besteira que falei. — Não seja bobo... você acha que se não estivesse aqui eu iria cozinhar? — perguntou, entregando a taça. — Não sei. — respondeu Danilo, bebendo quase a metade do líquido de uma vez. — Eu não ia... Acredite. Então não precisa ficar com vergonha. Agora duas pessoas já cozinharam pra você. — Aquiles sorria, inacreditavelmente, para Danilo, que não estava mais tão à vontade como das outras vezes. Percebeu, repentinamente, que talvez se sentisse melhor com o Aquiles fechado, pois sabia que nada passaria por aquela barreia. Mas aquele à sua frente, ele não sabia lidar. Era muito melhor, mas ele se sentia muito mais desconfortável. Aquele o tirava da zona de conforto. — Eu não sabia o que você gostava de comer... só sabia que você não gostava muito de peixe, então arrisquei... corri o risco de você detestar. — ele falou, fazendo com que Danilo corasse. — Você... não precisava se preocupar. — disse, tímido, enquanto comia devagar. — Eu queria fazer alguma coisa que você gostasse... fiquei feliz em saber que gosta de massa. — Por quê? — perguntou Danilo, sério. — Por que, o quê? — inquiriu Aquiles. — Por que quis fazer algo que eu gostasse? — Porque eu te achei triste hoje de manhã... queria tentar te deixar menos triste. Deve ser r**m ficar longe da sua mãe, do seu namorado... —Aquiles conseguiu a deixa para adentrar no terreno delicado. —É difícil mesmo... Obrigado pelo jantar. Mas você não precisa se preocupar. Já me ajuda demais. Não quero te dar mais trabalho. — Ajudo nada... só te deixo ficar aqui. Isso não é nada. — É, sim. — eles se olhavam nos olhos. - É bastante...  — Você não me dá trabalho, Danilo... eu quis mesmo fazer um jantar... pra gente. — falou, estranhamente sem jeito, tirando um sorriso meio tímido do jovem à sua frente, que tentava não transbordar de encantamento.  A doçura de Aquiles era tamanha que Danilo travara. Sentia dificuldade para engolir e, não fosse a ajuda do vinho, seria difícil arrumar uma desculpa para não conseguir comer, já que tinha fome e a comida era boa. Por isso, mastigava devagar e respirava com calma. — Eu lembro de você quando era pequeno. — falou Aquiles. — Sério?  — É... mas eu não te peguei no colo, não se preocupe. — brincou. — Ufa. Eu já estava preocupado mesmo... — Danilo entrou ma onda, fazendo-o rir. — Eu não me lembro de você... — Você era muito pequeno... não vai se lembrar mesmo... eu ia mais lá com a minha mãe antes, por isso me lembro. — É... minha mãe disse... — Você era muito bonitinho. — Obrigado. — agradeceu, tímido. — E sua mãe sabe que você tem namorado? — perguntou Aquiles. — Sabe, sim. Mas ela não gosta muito dele. — Por quê? — Sei lá... ela acha que ele é meio... sabe como é... mãe costumam achar que filhos merecem alguém melhor... essas coisas. — ele deu uma risadinha sem graça. — Algumas vezes elas estão certas... — Aquiles sorriu, olhando para ele. —Ah, mas, eu sou filho único, e você sabe... mãe de filho único costuma ser super protetora. — Olha, eu sou filho único também e numa briga entre mim e outra pessoa, mesmo sem saber o motivo, minha mãe sempre vai dar razão pra outra pessoa. — Aquiles ria gostoso ao pensar na mãe. — Duvido. — Danilo também achava graça naquele exagero, já menos nervoso. — Ah, você duvida? Posso te levar lá pra você ver... se você quiser. — Você tá falando sério? - Danilo perguntou, descrente, com um sorriso bobo. — Claro que tô... ela vai gostar de te ver. — Eu quero ir, sim. — disse com um sorriso que o constrangeria se pudesse se ver no espelho. — Vou gostar de ver a madrinha. — Então, tá combinado! Nesse sábado é o aniversário da BW, podemos ir no outro, se você não tiver compromisso. — Não terei. — Ótimo. No outro sábado você vai ver a dona Fátima falando coisas horríveis sobre mim, me desqualificando e me contraindicando. — ele ria. — Não consigo imaginar. — Você verá... Minha mãe é um barato. Mas ela é absurda... — ele falava se divertindo, pois achava engraçado aquele traço da personalidade da mãe. Já que era justamente aquele um dos fatores mais importantes na formação caráter de Aquiles, uma vez que Fátima, de maneira bem-humorada, tinha encontrado um jeito de não dar sempre razão a qualquer capricho do filho, ensinando regras e limites, além de um pouco de senso de humor. — Sua mãe sabe que você é gay? — foi a vez de Danilo perguntar. — Sabe... e ela ia adorar se eu tivesse um namorado. Mesmo um r**m. — ele sorriu, cínico. — Por quê?  — Porque mães gostam menos ainda que filhos levem a vida como eu levo, né? — ele falou, permitindo que o estudante completasse sozinho a lacuna. — E ela sabe como você leva a sua vida?  — Os detalhes, não. Ninguém sabe. Além de você. Mas ela desconfia... você sabe como é mãe... e faz tempo que não apareço com ninguém... muito tempo... ela imagina o que eu ando fazendo... ela me conhece. — ele falava e levantava as sobrancelhas grossas. — Hum... e... você não sente falta de ter alguém? Sei lá... de namorar? — perguntou Danilo, quase corando. — Não.  — Faz muito tempo que você não namora ninguém? — perguntou, tomando o último gole de vinho. — Faz uns três anos, acho... mas a impressão que tenho é que faz mais de dez. — respondeu Aquiles. — Nossa... e você teve muitos namorados? — Só tive um. Durou muitos anos. Não pretendo ter outro. — Foi tão r**m assim?  — Não. Foi bom. Mas terminou m*l. Pretendo não passar mais por isso. Vou levar as coisas pra cozinha... quer mais vinho? — indagou, esquivando-se de mais perguntas. — Não. Obrigado. — Você, por exemplo... aposto que tem problemas no seu relacionamento. — falou, ao voltar à sala de jantar. — Tenho, claro... todo mundo tem. — Então. Eu pretendo não ter mais. É bem simples a conta. — ele sorriu. — Mas também não vai ter a parte boa. — argumentou Danilo. — E a parte boa do seu relacionamento é muito boa? — questionou olhando fundo nos olhos do rapaz, com um certo ar de cinismo. — Já foi.  — E por que não é mais? — Ah... sei lá... porque ele tem me deixado chateado... mas tem muita gente por aí que não é como ele. Talvez minha mãe esteja mesmo certa, sei lá... Enfim. Nem todo mundo é igual, Aquiles. Tenho certeza que o mundo está cheio de bons namorados. — Você é um romântico, Danilo. — Eu devo ser mesmo... — ele falava triste. — Mas eu sei que não é porque meu namorado esqueceu do nosso aniversário de namoro, porque ele quase nunca me liga, porque tem bem pouco tempo pra mim que todo mundo é assim. — seus olhos ardiam e ele sentia um vontade forte de chorar. — Eu sigo um cara no Twitter, por exemplo, que é a coisa mais fofa. Esses dias foi aniversário de casamento dele e do marido e ele encomendou os mesmos docinhos da festa e fez uma surpresa pro marido dele. Postou as fotos dos dois comendo os doces juntos. Achei a coisa mais linda do mundo. É bobo, eu sei. É coisa de rede social, e às vezes no dia-a-dia é bem diferente. Mas é fofo. Eu achei lindo. Você pode achar i****a. Mas ele não é desses caras que tem milhões de seguidores. É uma pessoa comum. Tem poucos seguidores. Tão poucos quanto eu. Eu sei que o que se mostra em rede social é apenas um recorte da realidade também... mas só usei isso pra ilustrar, porque não tenho um exemplo melhor agora... entende? É um relacionamento normal, feliz, que deve ter seus problemas, que não são mostrados ali, mas que tem momentos bons, que um lembra do outro. Essas coisas. — Entendo... — Aquiles olhava atentamente para ele e sorria de leve, para não constrangê-lo. Pois achava ingênua a forma que ele via as coisas. Romântica, ingênua e deliciosamente adorável. — Meu namorado não é um bom exemplo, mas tem... — Eu sinto muito por isso... por ele ter esquecido o aniversário de vocês. — Aquiles o interrompeu, e falou sério, fingindo que ainda não sabia.  — Obrigado... ele não é ruim... — Danilo defendia o namorado, meio sem graça. Mais defendendo a si mesmo que ao namorado, possivelmente. — Ele é um cara batalhador... as coisas são muito difíceis na nossa cidade... ele tem que trabalhar muito... eu até entendo... — tentava justificar. — Eu imagino... — falou Aquiles compreensivo. — Mas é isso que você gostaria? Como o cara do Twitter, o dos docinhos?  — Se é algo como aquilo que eu gostaria de ter?... acho que sim... — disse sem rir, mordendo o interior do lábio, um pouco desconfortável com a pergunta. — Você é um romântico mesmo. — Aquiles sorriu e falou como se emitisse um laudo médico. — Sou, oras... Danilo deu de ombros. — Não é errado ser assim, né? — Claro que não. — Aquiles admirava seu rosto. Danilo pediu licença pata ir ao banheiro e ao retornar, percebeu que Aquiles já estava terminando de tirar a mesa e se ofereceu para ajudar. O anfitrião aceitou a ajuda, mas não deixou que ele lavasse a louça. Ninguém lavou. Deixaram para a mulher da faxina que iria no dia seguinte. Era pouca coisa. Aquiles tinha lavado o que sujou para preparar o jantar e só tinha ficado praticamente o que tinham acabado de levar à cozinha. Eles ficaram um tempo conversando na sala antes de irem dormir e Danilo foi se sentindo menos i****a por ter desejos tão mundanos e banais, por almejar uma vida simples e prosaica, tão diferente daquela que Aquiles levava. Eles tinham aspirações diferentes, mas ali, naquela noite, duas galáxias deram as mãos e dançaram juntas a música muda do universo. Quiseram pôr o mundo de volta no lugar. E para ter as coisas no caminho certo aqui nesse mundo, as rodas girando na velocidade correta, as engrenagens todas encaixadas, só existe um segredo: a simplicidade da vida cotidiana. E naquela noite Aquiles achou a nota certa da canção. Aquela que conferia lirismo a algo tão simplório como um jantar no meio da semana, equalizando assim, pela primeira, vez a vida dos dois. Porque, afinal,  gays, como todo mundo, também têm direito a sentir prazer nas coisas pequenas, simples, medianas, vulgares da vida. Alguns até desprezam devido ao tempo pelo qual essas coisas vem lhes sendo negadas. Porque o mundo é lugar perigoso para todas as pessoas, é verdade. Mas todo mundo deveria ter o direito de criar para si as pequenas e doces ilusões pessoais e tentar fazer dele um lugar seguro e coeso, ainda que ilusoriamente, como um jantar surpresa no meio da semana. Tão simplesmente prosaico, tão deliciosamente romântico.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD