Erica vibrava com tudo o que via. O segundo artigo tinha sido ainda melhor que o primeiro, quase poético. Lindo. Brotavam memes nas redes sociais sobre a Emissora X, que já tinha emitido nota oficial negando as informações. Mas as evidências eram claras. Os programas mostravam exatamente o que se dizia nos e-mails, mas ainda era possível contornar, mentir, ludibriar a população, a opinião pública. E numa época de pós-verdade a veracidade dos fatos, ainda que com provas cabais, muitas vezes pouco importava. Era uma guerra. E era o que estavam tentando fazer: vencê-la. Ainda que aos poucos. Em pequenas batalhas. E aquela era primeira trincheira. Parte da população comprava a ideia. Parte sabia que era verdade. E outra parte nem sabia o que estava acontecendo.
Precisavam descobrir quem era o político nas negociações, para isso, Erica precisava enviar todos os e-mails para Eduardo, a fim de que ele descobrisse, ou precisaria fazer outro hack. E isso seria muito mais arriscado e difícil. Ela teria que optar pela primeira opção. Não queria enviar tudo de uma vez, porque queria controlar o teor dos artigos. Se ela mandasse tudo, pensava ela, o jornalista poderia fazer o que quisesse com o material. Por isso, cautelosa, ela preferia enviar aos poucos.
Ela sabia que dificilmente o jornalista faria uma bobagem, mas aquela operação era séria demais para que ela arriscasse tudo por confiar num desconhecido. A verdade é que Erica só confiava cem por cento em Andrei, por isso, continuaria enviando os arquivos a conta gotas. E Eduardo já tinha compreendido. Se fizesse alguma besteira, perdia a fonte e o restante do material iria para outro. E ele nunca mais veria Andrei. Se é que o veria novamente.
Enquanto Rafael e Adriana trabalhavam na matéria deles, Eduardo brigava com haters nas redes sociais, conversava com admiradores, que eram maioria, e negociavam com Flávia Weingarten o envio do material. Soube que a jornalista já havia conversado com seu editor e obtido autorização, então, sob a condição de esperar a publicação dos colegas da BW sair primeiro, Eduardo enviou um dos e-mails para a jornalista, para que ela fizesse seu artigo. Assim, o material se propagava e se tornava difícil encontrar sua fonte.
Nas entrevistas, Eduardo tentava despistar, indicando que talvez soubesse quem era um dos interlocutores, o político, mas queria desviar o foco das fontes, os hackers. Pois ele sabia que tinham conseguido o material ilegalmente. Só não sabia até quando conseguiria manter a versão. A delegacia de crimes digitais tinha sido acionada e foram atrás de Erica na casa da mãe dela.
Aparentemente, tinham conseguido rastrear alguma comunicação feita entre ela e o jornalista. Mas ela não sabia qual. Foi prontamente avisada pela mãe e se mudou para a casa de sss. Em seguida se apresentou à polícia entregando celular e computador para perícia. Nenhum dos utilizados para operações, evidentemente, pois esses já estavam enterrados na propriedade do pai de Luan. Com um pai que era grande proprietário de terras ninguém mexeria. Ela já tinha tudo esquematizado. Só não sabia onde tinha vacilado. De qualquer forma, ela nunca mais poderia sequer chegar perto do jornalista. E ainda tinha muita coisa para ser transmitida.
Como ela e sss tinham emprego fixo e não havia prova suficiente que indicasse que o material divulgado era, de fato, originário de hackeamento, ela não pôde ficar mais de um dia presa. Mas isso abalou toda a equipe. Ela foi a que menos se preocupou, pois sabia que por mais que ficasse provado que ela transmitiu o material, ninguém provaria que ela hackeou alguém, pois Andrei tinha feito o hack e sua máquina há muito também já estava enterrada. A polícia nem sequer sabia quem tinha sido hackeado, o político ou o executivo. Achavam que tinham invadido o computador, e o que havia sido hackeado era um celular. Eles tateavam praticamente no escuro. Ela sabia. Por isso estava calma. Eles só tinham algum indício de comunicação feita entre um endereço IP dela e de Eduardo. Não sabiam o teor da comunicação. Ela disse que havia mandado e-mail parabenizando pelo artigo, como leitora. E de fato ela tinha. Mandado mais de um. Para se prevenir, como um possível álibi. Mas ela sabia que não era disso que a polícia falava, mas foi o que usou para se defender, porque era o que tinha.
A polícia sabia que tinha mais coisa. Só não conseguia provar. Por isso, ela não poderia ter contato com Andrei, com Rodrigo ou com Eduardo. Para sua proteção e para a deles, pois ela não tinha feito o hack, porém, jamais diria que foi Andrei. Porque a operação era dos dois. E independentemente de qual máquina tenha sido feito o hackeamento, para ela, eles era igualmente responsável. E ainda wue não fosse, jamais trairia o amigo.
O restante do grupo estava apreensivo. Andrei ficou nervoso quando soube que a amiga tinha ido depor. Rodrigo já estava preparado para defendê-la. Já vinha estudando há meses, caso precisasse defender o namorado. Ficou detida para averiguação. Desnecessariamente. Andrei quase morreu. Mas antes da resposta do habeas corpus sol solicitado por uma amigo de Rodrigo, libertaram-na, pela manhã. Eles estavam desolados. sss não saiu da delegacia. E levou- para casa, tranquila e abatida quando foi libertada.
Seria difícil chegar em Andrei, mas não era impossível. A polícia seguia traços errados e Eduardo ajudava a confundi-los, mas Erica não queria desistir da operação e já pensava em novas estratégias de entregar o material para o jornalista de forma impossível de rastrear. E a melhor forma para não se rastrear é à moda antiga: a analógica. sss pediu para que ela desse um tempo, mas ela tinha pressa. Iriam imprimir os e-mails salvos em um pc antigo não conectado à internet, na casa de Luan e alguém entregaria pessoalmente a Eduardo, quando a poeira baixasse. Já estava decidido. Por mais que tentassem dissuadi-la, que tentassem pará-la, ela queria ir até o fim. Se ninguém o fizesse, faria ela mesma. E como ela já estava visada, Andrei não deixaria que a amiga se comprometesse ainda mais, então, ele se ofereceu a fazer o trabalho.
Rodrigo ficou transtornado. Por diversas razões. Porque ele se arriscaria, porque era muito perigoso, porque ele já tinha feito o hack e porque, claro, ele não queria que Andrei tivesse contato com o jornalista. Por isso, Rodrigo se ofereceu para ir no lugar do namorado, que não aceitou. Sob brigas, discussões e protestos de todos os lados, ficou acordado que iriam ambos. Ninguém mais tinha contato físico ou virtual direto com Erica naqueles dias. Apenas por intermédio de sss, que trabalhava na empresa de um amigo de Andrei. Falavam por mensagens cifradas e era difícil. Só a entrega dos e-mails impressos que não poderia ter intermediário. Teria que ser entre membros do grupo. Decidiram que Luan entregaria para Lia, que entregaria para Andrei. Assim não passaria por sss, não tendo, então contato algum com Erica.
Em princípio a operação era centrada em Erica e Andrei, mas a chegada da polícia atrapalhou o processo e os outros integrantes do grupo de hackiativistas do qual eles faziam parte precisaram ser acionados. Eles já sabiam da operação e estavam alertas para a necessidade de entrarem em ação. Eles só precisavam de alguém para entrar em contato com o jornalista, que ainda não sabia que os planos haviam mudado.
Qualquer um que chegasse perto de Eduardo ficaria visado. Eles não sabiam se ele estava sendo vigiado e qual o grau de vigilância. Sabiam que provavelmente eram melhores hackers que a polícia, mas não tinham homens armados e não sabiam com quem estavam lidando, então precisavam ser cautelosos. Resolveram observar a rotina de Eduardo e abordá-lo em um local público, como uma academia, um restaurante. Mas ele saía pouco de casa e quando saía, geralmente era para ir à redação dos locais onde trabalhava, o que dificultou muito o trabalho de Luan, Lia e JP, que se revezaram na incumbência de contatá-lo.
Foi Lia quem conseguiu o contato. Aproveitando o momento em que ele tomava café em uma padaria próxima ao jornal, ela sentou ao seu lado e o abordou. Como já tinha sido observado anteriormente, soube que às quintas ele costumava ir à redação e passava naquela padaria para tomar café. Como das outras vezes encontrou a padaria cheia, não foi possível sentar ao seu lado, mas naquele dia ela conseguiu. Sentou, pediu um refrigerante, olhou para ele, sorriu e perguntou:
— Você não é aquele jornalista que denunciou aquela emissora? — ela perguntou, como uma fã.
— Sou, sim. — respondeu, meio tímido.
— Nossa... adoro seus textos, suas entrevistas. — ela falava, enquanto entregava a ele um papel escrito "sou amiga da Maria, preciso conversar com você". Ele arregalou os olhos para ela e continuou a conversa.
— Que legal... fico feliz. — perguntou "onde?", em voz baixa, olhando para ela.
— Sabia que meu sonho era conhecer um jornal? — ela falava, sensualmente.
— É mesmo? — ele entrou no jogo, recebendo mais um bilhete escrito num papel. "deixe o celular no carro, me leve pra dentro".
— É... Você me levaria pra conhecer? — ela pediu.
— Claro. — ele falou. — Você tem tempo agora?
— Tenho, sim. — ela sorriu, amassando o papel e guardando no bolso. Ele pagou e os dois saíram.
— Só vou deixar uma coisa no carro. — ele avisou, deixou o celular e voltou.
— Vem comigo.
— Ai, que legal! — ela encenava. E eles entraram.
— Aconteceu alguma coisa? — ele perguntou assustado, assim que entraram na redação.
— Sim. A Maria foi chamada para depor.
— Meu deus! — disse ele, preocupado.
— Ela não ficou presa. Mas não pode mais ter contato com você. Nem nós estamos tendo contato com ela.
— Entendi... Mas porque pediu pra eu deixar o celular no carro? — ele perguntou.
— Porque se chegaram até ela rastrearam a comunicação de vocês de alguma forma. Seu celular pode estar grampeado, ter sido hackeado, algo do tipo, por isso eu escrevi e não falei, lá na padaria. — ela explicou.
— Ah... entendi.
— Aconselho a comprar outro. Muda o número também... Usa outro computador... Enfim...
— Tá... Vou fazer isso. Obrigado.
— A Maria quer saber se você quer o restante do material.
— Eu quero. Mas como ela vai me dar? Tá aí com você?
— Não. Ainda não conseguimos. E não sabemos se você está sendo vigiado, então, se você estiver, eu não posso mais ser vista com você. Outra pessoa vai te entregar. E eu vim te dizer como e quando. Caso ainda queira.
— Eu quero.
— Ótimo. Então está aqui. — ela entregou um papel escrito.
— Acho que você já o conhece. Mas aí estão as instruções. Acho que só teremos essa chance, porque as coisas estão apertadas e estamos com receio.
— Claro. Eu irei. Muito obrigado. Agradeça a ela por mim. Diz que no que eu puder ajudar...
— Você ajuda distraindo.
— Farei isso.
— Obrigada. Boa sorte. — ela sorriu e foi embora tranquilamente.
O coração de Eduardo estava acelerado. Ele estava e******o, preocupado, agitado. Era muita informação para assimilar, naquela história que parecia um filme de espionagem. Mas era real. Ele precisava mesmo se livrar do celular, do computador, tinha que fazer back up dos textos, comprar um celular novo, um computador novo e ir se encontrar com a nova e provavelmente última fonte que revelaria as derradeiras informações daquela rede de mentiras que envolviam o país. A mente dele girava e ele precisou sentar para decidir o que fazer primeiro. Resolveu então abrir o papel entregue por aquela jovem bonita, que ninguém suspeitaria integrar um grupo de hackers.
O bilhete dizia "Evento Beneficente de Causa Animal. Eduardo Ivankov e acompanhante. Nome na lista. Dia 25/04. 20h. Av. Olímpica, 300. Traje Social. Banheiro masc. Às 21:45. ZL.". Ele não entendeu direito o que aquilo significava. Leu várias vezes, então resolveu pesquisar na internet. Mas não do seu celular. Usou um computador da redação. Descobriu que teria, em dois dias, de fato, um evento beneficente promovido por grandes empresários com o intuito de arrecadar fundos para montar um santuário de elefantes e outros animais de grande porte abandonados por circos e zoológicos desmontados, que muitas vezes largavam os animais até em estradas quando eles ficavam velhos e não serviam mais aos propósitos comerciais. Era uma iniciativa nobre, mas Eduardo sabia que muitos empresários usavam essas causas como pretextos para se promoverem e parecem filantropos, quando na verdade cometiam outros crimes, até mesmo ambientais.
De qualquer forma, Rodrigo, o namorado de Andrei, era um dos organizadores do evento e ele realmente gostava de animais. Eduardo não conhecia Rodrigo por nome. Tinha-o visto apenas uma vez naquela entrega de prêmio. De qualquer forma, Rodrigo, para ajudar o namorado, sugeriu que a entrega dos e-mails impressos fosse feita no evento, assim ele poderia estar presente e assim ele poderia fazer com que Eduardo não fosse sozinho, já que o convite era estendido a outra pessoa, que Rodrigo esperava ser o namorado.
No bilhete havia dois horários. Vinte horas era o início do evento. O outro horário era o que seria feito a entrega do material impresso. Rodrigo havia escolhido vinte e uma e quarenta e cinco, por insistência de Andrei, já que nessa hora ele estaria no palco fazendo parte da cerimônia e, caso alguma coisa desse errado, ele teria um álibi filmado. Rodrigo protestou. Queria estar junto no momento da entrega, mas Andrei bateu o pé, argumentando que precisava haver confiança na relação e que a entrega seria rápida. A contragosto Rodrigo aceitou e Eduardo, compreendendo então aquele bilhete, soube que ZL era sua fonte misteriosa, aquele garoto lindo por quem ele havia se apaixonado e que ele veria a sós, cara a cara, em dois dias. Seu corpo estremeceu com a ideia. E, num impulso ele saiu para comprar o que precisava, inclusive uma roupa nova para a ocasião.