O quão nostálgico era poder se sentar na janela da torre e observar todo o castelo em sua rotina? Desde o momento em pusera os pés no vilarejo de Grevers, fora acometida por lembranças e sensações nostálgicas. Todas preciosas.
Não era tão r**m voltar para sua terra.
— Parece que meu pai está feliz com sua chegada.
Maybelle olhara para a porta da torre, onde Luka entrava e se aproximava.
— Fico feliz e honrada em servir de alívio para o rei. Mas acredito que o motivo da felicidade dele não seja o meu retorno.
Tornando a olhar para a janela, via a rainha e a princesa guiando os funcionários do castelo com os preparativos do baile.
Ainda naquela manhã, enquanto se dirigia para a torre onde a reunião com o rei seria feita, Maybelle notara o grande movimento dentro do castelo. Fora então que soubera, a festa da colheita estava próximo e o rei pretendia realizar um baile.
Enquanto o baile ocorreria, o vilarejo de Grevers iria realizar o festival também. Todos entrariam naquela atmosfera de festança.
— É… ele deseja que eu encontre uma esposa, devo dizer.
— Tens idade para se casar. E levando em consideração que é o próximo na linha de sucessão, deves escolher uma pessoa apropriada.
— Diz as exatas palavras de meu pai. Mas devo dizer que considero essa uma tarefa difícil.
Maybelle percebia no príncipe uma preocupação. Estava com a testa enrugada e os lábios comprimidos como se guardasse um segredo. Cruzando os braços, a caçadora relaxara na soleira da janela.
— Fiquei sabendo de vossa condição nas noites de lua cheia, tem sido difícil para ti também, Luka.
O príncipe suspirara e relaxara os ombros quando se aproximou da janela, encostando-se à frente de Maybelle.
— Jamais esqueci dos tempos em que me ajudastes quando fui mordido por um lobo. Perdi noites em claro com febre e dores insuportáveis. És a única mulher, além de minha mãe, a saber o que se passa nessa torre.
Maybelle analisara o quarto da torre, percebendo as correntes pesadas e grossa em um canto longe da janela. Pelo o que se recordava, quando anoitecia aquele cômodo era tomado pela escuridão.
Perfeito para esconder um humano que se transforma em lobo.
— Consigo compreender os dois lados dessa moeda. Não é o momento ideal para se preocupar com casamentos, uma vez que a Floresta Uivante tem dado sinais da presença de alguma matilha. Porém, meu pai acredita que o baile trará a calma que o povo precisa. Estamos dizendo que tudo está bem, quando claramente mordemos nossas línguas de preocupação.
Quando que aquele príncipe havia crescido e se tornado um homem compreensível com seu pai?
Em sua memória, príncipe Luka era um jovem mimado que precisava estar rodeado das pessoas para se sentir amado. Enquanto ardia em febre, sempre choramingava pela ausência de seus pais, que também cuidavam do povo que chorava desolado.
Diferente dos demais serventes e soldados que dirigiam palavras adoráveis para acalmar um príncipe solitário, Maybelle o tratava com frieza. O fato de ele reclamar com tamanho ódio o fato do povo estar roubando a atenção do pai, enquanto o próprio filho sofria com o ataque de um lobo, fazia Maybelle não sentir vontade de estar ali.
Houvera uma única noite em que Luka ficara sob sua responsabilidade, e fora a primeira vez em que ela vira um humano se transformar em lobo. Não tivera medo dele, e muito menos se acovardara quando a criatura lhe mostrava os dentes em um rosnado.
Cuidou dele pacientemente até retornar à sua forma humana, e somente então o confrontara.
— Está a se transformar na mesma criatura que tirou várias vidas de seu povo. Se não és capaz de lidar com isso, não serás digno da coroa.
Sua intenção jamais teria sido a de fazê-lo deitar-se nas próprias lamúrias. No entanto, era ela quem desejava estar chorando pedindo pelo colo e carinho daqueles que não viriam mais.
Se o príncipe estaria desesperado de tal maneira, como ela deveria estar?
Lembrar de sua juventude a fizera sorrir. Agradecia aos céus pelo tempo que se passara, pois agora via não ter sido a única a amadurecer.
— Aproveite do baile para distrair da própria maldição, Luka.
— Deveria aproveitar também, afinal chegastes de viagem e não tem largado de suas armas.
— É um hábito — Dissera ela acariciando o cabo da adaga presa em sua cintura — Sempre alerta, visão, audição e olfato. São os meus radares para saber quando eles podem atacar.
— E tens sentido a presença deles por perto?
— Desta torre. — Maybelle revirava os olhos pelo cômodo — Se bem que aqui está repleto do seu cheiro, vossa alteza.
Luka enrubescera e desviara o olhar de imediato.
— O que isso significa? Não tem cheiro algum aqui.
— Cheiro de cachorro.
— Está a me chamar de cachorro?
— Cheira a um.
— Que ousadia a sua, Maybelle.
Ela rira graciosamente e apoiava os braços sobre os joelhos.
— Veja só, ainda sabe sorrir — Comentara o príncipe, ganhando apenas uma risada muda de volta. — Repito do convite para aproveitar do baile, comigo.
— Devido a minha falta de etiqueta, iria espantar todas as damas e tornar-me alvo de ódio delas. Não desejo estar no baile.
— Com certeza seria alvo dos olhares dos cavaleiros.
— É você quem deve se casar, não eu, Luka.
— Seria mais fácil se você fosse minha esposa. Afinal, sabe de minha condição.
Maybelle sustentara o olhar de Luka. Pérolas negras e brilhantes, devia dizer. Ela sabia qual caminho ele queria tomar, conseguia sentir cada intenção vinda de suas palavras.
Luka não escondia o afeto que tinha por Maybelle. Sua admiração sempre fora presente em palavras e gestos, desde a juventude. Mesmo que nenhuma palavra direta, como uma declaração romântica, fosse feita, Maybelle estava completamente consciente dos sentimentos de Luka.
A sensação de ser alvo de tais sentimentos lhe causava nervoso. Talvez fosse isso que fizesse se recordar daquela pessoa. Pois assim como Luka, ele não fazia questão alguma de esconder suas intenções.
Comparando-os, o príncipe era respeitoso e não ousava em ir além.
Levando a mão ao rosto, sentira seu coração palpitar estupidamente nervoso. Havia se recordado daqueles olhos de âmbar e o sorriso selvagem com aquelas presas.
Todo o trabalho de anos para fingir que esquecera fora jogado fora por ela mesma.
— Está tudo bem, Maybelle… eu apenas estava brincando, sabe…
— Vossa alteza — Interrompera a moça, baixando a mão do rosto e sorrindo calmamente para o rapaz — posso lhe garantir que como esposa, sou uma excelente caçadora de lobos.
?
O festival da colheita tratava-se do evento mais esperado pelas pessoas do vilarejo, pois em breve o inverno chegaria. Seria o último festival que poderiam celebrar antes de se trancafiarem em suas casas e esperar o retorno do sol.
Os dias frios em Grevers constavam com temperaturas baixas o suficiente para nevar. De tal forma torna-se impossível plantar algo, sem que o gelo matasse a vegetação. Até os animais sofriam com o frio.
Sendo assim, um festival da colheita era uma despedida dos tempos quentes. E o povo aproveitava para se divertir.
Em suas viagens, Maybelle presenciara diferentes culturas, mas nenhuma delas lhe encantara tanto. Acreditava piamente que as celebrações feitas pelo rei Caineghis eram os que mais enchiam seu peito de alegria.
Talvez por todas as suas lembranças de festivais terem sido vivenciada ao lado de seus pais. Não havia nenhuma recordação r**m.
Ajeitando a capa vermelha sobre os ombros, Maybelle observava as carruagens chegarem na medida em que o sol se punha. Nobres de várias regiões vinham para Aurillon festejar, ou talvez tentar casar suas filhas com o príncipe.
Só de imaginar o coitado sendo rodeado de mulheres, era cansativo. Ou engraçado.
— Não pretende participar das festanças, senhorita?
Maybelle inclinara a cabeça para Klyn, vestido mais formal do que o de costume. Haviam medalhas penduradas em seu peito, estufado orgulhoso. Era tão nítido.
— Não sou da nobreza, Klyn. Além do mais, quero estar em alerta.
— Em alerta? Em nossa última reunião com o rei, nessa manhã, dissestes à ele que não havia notado a presença de lobos.
Arqueando a sobrancelha, Maybelle suspirava diante da dúvida do assistente do rei. Já havia percebido que ele não aceitaria a sua presença em Aurillon, porém não faria nada de r**m para tirá-la de lá.
Devido à sua lealdade ao rei. Caso contrário, Maybelle acreditava que já teria sido chutada do castelo há dias.
Mesmo que a hostilidade do homem não fosse violento, ele a moldurava em suas palavras e olhares. Fazia questão nenhuma de esconder.
— Estamos falando de lobos, não de tartarugas, Klyn. Eles podem correr quilômetros em alguns minutos, principalmente se estiverem famintos. — Apontando para o castelo, onde os nobres eram recepcionados, Maybelle fitara seriamente — E dentro desse castelo, e do vilarejo, vários humanos estão se reunindo como se fossem um banquete para uma matilha. Todo cuidado é pouco.
Ele espreitara os olhos pigarreando.
— Muito bem. Assim que se sentir tranquila sobre a segurança, vá para a cozinha. O príncipe pedira que guardassem alguns pratos para a senhorita.
Klyn retornara para o castelo, deixando Maybelle lhe fazer uma careta à suas costas.
Poderia odiá-la, porém abanaria o r**o para a família real. Rindo, Maybelle começara a caminhar pelo pátio do castelo, a que era mais próxima da Floresta Uivante.
Se não fosse pela música distante e o zum zum zum do salão de festas, Maybelle seria capaz de escutar mais sons vindo das árvores. Os lobos não conseguiam ser silenciosos em ambientes tão apertados, principalmente uma floresta completamente cheia de troncos de árvores e outros animais.
Nesse caso, o seu maior aliado era a audição. Porém, teria de trabalhar com ruídos.
Andara sem tirar os olhos da floresta, ignorando por completo os nobres que iam de um lado à outro. Também fora necessário ignorar o delicio cheiro do banquete, que fazia seu estômago revirar em fome. Fizera uma nota mental de que deveria visitar a cozinha após os guardas retomarem seus postos.
Quando chegara próximo da torre ao leste, parara e fitara a escuridão da floresta. Inclinou a cabeça colocando algumas mechas do cabelo por detrás da orelha, a fim de se concentrar nos sons.
Mexer de folhas.
Galhos se quebrando.
Espreitando os olhos, erguera o rosto farejando o ar sentindo o cheiro característico de um cão que rolou no feno.
Não.
Expirara profundamente até esvaziar seus pulmões, e tornara a inspirar daquele cheiro.
Definitivamente, um lobo.
Sem fazer quaisquer movimento brusco, Maybelle segurou o cabo da adaga presa em sua cintura sem desviar os olhos da mata. Procurara alguma silhueta, uma vez que os sons estavam se tornando próximos e mais cuidadosos.
Eles sabiam que ela havia notado a presença.
Estavam sendo cuidadosos, reparara a caçadora sem se mover.
Uma grande fera saltara dos arbustos à direita de Maybelle, recuperando-se ligeiramente para correr em sua direção. A caçadora erguera o braço direito para se proteger, sendo mordida e segurada pela criatura.
— Finalmente deram as caras, seus malditos.
Com a mão esquerda, puxara do facão preso em sua coxa e o usara para atingir uma das patas do lobo. Ferido, a criatura a soltara e se afastou, mantendo do focinho baixo e rosnando.
Era um lobo de pelugem acinzentada, diria até bonita. Dos poucos lobos das quais recordava-se daquela invasão, não havia um acinzentado. Sinal de que a matilha aumentara ao longo do tempo.
Isso não seria bom.
Novamente o lobo investia, dessa vez mordendo o tornozelo de Maybelle para imobilizá-la. A caçadora erguera da perna com esforço para arremessar da fera para longe. Logo em seguida arremessara da adaga para o ferir.
O lobo acinzentado caíra no chão ferido, passando a uivar.
— Ah não, não, não, seu bebezão chorão! — Resmungava a caçadora retirando da capa e a jogando ao lado para diminuir o peso que carregava — Está chamando por ajuda, bastardo.
Tendo apenas o facão ao seu alcance, a caçadora mantinha-se em alerta com o lobo ferido e a floresta escura. Com a parca iluminação, e a dor das mordidas, estava distraída demais para se concentrar em quantos lobos viriam em ajuda.
Na verdade, sentia a presença de vários deles em diferentes pontos da floresta, como se a vigiassem e esperassem o momento certo de atacá-la. No entanto, Maybelle se mantinha de frente e próxima ao lobo ferido.
Mesmo com a adaga presa em seu corpo, o lobo acinzentado levantou-se para chamar a atenção de Maybelle. Ele correra em direção do castelo.
Se algum convidado visse pela janela que há um lobo em Aurillon, geraria pânico e desordem sem tamanho. Atrairia atenção dos demais lobos, e então os humanos seriam — novamente — atacados.
Para evitar a proximidade com o castelo, Maybelle pendurou-se no galho de uma árvore e balançara até pegar impulso suficiente para saltar em cima do lobo, abraçando seu pescoço e segurando seu focinho.
— Finalmente te peguei.
Ofegando, a caçadora erguera-se com dificuldade. O lobo se rebatia indo contra os troncos das árvores para tirar Maybelle de suas costas, que tossia em ser prensada na madeira. Ainda assim, conseguira se afastar do castelo e sair do campo de visão de qualquer humano.
Inesperadamente, Maybelle fora mordida no ombro obrigando-a soltar o lobo acinzentado rolando no chão. Olhando para trás, a caçadora reencontrara os olhos acinzentados e a pelugem marrom.
A mesma sensação que lhe acometera há onze anos retornavam para cada músculo. Sentia-se paralisada e confrontada. Na última vez em que o vira, ele não havia sido capaz de lhe atacar.
Agora o fizera.
Girando o cabo do facão entre os dedos para virar a lâmina contra si, Maybelle não perdera tempo em tentar afrontá-lo. No entanto, o seu braço fora imobilizado pelo lobo acinzentado.
Grunhindo, estava cercada por dois lobos fortes o suficiente para lhe m***r. E não conseguiria mover o facão o suficiente para, pelo menos, tirar um deles de perto.
Respirando fundo, evitou o desespero. Quanto mais nervosa ficasse, menores seriam as chances de encontrar uma saída. Jamais deveria ser tomada pelo desespero.
Fora então que um borrão n***o passara diante de seus olhos empurrando a pelugem cinzenta de si.
Com o braço livre novamente, Maybelle retomou do ataque afundando a lâmina do facão na costela do lobo marrom. Ele a soltara e rosnara.
Sem forças para se erguer, Maybelle pressionava o ombro para conter do sangramento de sua ferida. Fuzilava a fera com tamanho ódio, que se quer percebera um terceiro lobo presente saltar acima de sua cabeça e ficar na sua frente.
Os dois lobos se encaravam, rosnavam, baixavam o focinho e então começaram a lutar entre si, mordendo pescoços e rolando pelo chão.
— Mas o quê…
Assistindo a luta, Maybelle logo lembrou-se do lobo acinzentado e tratou de se virar encontrando apenas uma trilha de sangue para a floresta.
Um havia fugido.
Os dois outros lobos continuavam a brigar, até que o de pelagem marrom também escapara para a floresta deixando o outro para trás, rosnando.
Maybelle encarara daquele lobo desconfiada. Uma vez que olhos de âmbar lhe fitaram, a caçadora sentira algo em seu estômago se revirar.
Não gostou daquela sensação.
O lobo caminhou silenciosamente para um arbusto, sendo assistido pela caçadora.
Maybelle tentara se levantar, mas estava sem nenhuma força em suas pernas para o fazer. Apoiando-se no chão, obrigara cada m****o seu a funcionar, até que conseguir ficar de pé.
Apertando os dedos sobre o ombro ferido, ela dera as costas para a floresta e dera alguns passos pequenos sentindo seus joelhos fraquejarem e fazê-la cair.
Algo a segurara, uma mão quente e grande a segurava. Erguendo a vista cansada, os arregalou quando o mesmo âmbar a fitavam acompanhado de um sorriso malicioso e ladino.
— Há quanto tempo, Belle.
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Se ao menos eu pudesse fazer isso mais uma vez
Só mais uma chance para eu poder te ver
?