Capítulo 3

2156 Words
Uma série de encontros inesperados aconteceu no meio do salão de baile desde que Beatriz saiu foragida da varanda do jardim de inverno. O primeiro foi entre Miguel - que estava prestes a ser expulso, sendo erguido por lacaios da mansão, que o seguravam por cada um de seus braços-, e Lady Ursula, a duquesa de Nottingham. A mulher se colocou na frente dos três homens, acompanhada de seu criado pessoal, usando de toda a sua arrogância aristocrática para que a obedecessem. Dissimulou que sentia dor de cabeça para se livrar da modista infame e de sua filha inescrupulosa, e procurou com desespero pelo homem que causou um turbilhão em todos os seus sentimentos e emoções.  - Eu exijo que soltem de imediato esse rapaz.- Falou a duquesa com a impertinência que lhe era permitida.  - Sinto muito, milady, mas esse rapaz…- Um dos lacaios tentou explicar, mas Ursula o interrompeu. - Esse rapaz é um convidado que está sendo vítima do preconceito daquela pequena arrogante.- Ursula caminhou um passo para frente, intimidando a ambos os empregados com sua autoridade.- Eu sou arrogante quando necessário, e serei agora ao dizer que como sua graça, eu ordeno que tirem suas patas imundas desse menino.-  Os homens cederam a ordem da duquesa e se afastaram do lugar com os ombros encolhidos e cabisbaixos.  - Muito obrigado, milady. Eu não vou mesmo me demorar, estou apenas esperando minha amiga, já que sou acompanhante dela e já vamos embora.-  - Não precisa ir embora por causa de Doroteia e Filipa. Aquelas duas tem a mesma inteligência de uma ervilha, e eu, meu caro rapaz, não deixarei que ninguém mova um dedo contra você. Me lembra uma pessoa muito querida.- Ursula se comoveu perante a semelhança, não conseguindo evitar a voz embargada. Os olhos doces e castanhos, os cabelos escuros e um pouco bagunçados, e apesar das vestes mais simples e da origem humilde da qual Filipa fez questão de gritar a plenos pulmões, havia algo de nobre naquele rapaz.  Miguel se sentiu compelido a segurar a mão da mais velha como um gesto em solidariedade, por mais que não soubesse o que dizer. Não queria ser inconveniente e perguntar a respeito da tal pessoa, que pela reação da duquesa era alguém muito importante. E por mais que se sentisse tentado, Miguel não teve a chance. Beatriz desviava dos convidados com maestria enquanto corria como um foguete em disparada, segurando as barras de seu vestido. Puxou seu amigo pela mão, olhando rapidamente para trás e encontrando Alex em seu encalço, a poucos metros de distância.  - Precisamos ir agora. Já é meia noite.- Disse Beatriz em um tom urgente. Ela soltou o seu amigo e tomou a iniciativa de correr para fora da casa, na direção do cavalo que os esperava à frente.  Miguel se despediu da duquesa com uma reverência e correu atrás de sua amiga logo em seguida. Por ter as pernas mais longas do que as de Beatriz, não foi difícil para Miguel alcançá-la. O conde já cruzava a porta de saída quando sua dama de azul pulou no pangaré com a ajuda de seu amigo, e os dois cavalgaram para longe dali. A moça não evitou olhar para trás pela última vez, sentindo um sufoco na garganta ao se deparar com a expressão de frustração de Alex. Ao sair de seu estado de transe percebeu que algo estava errado. O seu pé direito parecia leve demais, e ao descer os olhos para ele constatou que estava descalço. Um dos sapatos de cristal que roubou da duquesa de Birmigham tinha se perdido quando ela saltou do chão para o animal de grande porte, e possivelmente agora estava nas mãos de Durkham. E ele de fato estava. Pouco tempo depois que viu a mulher que tinha os olhos verdes mais encantadoramente lindos da Inglaterra, fugir a cavalo, viu que suas esperanças não tinham sido destroçadas de vez. Um do belo par de sapatos de cristal estava caído na grama verde, e ao se ajoelhar para segurá-lo, percebeu que tinha uma pista do possível paradeiro da dama de azul. Havia um selo inconfundível na sola do sapato, do qual Alex reconheceu de imediato. - Ateliê de madame Doroteia.- Murmurou Alex para si mesmo, esboçando o seu sorriso mais triunfante e guardando o sapato no bolso de seu paletó. … - Estou perdida. Completamente perdida.- Beatriz caminhava de um lado para o outro no pequeno espaço de seu quarto . - Voltarei até a casa de Durkham. Você estava com o sapato até pouco antes de subir no cavalo, então deve ter caído no jardim.-  - Se caiu no jardim, provavelmente o conde deve ter visto e guardado consigo. Ele quer me encontrar e o sapato é a pista.-  - Então terei que arriscar.- Miguel caminhou na direção da janela, já prestes a passar uma perna para o lado de fora quando a maçaneta da porta do quarto de Beatriz girou.  Era Doroteia. Passou a noite inteira vigiando a sobrinha como um cão de guarda, e viu a cena deplorável desde o momento em que ela fugiu de Alexsander, até o momento em que o conde tomou posses do sapatinho de Lady Birmingham. A dupla que estava no quarto a olhou como se fosse o próprio d.e.m.ô.n.i.o personificado, e ela se divertiu ao farejar o cheiro do medo. A mulher atravessou a soleira da porta batendo palmas, se detendo a poucos metros de distância.  - Que cena mais comovente. O filho da mulher da venda e a vendedora de sapatos que além de ser uma v.a.d.i.a, é uma ladra. Cadê os sapatos da duquesa de Birmingham que você e o seu cúmplice roubaram?-  - Miguel não tem nada a ver com isso, Doroteia, fui eu quem peguei os sapatos.-  - E eu ajudei. Não teríamos recorrido a esses meios se a senhora não fosse uma tirana aproveitadora que só tem interesse em sugar a fortuna de Beatriz.- Miguel colocou a amiga atrás de si, como forma de preservá-la do veneno da tia.  - Olha só quem está colocando as manguinhas de fora. Quem você pensa que é para me dirigir a palavra? Não passa de um morto de fome, um dom ninguém, um entregador sujo que não vale o próprio pão que come.- - Chega!- Esbravejou Beatriz, dando um passo para frente. Ficou a poucos centímetros de distância de sua tia, mostrando-se imbatível, e não se deixaria intimidar pelos poderes que Doroteia exercia sobre ela.- Não admito que ofenda o meu amigo. Miguel vale muito mais do que você como ser humano. Ele é um homem honesto, esforçado e íntegro, e ao contrário da senhora, titia, corre atrás das próprias conquistas, ao invés de sugar o que é dos outros como um maldito piolho gordo.- - Menina ingrata, já estou cheia de sua impertinência. Sou sua tutora legal por mais um ano e você deve obediência a mim. Então, sua c.a.d.e.l.a desavergonhada, ou faz o que digo a partir de agora, ou coloco o seu cúmplice e você na cadeia por roubo.- - Miguel, é melhor ir embora.- Falou Beatriz. - Não vou te deixar sozinha com esse monstro. Estou disposto a pagar pelo que for se necessário.- Miguel segurou a mão de Beatriz como prova de solidariedade. - Dignidade. É tudo o que um esfarrapado, pobretão, morto de fome, Dom ninguém como você, meu rapaz, tem.- - E é tudo o que você não tem, Doroteia.- Rebateu Beatriz.- Miguel tem um futuro promissor pela frente, e quanto a você, tudo o que vai restar, é um ateliê caindo aos pedaços por sua má administração. Assim que completar a maioridade eu vou embora dessa casa, e sem os meus talentos você volta a ser o que era… Qual é mesmo a palavra que tanto gosta de usar? Deixe-me ver.- Beatriz tamborilou os dedos no queixo, fingindo pensar.- Ah, lembrei, você voltará a ser o que era sem mim, uma dom ninguém.- - Desaforada.- Doroteia ergueu a mão fazendo menção de agredir Beatriz.  - Não se atreva a baixar essa mão, porque eu não vou permitir.- Miguel também deu um passo à frente, aproximando-se de forma intimidadora. - Vejo que a quadrilha se uniu contra mim.- Ela se voltou para a sua sobrinha, segurando uma das mechas do cabelo escuro que caia pelo ombro estreito.- Deveria expulsá-la dessa casa por sua falta de respeito, ou talvez mandá-la para a cadeia, que é o que melhor lhe cabe. O que acha de adiantar a sua partida?- Doroteia provocou Beatriz, se sentindo satisfeita por retomar o controle da situação.  - Sim, faça isso, e todo o meu dinheiro que ainda restou de suas extravagâncias irá embora comigo. Se eu for para cadeia, ficará melhor seguro no banco do que em suas mãos sujas, até que eu faça vinte e um anos, ou ficará com o banco permanentemente, caso eu seja condenada á morte. E se me mandar embora agora, irei para a casa de Marie e falaremos com o juiz para que ela seja a minha nova tutora. Ou seja, titia querida, a senhora perde nas duas ocasiões.  Doroteia se manteve em silêncio, fitando a sobrinha com seu olhar gélido. Sucumbiu à vontade de pular no pescoço magrelo da jovem e torcê-lo como um galho de árvore. Respirou fundo, tentando encontrar a inteligência emocional que sempre foi o seu forte.  - Muito bem, tem razão. Vejo que não é tão tola quanto pensei. Não posso prejudicá-la, mas nada impede que não faça nada contra o seu amiguinho.- Doroteia olhou friamente para Miguel com uma expressão inescrutável. - Na verdade, impede sim, titia.- Beatriz falava o “ titia” com a voz carregada de ironia, esperando desestabilizar a mulher mais velha com aquela atitude.- Qualquer acusação contra o Miguel, eu irei pessoalmente admitir a culpa e tudo o que eu falei anteriormente vai acontecer.-  - Eu vou acabar com você. Está se achando muito imbatível, não é sua f.r.a.n.g.u.i.n.h.a? Vou colocá-la em seu devido lugar.- - Pelo visto, madame, foi a sua sobrinha quem a colocou em seu devido lugar.- Disse Miguel, cruzando os braços de uma forma arrogante e empertigando a coluna, adquirindo uma postura de aristocrata prepotente.  - Tudo bem, tudo bem. Manteremos essa noite em segredo, até mesmo porque, “querida sobrinha”, o conde de Durkham é noivo de Lady Luciana King-Lenox, a filha de Bristol, e jamais deixaria a filha de um conde por uma vendedora de sapatos. Levando em conta que o meu ateliê de certa forma está associado a você, não deixarei que suas libertinagens sejam de conhecimento público.- Beatriz sentiu como se o ar cortasse sua garganta. Ela perdeu não só o brilho no olhar, como também a ferocidade e coragem que vierem de repente e a faziam enfrentar Doroteia. A garota estava devastada, todo aquele magnetismo que provou ao lado de Alex era falso, já que para o homem não significou nada além de uma despedida de solteiro, e se não fosse por Miguel que ainda a amparava, teria caído prontamente no chão. - Ah, vejo que não sabia. Os homens são tão imprevisíveis, não é mesmo? Uma hora estão morrendo de amores, outra hora te reduzem a nada.- Doroteia continuou a falar. Suas palavras eram como os ventos cortantes de Júpiter, e talvez Beatriz estivesse mesmo quebrada, mas Miguel não deixaria aquilo barato.  - Você que tentou reduzir Beatriz a nada, mas ela é bem maior do que tudo isso. Minha amiga não é apenas uma vendedora de sapatos. Ela faz os desenhos mais incríveis e costura os vestidos mais lindos de toda a Inglaterra. A senhora tem inveja, Doroteia. Inveja da juventude, do talento e de tudo o que representa a pessoa que Beatriz é. A sua sobrinha é tudo o que a senhora jamais conseguirá ser.- - Seu moleque atrevido… Eu vou te fazer engolir essas palavras e pode apostar que não vou descansar até causar todo o sofrimento possível em vocês dois.-  - Já falou o suficiente, madame. Agora deixe a minha amiga descansar.- Rosnou Miguel. - Está me expulsando de um dos cômodos da minha casa? Seu vermezinho inútil.-  Cansado de discutir, o rapaz segurou a mais velha por um de seus braços, arrastando-a porta a fora. Ela se debateu durante o percurso, mas de nada adiantou. Socou a porta por muitas vezes, praguejado e ameaçando aos dois. - A duquesa de Birmingham virá pelos seus sapatos e quero ver a desculpa que dará por não tê-los. Não preciso fazer muito para destruir vocês dois, porque já colocaram a corda nos próprios pescoços ao fingirem ser o que jamais serão. Vocês não são nada!- Gritou Doroteia, fazendo o barulho de um javali relinchando, antes de finalmente ir embora.  - Deite e durma, Bea. Amanhã será um novo dia.- Miguel beijou o topo da cabeça de Beatriz e a conduziu até sua cama, deitando-a por entre os lençóis e a cobrindo.
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