Capítulo 1
Durham-Inglaterra
1858
-Essa coisinha magra e fe.i.a é a filha do meu irmão?- Perguntou Doroteia, avaliando Beatriz dos pés a cabeça.
A garotinha baixa e magra de dez anos de idade estava parada com suas malas no meio da modesta sala de estar. O vestido de seda rosa batia em seus joelhos, e brincos de ouro e pérola adornavam sua orelha. Os cabelos escuros estavam presos com uma fita rosa, e os sapatos aveludados eram de um tom mais claro que o vestido.
-Com a morte de seu irmão, a senhora torna-se a única tutora legal da menina, já que não possuem outro parente próximo.- Explicou a assistente social.
- Tantos anos afastado de nós e é isso que deixa quando morre… Uma grande despesa.-
- Pelo contrário, madame. O seu irmão era absurdamente rico. Deixou os estudos de Beatriz pagos ainda em vida, e um belo dote para quando ela se casar.-
- Rico?- Doroteia tamborilou os dedos no queixo.- Quão rico era o meu irmão?-
- Mais do que a senhora pode imaginar. Não terá que gastar um vintém com a menina.-
- E eu estou precisando de uma ajudante para o meu ateliê, ela será muito útil… Sabe, eu sou uma modista muito ocupada. Perco tanto tempo costurando as roupas das minhas clientes que vou precisar de ajuda para os atendimentos, principalmente na venda de sapatos.-
- Não vejo problema na menina ajudar a senhora, mas é imprescindível que ela termine os estudos. Farei uma visita de quinze em quinze dias para garantir que isto está sendo cumprido.-
- Claro, claro. Jamais negaria estudos a ninguém… A minha Filipa também tem uma preceptora, mas pensando bem… Acho que irei deixar as duas estudando juntas, já que têm a mesma idade.-
- Faça como preferir, mas a senhorita Beatriz precisa terminar os estudos.- Pontuou a assistente, acariciando os cabelos da menina que continuava cabisbaixa.- Deixarei você com sua tia, querida. Daqui a quinze dias voltarei para visitá-la.-
- Sim, senhora. Muito obrigada.- Falou Beatriz, fazendo uma leve mesura.
Doroteia assistiu a mulher corpulenta deixar a sua casa, e observou a sua sobrinha como um tubarão prestes a atacar a presa. Beatriz estava claramente amedrontada com a tia, principalmente porque sabia que a sua presença era indesejada. Mas com a fortuna que Doroteia teria em mãos até a fedelha sem graça cumprir vinte e um anos… Ah, onze anos seriam o bastante para que ela se tornasse uma mulher rica.
-Venha, meu bem. A titia te levará até o seu quarto para que você arrume as suas coisas, descanse, e depois venha conhecer o ateliê.-
- Quando começo a trabalhar, senhora?- Perguntou Beatriz.
- Depois do almoço, querida.-
- Tia Doroteia, eu não sei nada sobre vender sapatos. A senhora vai me ensinar?-
- Claro que sim, sua tolinha adorável. Mas trate de aprender rápido, não tenho paciência com meninas burras.-
- Sim, senhora.-
- Você é um anjo… Agora suba com suas coisas. O seu quarto é o último do corredor.-
A menina teve um pouco de dificuldade para subir um lance inteiro de escada com todas as suas bagagens, mas no final, ela conseguiu acomodar os seus pertences no quarto indicado pela tia. O cômodo aparentemente não recebia ninguém há muito tempo. Ele ficava posicionado em uma direção pouco favorável pelas luzes solares, o que o fazia ser pouco iluminado, e os papéis de parede estavam velhos e gastos, mas Beatriz nunca se importou com as decorações que eram seguidas á risca em sua antiga casa. Havia uma cama de solteiro com os lençóis surrados, uma pequena mesinha de cabeceira, e um guarda-roupa. Ela tentou arrumar suas coisas da mesma forma em que ficavam na antiga residência, e talvez até tenha funcionado… Exceto que aquela não era a sua casa.
E aquela também não era a sua família.
…
-Arrume todos os sapatos nas prateleiras.- Ordenou Doroteia, apontando para as caixas de sapatos espalhadas no canto do ateliê.- Procure mostrar sempre os mais caros, nos livros que ficam guardados na escrivaninha do meu escritório têm os preços e as descrições deles, procure não se confundir.-
- Sim, senhora.-
- O que está esperando? Ande logo! Não gosto de meninas preguiçosas.- Doroteia bateu duas palmas, apressando a sobrinha.
Beatriz caminhou depressa na direção da grande prateleira, ficando de joelhos para limpar os sapatos e arrumá-los como havia mandado Doroteia.
A mulher mais velha inspecionou de perto toda a arrumação, caminhando em círculos no espaço vazio do local. Poucos minutos depois, a porta sinalizou que alguém estava adentrando no ateliê.
-Lady Clarice! É um prazer revê-la!- Falou Doroteia, fazendo uma mesura delicada.
- Vim encomendar mais dois vestidos de festa. Parece que a maioria das pessoas la de casa decidiram nascer em agosto.- Brincou Clarice.
- Venha, vamos escolher os modelos!-
- E quem é aquela garotinha?-
- Ah, é a minha ajudante. Ela está organizando os sapatos, chegaram modelos lindos, gostaria de ver?-
- Bom.. Não adianta de muita coisa comprar vestidos novos e não comprar sapatos novos, não é mesmo?-
- É o que eu sempre digo, condessa.- Doroteia voltou-se para a sobrinha, que estava agachada e segurando mais um par com as duas mãos.- Menina, não demore muito com isso, não vamos deixar Lady Clarice esperando.-
Beatriz aquiesceu, tentando agilizar o processo de limpar e guardar os sapatos.
Minutos depois da condessa ter escolhido os vestidos de gala, ela sentou em uma das poltronas para esperar que a jovem ajudante trouxesse os calçados indicados por Doroteia. O primeiro foi um lindo sapato vermelho, adornado com pedras de rubi. Combinaria perfeitamente com um dos vestidos da jovem matrona, e o preço deles se equivalia ao de várias residências por ali cerca. Beatriz se perguntou como sua tia conseguiu obter peças tão caras, já que nem de longe possuía tanto dinheiro.
-Com certeza levarei esses… A cor com certeza me realçou.-
- Ficaram muito bonitos, milady. Deixou sua pele ainda mais alva e delicada.- Falou Beatriz.
- Que mocinha adorável, Doroteia.- Clarice levou uma de suas mãos a acariciar a maçã do rosto da menina.- Embrulhe-os, jovenzinha. E depois volte para me mostrar os outros. Preciso escolher mais dois.-
Beatriz aquiesceu, fazendo de imediato o que a mulher mandou. O sorriso que Doroteia esboçou foi tão largo, que era capaz de saltar de seu próprio rosto.
…
10 anos depois
-São sapatos de cristal, milady. E essas belas pedrinhas são safiras azuis. É um modelo exclusivo, existe apenas um par deles.- Explicou Beatriz, calçando o sapato na mulher.
- Nunca vi uma preciosidade como essa.- Comentou Lady Margareth, a duquesa de Birmingham.
- É porque não existe, vossa graça. Quem melhor do que a senhora para possuí-lo?-
- Você é mesmo muito convincente, minha cara. Irei levá-los.-
- Sim, senhora.- Beatriz fez uma reverência antes de fazer menção em se retirar.
- Ah, não, espere! Guarde-os bem, minha querida. Quando a minha criada pessoal vier buscar o vestido, ela levará o sapato também. Não quero correr o risco de que meus sobrinhos o quebrem, aqueles diabinhos são insaciáveis e passarão duas semanas em minha casa.-
A moça apenas assentiu, seguindo á risca as recomendações da matriarca. Beatriz caminhou até o enorme balcão, anotando a compra em um dos muitos livros contábeis. Com o passar dos anos, Doroteia comprou um espaço no melhor ponto do centro de Durkham, e mandou reformá-lo inteiro. Embora seja tida como ingênua, Beatriz não era i****a. Ela sabia que tanto o ateliê quanto a nova casa de Doroteia tinham sido comprados com a fortuna deixada por seu pai, e garota rezava para que daqui a um ano, quando ela finalmente fizesse 21 anos e atingisse a maioridade, ao menos sobrasse algum dinheiro para que pudesse comprar a sua própria casa e fazer a sua vida bem longe dali.
No final do dia, quando a loja estava praticamente vazia, e Beatriz aproveitava para limpar o chão, uma visita inesperada adentrou o ateliê. Um homem de vestes elegantes irrompeu o ambiente com um convite em mãos, analisando a vendedora de sapatos de cima a baixo, com o seu melhor olhar de desdém.
-Madame Doroteia e família estão sendo convidadas a comparecer ao baile de 29º aniversário do conde de Durkham, que será realizado no dia 28 de novembro.- O homem esticou a mão na direção de Beatriz, que ainda estarrecida, o segurou.
A garota continuava boquiaberta com a notícia quando o criado pessoal do conde deixou o estabelecimento. Há muitos anos Doroteia prestava serviços para a família de Durkham, mas Beatriz jamais imaginou que o homem seria tão bondoso a ponto de convidar quatro mulheres sem berço e título algum para a sua festa de aniversário.
-Por que está com essa cara de paspalha? Termine de limpar o chão e comece a costurar os vestidos dos nossos clientes.- Falou Doroteia, parecendo irritada.
Com o passar dos anos, Beatriz não só mostrou uma habilidade especial para a venda de sapatos. Ela desenhava magnificamente, e costurava tão bem quanto desenhava. Doroteia não demorou muito a passar quase todos os serviços para a sobrinha, principalmente os mais trabalhosos e sofisticados.
-Tia Doroteia, a senhora não vai acreditar.-
- Olhe aqui, Beatriz, se me fizer perder tempo com suas tolices…-
- Fomos convidadas para o baile de 29º aniversário do conde de Durkham.- Sem demora, a moça entregou o convite para a sua tia, que ficou tão pasma quanto.
- Por Deus… Eu irei frequentar uma festa com a nobreza… Beatriz, minha querida, rápido… Prepare os nossos vestidos para o baile. Rosa para Filipa, verde para Katherine e vermelho para mim.-
- Posso escolher a cor do meu vestido, tia?-
- Perdão?- Doroteia piscou os olhos confusa.
- Se eu posso escolher a cor do vestido que vou ao baile.-
Doroteia gargalhou, demorando mais do que um minuto para retomar o fôlego.
-Que menina sonhadora… Quem disse que você vai?-
- Eu também sou da família. O conde deixou bem claro… Madame Doroteia e família.-
- Beatriz, você é uma criada. Acha mesmo que submeteria a aristocracia á sua presença tão… Modesta?-
- Tia, por favor. Eu nunca fui a um baile. Eu sempre faço tudo o que a senhora me pede e sem reclamar, o que custa ao menos uma vez deixar com que eu…-
- Todos esse anos eu te vesti, te alimentei e permiti que terminasse os seus estudos, mesmo sabendo que não teria nenhuma utilidade para você. O mínimo que podia fazer para me agradecer é ajudar sem reclamar.-
- Não foi nenhuma caridade o que fez, Doroteia. O meu pai pagou pelos meus estudos, pelas minhas roupas e pela minha comida, inclusive você foi muito bem recompensada com esse ateliê novo e com a casa nova para cuidar de mim.-
- Garota ingrata! Eu te tratei como uma filha e é assim que você retribui?-
- Eu sempre te obedeci em tudo, Doroteia. Desenho e costuro os vestidos, limpo o chão, arrumo os sapatos, vendo os sapatos… O único que quero em toda a minha vida é poder ir a um baile.- A essa altura, os olhos de Beatriz ardiam tanto que era impossível as lágrimas não escaparem.
Doroteia respirou fundo, tentando manter a calma. Ela não podia correr o risco de perder a sua galinha dos ovos de ouro. Se Beatriz se casasse com algum cavalheiro, toda a sua fortuna iria embora com ela. O baile era perigoso demais para o futuro de Doroteia e suas filhas.
-Eu deveria castigá-la severamente pela sua audácia, menina, mas sou uma mulher cristã e muito caridosa. Costure os vestidos das meninas e o meu, depois faça o seu, se terminar os quatro a tempo… Bem, não poderei proibi-la.-
- Muito obrigada, tia! Eu prometo que vou costurar todos a tempo, e ficarão lindos.- Beatriz correu na direção de Doroteia, envolvendo-a em um forte abraço.
A mais velha fez uma careta ao perceber o contato físico com a sobrinha, deixando leves tapinhas nas costas da garota.
-Não perca mais tempo. Trate de começar com as costuras.- Doroteia tocou a ponta do nariz de Beatriz com o indicador.
- Irei começar agora mesmo. Tenho vários desenhos novos para vestidos de baile, tenho certeza que a senhora os amará.- A garota correu empolgada na direção em que ficava o depósito dos sapatos, local em que costumava usar para ter suas inspirações e criar seus modelos.
- Pobre criança burra… Se acha mesmo que vou deixar que vá a essa festa… Ah, está muito enganada.- Sussurrou Doroteia para si mesma.
…
-Aí está você! Sabia que não tinha parado de trabalhar ainda.- Falou Miguel, amigo de Beatriz, sentando-se em um dos bancos que tinha no sótão da casa.
O sótão era a oficina de Beatriz. Era lá que ela fazia suas costuras e guardava os seus belos desenhos quando não estava trabalhando no ateliê. Embora fosse necessário utilizar a luz bruxuleante de duas velas, já que a claridade do dia não surtia efeito algum naquele cômodo escondido, Beatriz estava acostumada a usar pouca luz para executar o seu trabalho.
-Como se eu parasse de trabalhar…- Ela esticou o canto da boca em um sorriso.- E você? Já viu como vai fazer para começar a universidade de direito?-
- Ah, minha amiga… Já me conformei que ficarei o resto da minha vida na venda de minha mãe. Ao menos tenho um lugar para chamar de meu.-
- Olhe, Miguel. Esses são os desenhos que fiz dos vestidos do baile que irei com minha tia e minhas primas. Tia Doroteia me permitiu ir ao baile se eu terminasse tudo a tempo, e eu quero que você me acompanhe.-
- E-Eu? Em um baile com a nobreza?-
- Ora… Eu também não sou nenhuma condessa.-
- Você é mesmo uma artista.- Comentou Miguel, analisando os desenhos.
- Ao menos eu poderei ter uma noite especial, nem que seja uma vez na vida… Já você, eu quero que realize os seus sonhos.- Beatriz levou suas mãos ao fecho do colar que levava em seu pescoço.
Era uma peça antiga e muito valiosa. O colar tinha ao todo mais ou menos 15 gramas de ouro 18 quilates, e vinte pedras de diamantes ne.g.r.o.s estavam cravejadas no centro. Beatriz colocou o colar nas mãos de seu amigo, que ainda parecia não saber esboçar uma reação.
-O colar de sua mãe.-
- E agora é seu. Quero que o venda e que pague os seus estudos.-
- Eu não posso aceitar, ele é a garantia do seu futuro…-
- Miguel, eu não preciso de muito para viver. Posso comprar um lugar para mim com o dinheiro que venho guardando do ateliê, fora que ainda tenho o meu dote.-
- Elas vão torrar todo o seu dinheiro se continuar aqui.-
- Eu quero que faça isso por nós dois. Ficarei imensamente feliz se ao menos puder ajudar o meu único amigo.-
- E que sorte desse amigo.- Miguel levou os seus dois braços ao redor do corpo de Beatriz, envolvendo-a em um abraço terno.- Eu te amo como se você fosse do meu próprio sangue. Muito obrigado por isso, Bea.-
- Eu também te amo, meu amigo.-
- Já que você vai realizar o meu maior sonho, quero ajudá-la com o seu. Me diga o que preciso fazer para que termine logo esses vestidos e possa ter a sua noite de princesa.-
- Noite de princesa?- Beatriz riu com o comentário.
- Um daqueles aristocratas vai se apaixonar por você e salvá-la de todo esse inferno.-
- Ora, Miguel… De onde tirou isso? Nenhum nobre cavalheiro vai olhar para uma simples vendedora de sapatos. Não é como se estivéssemos em um livro de romance, no qual um homem lindo, inteligente e muito rico se casa com uma… Uma ninguém.-
- Pare de se desmerecer, Beatriz. Muitas garotas dariam tudo para ser você. Suas primas mesmo morrem de inveja da sua beleza, e da sua aptidão para fazer tudo.-
- Isso não é verdade.-
- É verdade, sim. Por mais que andem tão bem enfeitadas, nem Filipa e nem Katherine têm a mínima chance contra você.-
- Eu quero muito que elas se casem com um aristocrata bem rico, e que possam me libertar para viver a minha vida em paz.-
- Imagine só se o conde de Durkham se apaixona por você.-
- Ah, Miguel. Tire isso da cabeça. Venha, vamos voltar para a realidade. Vá vender o colar, resolva a sua vida, enquanto isso, eu vou adiantar o meu trabalho para poder ir no baile.-
- Assim que eu resolver esses pormenores volto para te ajudar.-
Beatriz chegou a abrir a boca para dizer que não precisava, mas Miguel já tinha corrido para longe. Ele era o único homem que Doroteia permitia que chegasse perto dela, já que Miguel era apenas um simples entregador da venda de sua mãe. Desde quando eram crianças e Beatriz chegou à cidade para morar com a tia e as primas, Miguel foi seu único amigo. Com muito sacrifício a sua mãe conseguiu pagar os seus estudos em Eton, um famoso colégio em Berkshire, na esperança de que um dia conseguisse juntar dinheiro o suficiente para mandar o seu único filho para Oxford ou Cambridge.
Beatriz se sentía realizada apenas por imaginar o sorriso de Marie quando soubesse que todos os seus esforços valeram a pena.
…
-Por que diabos Marie mandou tanto leite? Não estou criando nenhum bezerro.- Reclamou Doroteia, quando estava sentada à mesa da sala de jantar com suas filhas e sobrinha.
- Ah, vai ver sobrou muito leite e pela amizade que tem com Beatriz ela quis nos mandar.- Opinou Katherine.
- Não preciso da caridade de ninguém, muito menos de uma simples dona de venda. Se Marie não fosse a melhor parteira dessa região, eu já a teria colocado em seu lugar há muito tempo. Ela tem a esperança que uma de vocês se case com aquele filho dela.-
- O Miguel é um excelente rapaz, tia Doroteia. É inteligente, perseverante, e claro… Muito bonito.- Falou Beatriz, na defesa do amigo.
- E não tem aonde cair morto. Não passa de um Dom ninguém. Jamais permitiria que minhas filhas se casassem com alguém como ele. E quanto a você, Beatriz, enquanto estiver sob minha responsabilidade não vai se engraçar com um tipo como aqueles.-
- Miguel é como se fosse um irmão, tia. E se um dia encontrar um rapaz como ele para casar, terei a sorte grande.-
- Você pensa como uma camponesa estúpida.- Provocou Filipa.- Mas não podemos esperar muito de alguém tão sem classe. Tem certeza que vai levá-la ao baile conosco, mamãe?-
- Prometi a Beatriz que se ela terminasse todos os vestidos a tempo, iria conosco á festa.-
- Ora, mamãe, reconsidere. Não quero que ela me envergonhe. E sabe de mais uma coisa? Acho que deve proibir Beatriz de se sentar à mesa conosco. É, afinal, ela é uma criada. Deveria comer com a Jane lá na cozinha.-
- Ela não é uma criada, Filipa, ela é nossa prima. O pai dela é irmão da mamãe.- Falou Katherine.
- Katherine, você não entende nada. Preocupe-se apenas em comer menos, se continuar assim, morrerá solteirona. Nenhum homem gosta de mulher gorda.-
- O seu corpo é muito bonito, Katherine.- Beatriz elogiou a prima, que apenas a lançou um sorriso tímido.
- Não se intrometa na conversa de seus patrões. Você só se senta à mesa por caridade da mamãe.- Falou Filipa.
- Ora, Filipa, vá ao dia.bo!- Beatriz explodiu.
- Beatriz!- Falou Doroteia, horrorizada.- Que modos são esses? Infelizmente eu vou ter que reconsiderar a sua presença nos jantares.-
- Tia, é a sua filha que está agredindo todo mundo. Por que não a castiga também?-
- Eu sou a dona dessa casa, e você, sua pequena insolente, não me diz o que devo fazer. Se quiser terminar o jantar, vá comer com a Jane na cozinha.-
Educadamente Beatriz ficou de pé, caminhando para fora da sala de jantar. Ela pensou em mil e uma respostas que gostaria de destinar a tia, mas infelizmente Doroteia era sua tutora legal por mais um ano, e poderia aplicar nela o castigo que achasse prudente. Beatriz também não queria correr o risco de não poder ir mais ao baile, então teria de engolir cada sapo que lhe fosse destinado.
Mais tarde, naquela mesma noite, enquanto continuava com suas costuras, Beatriz em um intervalo e outro observava o céu estrelado, imaginando como poderia ter sido a sua vida, se o seu pai estivesse vivo.
…
Os dias praticamente voaram até o esperado baile do conde. Como o prometido, Beatriz conseguiu deixar todos os vestidos prontos bem a tempo, economizando até mesmo suas horas de sono para que pudesse comparecer à festa. Chegada à noite do dia 28, Doroteia já estava prestes a partir com as filhas quando ouviu a voz de sua sobrinha.
-Estou pronta, minha tia. Podemos partir.- Falou Beatriz, ainda descendo as escadas.- Olhe, eu sabia que esse colar de minha mãe ficaria perfeito com um vestido azul.-
Doroteia engoliu em seco ao se deparar com a beleza de sua sobrinha. Beatriz estava simplesmente esplendorosa em seu vestido de seda azul, com delicados toques de renda branca ao redor do contorno generoso do b***o, e das linhas exuberantes do quadril. O seu pescoço esguio levava um colar de ouro 18 quilates, cravejado com dez pedras de diamantes – uma das pouquíssimas joias que lhe restou de sua mãe-. Seus pés estavam cobertos por sapatos da mesma cor do vestido, que devido aos cuidados de Beatriz pareciam sempre novos.
-Mamãe, ela não vai conosco!- Gritou Filipa.
- Vou sim, porque sua mãe prometeu.-
- Sim, eu prometi.- Falou Doroteia, antes que se iniciasse uma discussão.- Prometi que iria se terminasse todos os figurinos a tempo, e você não terminou. Não deixarei que se apresente diante do conde com esses trapos velhos… E olhe para os seus sapatos, estão ridículos.-
Era claramente mentira, e Doroteia estava ciente disso. O vestido estava perfeito, assim como todos os modelos feitos por sua sobrinha. A matrona precisava arranjar desculpas para evitar a ida de Beatriz á festa, e se prenderia aos mínimos detalhes, por mais que não existissem. Não poderia correr o risco de que aquela jovem tivesse pretendentes.
-Eu passei noites em claro terminando esses vestidos, tia. Não tem nada de errado com esse modelo e eu tenho certeza que venderia aos montes se…-
- Estamos atrasadas e não perderei mais tempo com você, minha querida. Infelizmente não cumpriu com sua parte no trato.-
- Mas não é justo, mamãe. O vestido dela está lindo, é até parecido com o que fez para mim.- Protestou Katherine, levando um beliscão de Filipa.
Katherine urrou de dor, dando, logo depois, um forte pisão no pé de sua irmã mais velha.
-Eu sou a modista aqui, Katherine. Sou eu quem entendo de moda.- Rebateu Doroteia.
- Mas o vestido dela está perfeito. Garanto que não pode apontar um defeito.- Katherine cruzou os braços.
Maldosamente Doroteia puxou uma das rendas da parte superior do vestido, rasgando-a junto com uma pequena parte do tecido.
-Agora tem um defeito. Satisfeita?- Doroteia se virou para a filha mais jovem.
Katherine ainda estava boquiaberta pela atitude agressiva de sua mãe. Já Beatriz, embora tenha ficado paralisada pelo choque, teve seus dois olhos verdes-esmeralda quase transbordando em lágrimas.
-Agora vamos! Ou ficará aqui fazendo companhia a ela.- Ordenou Doroteia.
- Mas o vestido não tinha defeito algum! Foi a senhora que o rasgou.- Insistiu Katherine, sendo puxada pela própria mãe para fora de casa por uma de suas orelhas.
Beatriz ouviu apenas o barulho da porta sendo trancada antes de deixar o corpo escorregar no chão e se debulhar em lágrimas. Os soluços e as lamentações de Beatriz não duraram muito tempo, pois dez minutos após a partida da carruagem alugada por Doroteia, chega Miguel a galope em seu cavalo, chamando por sua amiga. Beatriz subiu correndo um lance de escadas, chegando até a varanda de seu quarto para poder falar melhor com Miguel.
-Tia Doroteia rasgou o meu vestido e me trancou aqui dentro. Não poderei ir ao baile, Miguel.- Beatriz lutou para que a sua voz não falhasse, mas não teve como evitar que ela saísse bastante embargada devido a vontade absurda de chorar.
- Costure o seu vestido, Bea, eu vou te tirar daí e nós vamos juntos ao baile.-
- Mas…-
- Não tem “ mas”. Você vai ter a sua noite especial, custe o que custar. Ainda sabe escalar árvores?- Com um sorriso malicioso, Miguel pulou de seu cavalo.- Eu vou te ajudar.