Capitão Nascimento..
Nasci pobre, no meio do morro da Charque, como tantos outros em São Paulo. Meu pai sempre quis mais pra mim e lutou pra nos tirar de lá. Ele me levou pro asfalto, me deu uma chance de ser alguém na vida, alguém de respeito. Eu era inteligente, mais do que o normal pra um garoto que foi alfabetizado numa escola da comunidade. Minha mãe era professora, e isso fez toda a diferença. Consegui uma bolsa na escola mais prestigiada do asfalto. Era um privilégio que poucos do morro conseguiam.
Meu pai batalhou muito. Pagou cursos de inglês, espanhol, informática, e até me arranjou aulas de judô e karatê em projetos sociais. Eu tinha tudo que uma criança precisa para crescer com dignidade. Me formei com honras e entrei pro exército. Foi difícil, precisei ralar muito porque era jovem, mas subi rápido. De soldado a capitão em dois anos. O primeiro a subir tão rápido. Mas eu lutei como ninguém. Cada posto, cada promoção, tudo foi na base do esforço, do suor, da disciplina. Eu me dediquei de corpo e alma àquilo.
Meu coroa sentia orgulho..
Por muito tempo, eu fui o orgulho do meu pai. Fui o filho dos olhos dele, o cara que tava subindo na vida. Nunca bebi, nunca fumei, e me casei cedo. Mas o meu coroa... eu não sabia de tudo. Ele fingiu ser quem não era.. Ele só não sabia que, do mesmo jeito que lutei pra dar orgulho, lutei pra que ele sentisse culpa e vergonha de mim. E eu consegui.
Hoje, eu sou só mais um traficante que ele prefere ver morto. Por quê? Isso é uma história pra outro momento. Mas não é uma história bonita. E minha mãe... ela morreu. E não importa o que aconteça, não falo sobre isso.
Se eu me casei? Casei, uma vez. E é uma história tensa, mas não me faz derramar uma lágrima.
O nome dela era Maria Rita. No começo, eu achei que tinha encontrado alguém que entendesse o meu mundo. Alguém que soubesse que eu estava construindo a minha carreira, um futuro decente no asfalto. Achei que ela entenderia o que eu estava fazendo. Mas eu estava errado. Maria Rita queria um homem presente. Queria alguém que estivesse em casa, que dividisse os sonhos e as dores do dia a dia. Eu, por outro lado, estava sempre longe, imerso no trabalho, nas missões, nas batalhas que escolhi lutar. Ela dizia que me amava. Hoje, anos depois, acho que ela nunca me amou de verdade.
Mas a gente ia levando o casamento.. ia levando, como se leva tantas coisas..
Foi numa noite qualquer que tudo desmoronou. Voltei pra casa mais cedo, depois de uma missão. O silêncio .. a casa estava em silêncio, mas havia algo no ar. Um cheiro de perfume que não era o dela, um sussurro abafado vindo do quarto. Caminhei até lá, pé ante pé, como aprendi nas operações. Quando abri a porta, lá estava ela. Maria Rita, nos braços de outro.
O que aconteceu depois foi puro instinto. Minha mão foi direto pro coldre. Não houve tempo pra pensar, só pra agir. O cara me olhou com pavor, mas não teve chance de reação. Um tiro. Só um tiro, seco, e o corpo dele caiu no chão, sem vida.
Maria Rita gritou, mas eu ma.l ouvi. Minha atenção foi pra outra coisa. Havia uma menina naquela casa. Isabel. A enteada que eu nunca conheci de verdade. Ela era filha de Maria Rita, de uma gravidez na adolescência, a menina sempre morou com o pai, nunca estava presente.. não a vi nem no dia do casamento,, Nossas vidas nunca se cruzaram de verdade. Ela era um fantasma na minha realidade, uma presença à margem… Mas naquela noite, Maria Rita tran.sava com o amante bem ao lado do quarto onde a filha estava.
Depois do tiro, ouvi um choro tímido, vindo do quarto ao lado. Isabel estava lá, dormindo até que os tiros a acordaram. Entrei no quarto e a vi encolhida num canto da cama, os olhos arregalados de medo, segurando um ursinho como se aquilo pudesse protegê-la. O olhar dela me atravessou. Não era só medo. Era como se ela visse quem eu realmente era. E naquele momento, eu soube que não havia lugar pra ela na minha vida.
Isabel era inocente, não tinha culpa do que aconteceu entre mim e Maria Rita.
Sem dizer nada, peguei Isabel nos braços. Ela não resistiu, mas também não disse uma palavra. O silêncio dela era mais pesado do que qualquer choro. Levei-a até o quartel da polícia mais próximo. Os policiais me conheciam, sabiam quem eu era, eu disse que precisava de uma viatura em casa.. Deixei Isabel lá, ela seria entregue ao pai.. e segui em frente.
Desde então, Isabel desapareceu da minha vida, como uma sombra que se esvai com o tempo. Eu não a procurei, e espero que ela também nunca tenha sentido a necessidade de me procurar. Talvez, com sorte, ela tenha me esquecido. Esquecido do que viu naquela noite.
Hoje, aqui no Morro Vai Quem Quer, as coisas são diferentes. Não há espaço pra lembranças, pra laços que possam me enfraquecer. Isabel foi uma sombra que eu apaguei. Não me orgulho disso, mas também não me arrependo. Era o que precisava ser feito.
Não fui preso. Nesse país, a justiça é uma m***a, e eu, mais do que ninguém, sabia como as coisas funcionam. Quando os policiais chegaram, eles viram o corpo estendido no chão e ouviram a história que eu contei. Para eles, o caso estava claro: um assaltante que invadiu a casa e tentou violentar Maria Rita. Um cenário perfeito para justificar o que eu fiz.
Eu sabia que a história não era essa. A verdade é que aquele desgraçado não era um simples assaltante, e Maria Rita não era uma vítima inocente. Ele era o amante dela, o homem com quem ela decidiu se vingar de mim. Vingança porque eu estava sempre ausente, sempre mergulhado no trabalho. Mas isso não importava para a polícia. Eles não faziam muitas perguntas quando se tratava de um oficial como eu, alguém que sempre esteve do lado certo da lei. E assim, o caso foi arquivado como mais um episódio de violência urbana.
Depois disso, Maria Rita continuou a me trair, mesmo depois de todo o teatro que ela fez para a polícia. A verdade é que ela nunca amou aquele cara. Não era amor, nunca foi. Era vingança, pura e simples. Ela queria me machucar, queria me fazer sentir o que ela sentia quando eu a deixava sozinha, noite após noite, sem uma palavra de carinho, sem um gesto de afeto. Ela não conseguiu, eu não a amava..
Não fui um bom marido, e não vou fingir que fui. Eu estava casado com o meu trabalho, e Maria Rita era apenas uma parte da vida que eu deixava de lado quando vestia o uniforme. Eu fui fiel, sim, mas fidelidade não basta quando o que você oferece ao outro é só ausência. O se.xo com ela? Sempre foi uma mer.da. Não havia paixão, não havia desejo. Era como cumprir uma obrigação, algo que precisava ser feito para manter as aparências. Talvez, se eu tivesse dado a ela mais do que minha fidelidade, as coisas tivessem sido diferentes. Mas não foram.
Nos separamos..
Depois que Maria Rita percebeu que eu não ia atrás dela, que não ia implorar pelo perdão ou tentar salvar o que restava do nosso casamento, ela começou a me importunar. Ligava, aparecia de surpresa, sempre com aquela mistura de ódio e desafio. Ela não aceitava que eu pudesse simplesmente seguir em frente, como se nada tivesse acontecido. Mas a verdade é que, para mim, já não havia mais nada a ser feito.
A última gota foi quando ela me deu um ta.pa na cara. Um t**a. Na minha cara, ninguém bate, nunca bateu, nem mesmo naquela época. Quando a mão dela encontrou o meu rosto, algo estalou dentro de mim. A paciência que eu ainda tinha se esvaiu. Sem pensar, eu dei alguns ta.pas nela. Não me orgulho disso, mas também não vou mentir sobre o que aconteceu. Maria Rita ficou ali, machucada, chorando. Aquela foi a última vez que a vi. Ela foi embora, voltou para a casa da mãe dela, e eu? Eu subi o morro, deixei tudo..