— Em nosso... mundo... O seu nome sempre foi Alanea. — Disse Valtrax, olhando por sobre o ombro conforme descia graciosamente uma deformidade de rocha na lateral daquele penhasco, onde o único som além de nossas vozes era o tinir de sua espada presa na lateral do corpo, acima de todo aquele aço da armadura. — Acho que depois de cinco séculos sendo lembrada dele, você acabou se apegando, mesmo tendo um nome diferente em cada novo século.
Ao contrário dele, eu estava praticamente escorregando e deslizando sobre as pedras, silenciosamente o amaldiçoando por escolher descer até o rio pelo caminho mais difícil e íngreme. Todos os xingamentos acabaram ficando presos em minha cabeça à medida em que eu me esforçava para não tropeçar e cair sobre o paredão de pedra dura e lisa. Meus tornozelos torciam-se a cada buraco que eu caía ou a cada pedra tropeçada, por maior que fosse o meu esforço em seguir o grande homem em minha frente, tentando a todo custo não me colocar em perigo pela terceira vez num curto espaço de horas.
— E quanto ao meu reino neste tal mundo? É mesmo tão grandioso quanto você fez parecer?
Valtrax desviou a atenção para o vale abaixo, embora mudasse a sua rota a cada cinco passos, parecia bastante ciente do seu destino. Eu notei como suas costas se arquearam levemente com a pergunta, e, mesmo sem saber muito bem do porquê, acabei pensando em como aquelas costas largas ficariam bonitas com um par de asas. Afastei o pensamento com um leve balançar da cabeça. Era extremamente estranho como o simples escrutínio de seu corpo era capaz de me fazer imaginar coisas que eu jamais imaginaria de uma pessoa comum. Me perguntei se aquelas divagações não poderiam ser fruto daquelas vidas passadas que eu não conseguia me lembrar de terem sido vividas.
— Você é a nossa rainha. A rainha do próprio inferno — esclareceu com a voz num tom grave. — Filha de Lucifer e receptora de Lilith. O pecado da ganância é personificado pela sua existência. É claro que o seu reino é o mais deslumbrante entre todos, com um castelo construído com joias preciosas, localizado no epicentro de todo o nosso mundo.
Quando ele mudou a rota em sua descida pela décima vez, subitamente me ocorreu que ele pudesse estar evitando as pedras mais pontiagudas no rio abaixo, como se previsse que eu pudesse cair mais rápido do que a sua capacidade de percepção, e que aquela fosse a sua forma de evitar que eu morresse pela terceira vez num único dia.
— E como você tem tanta certeza que eu sou a sua rainha? — perguntei, limpando o suor que se acumulava em minha testa. Apesar do sol estar se pondo no horizonte, ele parecia absurdamente forte conforme descíamos pela rocha.— Quero dizer, aparentemente a sua rainha esteve morta por mais do que dezenove anos, que, aparentemente, seria a minha idade neste corpo. Seria fácil se confundir com qualquer humano atravessando portais por aí.
— Nenhum humano atravessa portais por aí — ele retrucou sem suavidade.
— Você sabe muito bem que eu quis dizer que até posso pertencer ao seu... mundo... Mas que talvez não seja algo tão importante quanto uma rainha.
— Quando nossas almas são levadas pelo vento, demoramos muito para achar um destino que seja digno de ser novamente vivido — ele falou, saltando a protuberância da rocha direto para o solo arenoso e seco. Ele me ofereceu as duas mãos erguidas antes de acrescentar: — E eu tenho certeza de quem é porque eu posso ver a sua alma, brilhando como um farol. Isso significa que eu nunca perderia você nem mesmo numa orla de demônios de linhagem pura, assim como sempre soube dos seus passos desde que você escolheu esta vida.
Deixei que ele me pegasse pelas axilas para me puxar pela rocha e colocar no chão, e me senti pateticamente pequena quando encarei o reflexo do sol em seu peitoral da armadura preta. Imaginei se ele não estaria cozinhando embaixo de todo aquele aço impenetrável. Mas também pensei se não havia qualquer tipo de magia para que o clima não pudesse afetá-lo nem mesmo sob o calor do inferno. Isto é, se o inferno fosse verdadeiramente quente quanto se dizia às histórias. Já que eu pouco sabia ou nem mesmo me importara em adquirir conhecimentos sobre aquilo até o presente momento.
— Então quer dizer que os demônios quando morrem podem reencarnar em humanos? — perguntei, estremecendo ao imaginar a criatura que me atacou com tanta impiedade retornando para a terra.
Valtrax negou com a cabeça.
— Você pode. Ninguém além de você.
Um misto de satisfação e medo percorreram o meu sangue, e senti meus batimentos cardíacos se tornarem irregulares.
— E para onde todos vão depois de morrer?
— Somos imortais, majestade. Não morremos sob circunstância alguma. Deve ter visto como o Furshay continuou se mexendo mesmo depois que o cortei ao meio.
Troquei o peso entre os pés e cruzei os braços no que imaginei ser uma pose de contemplação. Valtrax observou o gesto, como se estivesse questionando a si mesmo se realmente havia alguma parte nos meus trejeitos ou em minhas perguntas que pudesse validar sua certeza acerca da minha identidade.
— Então, para onde ele foi? — exigi saber, como se uma informação sobre aquilo realmente fosse me ser útil em algum momento.— O que acontece se eu m***r um de vocês?
Valtrax afastou uma mecha de cabelo e a prendeu atrás da orelha casualmente antes de responder:
— Há o purgatório. É para onde todas as criaturas sobrenaturais vão depois que suas almas são desgarradas do corpo. Nem mesmo eu sou capaz de entrar e sair de lá, foi feita muito antes da terra, e ainda é uma parte pertencente aos seres celestiais, embora haja passagens em nosso mundo que permitem que possamos chegar até lá.
— E me deixe adivinhar... — comecei a dizer, trazendo seu intenso olhar escuro na direção do meu. — Apenas eu posso entrar e sair do purgatório. Ou sempre achei que poderia... até entrar e não sair mais.
Os cantos dos lábios de Valtrax se curvaram levemente para cima, e ele anuiu com a cabeça uma única vez.
— Não imagino o que você poderia estar procurando no Purgatório para se perder nele durante todos os seus cinco séculos de existência, mas se é o que a sua intuição diz... — ele sopesou a possibilidade, mas desfez a expressão debochada, desviando o olhar para o paredão de rocha em minhas costas, onde um espectro de cores laranja e amarelo se refletia na pedra como se ela fosse banhada a ouro. — De qualquer maneira, muitas coisas mudaram desde os últimos oitenta anos desde que você... se foi. Eu nunca soube o motivo... embora soubesse que você estava muito ciente dos demônios menores que tentavam escapar do inferno convertendo os humanos de pouca fé na terra, através de rituais e seitas. Em todos os séculos a história se repetiu... E você nunca confiou em ninguém o suficiente para dizer os seus planos, assim, nós nunca pudemos evitar a sua morte.
Oitenta anos até reencarnar em alguém digno. Foi inevitável me encarar, descer o olhar até o meu corpo de altura mediana e peso considerável para uma pessoa claramente sedentária e com hábitos alimentícios pouco saudáveis. Foi inevitável me questionar sobre os motivos para escolher aquela aparência, aquela vida, independente do quanto toda aquela escolha demorada parecera inútil considerando que não me lembrava de absolutamente nada. Nada que agregasse ao meu título e reino. Seja lá quais fossem minhas motivações espirituais, eu não podia enxergá-las.
— Parece bastante tempo, mesmo para um demônio — mordi a parte interna da minha bochecha.
— Anjo caído — corrigiu ele, erguendo o queixo, em sinal de empoderamento. — Você é algo como um anjo caído. Ou, na melhor das hipóteses, a portadora de uma alma feita por dois seres que nunca se ajoelharam a nenhum Deus.
Ali estava a palavra que eu não conseguia dizer. O nome que tentei chamar naquele momento de sufoco e acabei conjurando Valtrax até ali. Eu sequer conseguia pensar em dize-lo, como se eu houvesse sido programada para descaracterizar sua presença divina. Isso pareceu inflar minha alma com um tipo travesso de deboche. Tudo bem, minha alma já estava condenada ao inferno mesmo. A blasfêmia era o menor de todos os pecados que eu podia imaginar já ter cometido em quinhentos anos.
Eu suspirei, soltando o ar todo de uma vez, como se para aliviar o peso de tantos pensamentos. Estudei ao redor, o rio correndo suave naquele tom marrom-avermelhado, o sol jorrando seus últimos raios para o céu que começava a assumir um tom arroxeado, as vegetações na margem do rio, calmo demais para um inferno. Voltei o meu olhar para Valtrax, que agora estava agachado diante da água, mergulhando o aço preto da espada nas águas escuras.
— Você parece me conhecer há bastante tempo — falei, novamente atraindo o seu olhar. Ele se demorou dessa vez, estudando o meu rosto. — Deve ter sido difícil todas as vezes em que eu... morri. Quero dizer, vendo você parecer bastante empenhando em me proteger e levar de volta hoje. A menos que tenha sido p**o para isso. O que eu duvido ser um trabalho do interesse de um príncipe.
— Eu senti a sua morte acontecer em todas as cinco vezes — falou, e eu jurei ter sentido meu sangue gelar nas veias com aquele tom de voz. Aquela dor flutuando dentro do oceano negrō em seus olhos. Assim que ele piscou, a dor sombria pareceu sumir. — E mesmo que eu prometesse pela minha alma que nunca mais deixaria de saber cada um dos seus passos, que nunca mais permitiria que você se tornasse pó... Eu nunca estive lá para evitar. Em nenhuma das cinco vezes.
— É algum tipo de poder que os demônios possuem? — perguntei, e me senti estúpida ao ver aquela emoção sumindo inteiramente do rosto de Valtrax. Mais uma confirmação para ele de que eu não me lembrava de nenhum destes séculos vividos. — Sentir quando tragédias estão para acontecer.
— Nenhum demônio, anjo caído, ou ser sobrenatural pode sentir qualquer coisa — respondeu, erguendo-se novamente e embainhando a espada limpa. — Nem medo, nem dor, nem tristeza... Apenas o vazio eterno. É uma de nossas muitas punições desde que fomos expulsos do céu.
Refleti por um momento, observando-o semicerrar os olhos na direção leste do rio, procurando por alguma coisa ou alguém. De fato eu não era o burra o bastante para perguntar se estávamos ali para descansar pela descida, pois sabia que de alguma forma teríamos que atravessar aquele rio, talvez em busca de algum portal como aquele que me levara de uma noite sem fim para o alto daquele penhasco, ou qualquer forma de se chegar em nosso destino.
— No entanto, você me sentiu — ponderei.
Valtrax sequer me olhou.
— Senti.
— E por quê?
Ele esfregou a testa naquele ponto que achei estar doendo, mas agora sabendo que ele não sentia dor, o associei a um gesto de impaciência.
— Gostaria que você me respondesse o motivo, sendo a mais poderosa entre nós dois.
Devo ter tentado dar uma risada, mas o som soou mais como um muxoxo.
— Se eu sou mais poderosa do que você... Então eu devo causar medo em muita gente mesmo.
Valtrax me lançou um olhar inexpressivo e penetrante.
— Verá o que eu quero dizer quando chegarmos ao Pandemônio.
— E o que é isso?
— A capital do inferno — ele respondeu.