Capítulo 05

1275 Words
Contive a minha risada, mas mesmo não fazendo mais do que curvar os lábios, ele me lançou um olhar de repreensão. — Desculpe, é que eu não consigo imaginar como pode existir tal coisa como reinos e cidades dentro do próprio inferno. Parece irreal e absurdo. Valtrax deu de ombros. — Se pensar que tudo o que os humanos possuem, nós possuímos também, talvez seja mais fácil de absorver. — Então não há nada como fogo e enxofre por lá? — Pelo contrário, tudo é feito de fogo e enxofre — ele contrapôs. — No entanto, desde que você não seja uma das almas de pecadores, não verá mål em viver no inferno. — Viver no inferno — repeti as palavras, e elas me deram náuseas. — Como é que nós ao menos vamos chegar até lá, hein? — Já estamos nele, majestade — disse, enfatizando o seu tom de voz cansado e melancólico, como se em todos aqueles quinhentos anos ele tivesse repetido toda aquela conversa. — Esse é o rio Aqueronte. Eu voltei o meu olhar para as águas escuras. Não havia cheiro de fogo ou algo pungente e metálico que lembrasse ao enxofre. O céu não era vermelho e claramente não havia labaredas de fogo no chão, pois tudo era verde com grama fresca ou feito de rochas. Certamente minha concepção de inferno ou terra estavam desatualizadas. — Muita coisa deve ter mudado mesmo em oitenta anos — murmurei comigo mesma. Valtrax pegou minha mão sem avisar, mas me ofereceu um sorriso amistoso quando eu o encarei em choque mudo. — Hora de ir. — Avisou, me puxando consigo contra a fluidez do rio. —Durante a noite as criaturas se tornam insaciáveis. E, apesar de gostar muito da sensação de aprisionar almas com a minha espada, eu não quero mandar outra coisa terrível daquela para o Purgatório, se tiver escolha. Nunca se sabe se algum dia terei que reencontrá-las. Imaginei o que seria preciso para que alguém como ele fosse enviado ao purgatório. Que tipo de pessoa ou criatura seria capaz de matá-lo ou sequer ameaçar. — Agora que estamos juntos, você não pode simplesmente nos teletransportar de uma só vez? — Perguntei baixinho. Parecia estúpidō dizer aquilo em voz alta. Honestamente, toda aquela conversa parecia estúpida de se dizer em voz alta. — Quero dizer, do mesmo jeito que fez para me ajudar. Valtrax soltou uma risadinha sem humor. — Você me invocou para ajudá-la. Então eu tive de obedecer. Não posso criar portais com tanta facilidade assim, preciso da permissão do dono deste território. — Então somente eu posso criar portais a qualquer momento — debochei, revirando os olhos. Valtrax se voltou para mim com uma sobrancelha arqueada. — Seria útil se, em vez de contestar tudo o que digo, usasse estes poderes para encurtar a nossa viagem de volta. Caso contrário ela pode ser bem longa. — Ah, claro! Por que não disse antes? — Fiz um gesto de abanar com as mãos, ainda sendo bastante irônica. — Há tanto poder nesse lindo corpinho humano que fica até difícil me concentrar numa mágica só. Quer ver como eu tiro um coelho da cartola mesmo sem ter uma? Pela primeira vez, Valtrax pareceu contrariado o suficiente para revirar os olhos. Então sua expressão se suavizou e ele perguntou: — Realmente não sente nenhum dos seus poderes tentando ser libertado? Quase como um aviso de que estava ouvindo, eu realmente senti aquela coisa como sombras em minhas costas se enroscando fantasmagoricamente em meu corpo, pedindo para ser libertada. E novamente tive de reprimir um suspiro frustrado por não saber como libertar aquilo. — A única coisa que sinto é o poder vindo de você — falei, e não era totalmente mentira. Mesmo durante a descida que me tomou bastante concentração e eu quase nem dava muita atenção para o corpo certamente musculoso dele, mesmo sabendo que ele estava mantendo aquela coisa sobrenatural sob rédeas, eu ainda sentia minha mente sendo perturbada. Acho que jamais vou conseguir encontrar maneiras para descrever o efeito da luxúria em sua totalidade, tendo o receptor dela diante de meus olhos. Não era algo puramente sexuål, embora fosse sedutor... Era mais como um emaranhado de pensamentos pecaminosos e uma sensação de formigamento no corpo. Indescritível a força daquele poder, mesmo contido. — Estou contendo-o porque não quero que se distraia — ele disse, estudando o meu rosto por um segundo longo demais. — Tem certeza que o seu pecado capital não é o orgulho ou a ira? Você parece se gabar demais para poucas ações, parceiro guerreiro... O príncipe rapidamente franziu as sobrancelhas e seus lábios se contraíram num sorrisinho debochado. — E de onde foi que surgiu esse apelido, senhora-de-todos-os-pecados? Sacudi os ombros com desdém. — Provavelmente veio de alguma lembrança perdida sobre você ser mais como o cão que ladra e não morde. O sorriso deslizou para um lado, tornando-se malicioso, e uma polegada daquele seu poder se libertou apenas para me fazer esquentar. — Em algum momento vai perceber que eu sou justamente o cão que morde, majestade. Por enquanto, apenas trate de me seguir. Por um momento, ousei me perguntar se a força bruta de Valtrax não se assemelhava a qualquer força espiritual que eu tivesse, pois ainda sentia aquela coisa espreitando sobre os meus ombros e esperando por uma ordem para atacar. Acabei me perguntando quem poderia ser forte o bastante para me levar às ruínas por cinco séculos, e foi uma missão quase impossível não estremecer por medo. Medo. Eu sentia medo. E sentia dor naquele corpo frágil e humano conforme era levada a caminhar e saltar entre as pedras. E com certeza me sentia triste por ter aceitado tão facilmente me embrenhar naquele mundo desconhecido em busca de respostas. Então, como eu poderia sequer ser alguém como ele? Como poderia lutar de igual para igual com alguém como ele, cuja arrogância e brutalidade foram tantas que nem se dignaram a reconhecer qualquer ameaça no monstro de três cabeças que me atacou. Como se Valtrax fosse a própria criatura a se temer. Ou... como se EU fosse a criatura a se temer. Conforme nos afastamos do penhasco e percorremos a encosta rochosa daquele rio insípido e sombriamente belo, observei onde uma embarcação mediana se fazia presente, avançando sem ocupantes, como um pequeno barco assombrado. — Se você disse que em todos estes séculos eu tenho escolhido corpos humanos para reencarnar — falei, e talvez tenha sido pelo tom diferente, por não se parecer com algo que ele já tenha me escutado dizer naqueles quinhentos anos, mas ele parou diante do barco e me encarou. — Por que não escolher um daqueles humanos de pouca fé que você mencionou? Alguém que já conhecesse a... maldade... Que quisesse ser um de vocês. Valtrax considerou a pergunta, mas apenas retraiu os lábios e balançou a cabeça. — Talvez seja o seu destino. O destino dessa vida humana servir a uma alma pecadora. Ou o karma, eu quis retrucar, mas engoli as palavras. Apenas porque eu ainda tinha perguntas para fazer e ele já estava subindo no barco, deixando que a madeira estalasse e se acostumasse com o peso de seu grande corpo. Então eu o imitei, sentando no primeiro degrau próximo da borda dianteira, onde eu jurei que, pelos cantos dos olhos, uma capa fantasma roçou sobre os nódulos dos dedos que usei para me segurar. Gelei. — O que diabos... Fui interrompida por uma voz profundamente antiga e cruėl que disse em minhas costas e aos quatro ventos: — Almas de todos os pecados, vim-vos buscar para o centro do castigo eterno.
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