Eu soltei o ar com força, e devolvi o olhar de Valtrax, tentando demonstrar sinceridade, apesar do medo. Ele estava certo, no final das contas. Eu não sabia quem eu era. Podia ser um monstro como aquele que me atacara, embora ao olhar para baixo, na direção das minhas mãos imundas do meu próprio sangue, acabei franzindo o nariz para a ideia de haver algum tipo de poder ou magia dentro de mim. Se tivesse, provavelmente não estaria sangrando e confusa. No entanto, pareceu sensato considerar.
— Meu nome é desconhecido para mim, meu corpo é desconhecido para mim. Tudo isso é desconhecido para mim, e se você quiser me contar, eu prometo ouvir. Mas, por favor, não espere que eu saiba sequer quem você é, porque eu não reconheço nem mesmo as minhas próprias ações.
E eu percebi como admitir aquilo poderia ser péssimo em qualquer outra situação. Deixar que alguém percebesse o quanto eu era vulnerável diante de monstros, quando havia sido chamada por um título Real e reverenciada. Aquilo significava alguma coisa. Eu significava alguma coisa, pelo menos para aquele homem, considerando a forma como sua expressão beirou a um pânico repentino e tristeza genuína, seguido por uma expressão contemplativa.
— Posso fazer com que você se lembre.
— Como? — perguntei, temendo a resposta. Sabe-se-lá que diabos ele inventaria para me fazer acreditar já que o diálogo não estava funcionando. — Eu não consigo nem mesmo invocar o nome de Deu... O nome de De... m***a. Não consigo nem mesmo dizer um nome em prece na hora do desespero, como uma pessoa normal.
— É porque ele jamais permitiria ser invocado por uma criatura como nós, majestade. — O homem respondeu, solene. — A sua realidade é onde Deus... Não pode ajudar você. Ele provavelmente mandaria seus arcanjos para puni-la depois de tantos anos pecando em heresia, se já não estivesse em seu mundo.
Agora que ele falara, eu realmente podia me lembrar de um vago clarão de luz levando meu carro para fora da estrada. Não era a luz dos faróis de outro carro, mas eu não podia dizer com muita certeza se vinha de alguma forma divina. Tive de me esforçar para não bufar mais uma vez pela falta de informações em minha própria cabeça. Havia só um marasmo.
— Então eu realmente abri um portal com meus incríveis poderes que eu sequer sei quais são, e, aparentemente, já estou naquele tal mundo que você diz que sou dona...
— Rainha — ele pontuou.
— Rainha — considerei, entorpecida. — Mas ainda assim sou atacada por uma das criaturas que habitam esse maravilhoso mundo e que, hierarquicamente falando, deveria me respeitar por ser superior a qualquer um de vocês.
— Ele a atacou por conta do seu sangue humano — ele falou.
— Mas eu somente sangrei por conta do ataque dele — retorqui, arqueando uma sobrancelha.
O homem inclinou levemente a cabeça, um gesto puramente calculado.
— Isso porque podemos sentir o cheiro humano há quilômetros de distância.
— E por que você diz que quer me proteger e não estava aqui no momento em que me atraiu para cá com aquela canção?
Ele piscou, surpreso.
— Eu não a atraí, majestade. Você entrou em seu mundo por conta própria.
Eu abri um sorriso, achando que o havia pego na mentira.
— Não, sem chances, parceiro. Eu escutei uma cantoria me atraindo para este lugar, e ela definitivamente me dizia para encontrar alguém.
Os lábios dele se franziram numa linha.
— Não, majestade. Eu jamais a atraí para qualquer lugar. — Os olhos negros se tornaram sombriamente confusos com a afirmação. — Inclusive, é apenas um poder seu conseguir entrar em qualquer mente como o assopro do vento. Por isso eu tive a permissão para aparecer aqui, de imediato. Eu escutei você chamar.
Minha garganta ficou mortalmente seca e dolorida, como se eu tivesse engolido vidro.
— Quer dizer que há realmente alguma outra criatura que atraiu a nós dois para cá? — perguntei, girando no lugar para observar o entorno. Havia apenas sol se pondo, o verde da natureza, as rochas abaixo daquele penhasco, e o rio sinuoso de plateia. — Só pode ser uma alucinação! Deve ser por todo esse sangue escorrendo da minha barriga. Eu devo estar morrendo, é a única explicação plausível. Meu D... merdå.
Sem dizer uma palavra, o homem se aproximou, e eu me senti verdadeiramente intimidada quando ele ergueu a mão, não para me oferecer novamente, mas para tocar em minhas mãos sobre a barriga, esquentando a pele com um toque que quase me fez recuar. Quase. Se eu não tivesse sentido uma coceira abaixo das mãos unidas e minha pele prazerosamente se movendo em tremidas suaves, até mesmo aquele primeiro corte em minhas costas pareceu esquentar e estremecer. Um vento quente e perfumado soprou nossos cabelos, enroscando as pontas de longas mechas molhadas e escuras do meu próprio cabelo em torno dos meus braços trêmulos, como se não apenas o ferimento, mas tudo ao nosso redor, estivesse voltando no tempo, embora nós dois estivéssemos parados.
Quando ele tirou a mão, eu também tirei, vendo o sangue ainda em meus dedos, ainda molhado, mas sem qualquer vestígio dele em minha barriga, sem qualquer sinal de corte. Talvez eu estivesse louca e presa naquele carro para imaginar tantas coisas, mas deixei que minha mente se convencesse daquilo então. Eu estava louca.
Me obriguei a ser convencida por aquilo apenas porque pareceu certo sentir aquele poder, apenas porque parte de mim estava muito ciente de que o peso em meus ombros pareceu se aliviar, como se aquela coisa despertada no acidente de carro houvesse saído de cima deles e agora estivesse fazendo sombras em minhas costas. Como um animal pronto para o ataque caso eu o libertasse, caso eu me lembrasse como fazer.
— Valtrax é o meu nome — disse ele, novamente inclinando a cabeça em uma reverência. — Sou receptor de Asmodeus, pecado da luxúria, comandante de quarenta e seis legiões de demônios, e um dos sete príncipes do inferno, segundo imediato de Lúcifer.
Eu não percebi que tinha arregalado os olhos e prendido o fôlego até precisar parar. Até levar a mão até a testa e sentir o sangue manchar minha pele conforme passava a mão por ali, tentando aliviar minha própria dor de cabeça. Era insano. E um instinto absurdo começava a me encorajar a fugir. Simplesmente pular naquele rio e que o destino se encaminhasse do resto.
Mas, por outro lado, reconhecimento frio latejou dentro de mim, como se ao dizer aquelas palavras cansadas, Valtrax tivesse trago à superfície o monstro abaixo da minha própria pele.
— Então você está dizendo que aquela criatura pertencia ao inferno?
Valtrax anuiu com a cabeça. — Sim. Ele fazia parte de algum dos outros cinco reinos restantes do nosso mundo.
Mordisquei o lábio, inconscientemente, e meus olhos foram para longe do príncipe diante de mim. Focando em alguma lembrança distante que talvez houvesse passado despercebida. Havia uma neblina pairando sobre os meus pensamentos, convertendo-os num clarão borrado que eu não podia discernir. Eu não podia me lembrar de uma civilização infernal sob o meu comando. Não podia me lembrar de me deitar com monstros. Não podia sequer entender como as palavras se assentaram tão facilmente, como uma verdade absoluta.
Sabia, porém, que sendo ou não um dos sete pecados capitais, Valtrax não estava usando seus poderes naquele momento para me convencer a segui-lo. Estava, de alguma maneira que eu não podia contradizer, me mostrando através das palavras que havia mesmo um mundo além do céu e da terra, e que eu talvez pertencesse aos três.
— E eu sou a rainha de todas essas criaturas e reinos?
— Você é.
Quando voltei o meu olhar para ele, Valtrax estava muito sério.
— Achei um documento que dizia que o meu nome era Keigh Flamel. Uma garota normal, com quase dezenove anos.
— Sua alma tem mais de quinhentos anos. — Ele percebeu que assustei com a diferença entre as idades e se apressou em acrescentar: — Assim como eu próprio tenho milênios.
— Minha alma, não o meu corpo — considerei, esperando por mais informações.
— Não morremos como os humanos — ele explicou. — Seres como nós têm suas almas jogadas ao vento para reencarnar em novas vidas.
— Então eu acabei me tornando essa garota que não se lembra de nada sobre nenhum dos mundos.
— Você escolheu viver uma nova vida como essa garota depois de oitenta anos da sua morte. E somente você sabe o motivo dessa escolha.
Eu não sabia onde colocar as mãos, nem como agir, então apenas troquei o peso do corpo entre os pés.
— Parece que eu andei muito ocupada em todos esses anos, se decidi que voltaria como alguém sem lembranças e sem poderes.
Os lábios bonitos de Valtrax se moveram num sorriso muito breve e cauteloso.
— Quero que entenda que pode usar o nome que você quiser, assumir a forma humana que você desejar, desde que aceite que eu a tire deste lugar com tantas bestas miseráveis que estão loucas para arrancar a sua pele e que permita que eu a acompanhe para o seu verdadeiro lar — disse, novamente erguendo a mão diante dos nossos corpos. Quando eu não a peguei, ele acrescentou: — Se não aceitar, suponho que precisarei montar campana no meio deste penhasco e garantir pessoalmente que nenhuma outra criatura abusada terá a chance de encostar em minha rainha.
E aquilo acendeu algo em mim, uma curiosidade ou a mais pura das insanidades, pois eu simplesmente barganhei: — Vou com você, se me contar, com detalhes, o quê exatamente eu governo.
Valtrax abriu um sorriso verdadeiro desta vez, satisfeito, percebi, e quando notei nos dentes perfeitamente brancos e os lábios que levaria um pecador à loucura, também notei o motivo para ele ser a versão corpórea do pecado da luxúria.