A noite surgiu surpreendentemente rápida conforme navegávamos sobre o rio de águas vermelho-escuras.
Foi como se alguma entidade ou ser superior houvesse usado um interruptor sem aviso prévio, apagando o sol e acendendo o brilho de estrelas, embora por mais que eu me esforçasse em vislumbrar com clareza, os pequenos pontos luminosos que apareciam nos céus não se assemelhavam verdadeiramente às estrelas. Talvez uma cópia do que elas poderiam ser, num mundo que não fosse aquele. Como se o ambiente estivesse se adaptando para me impressionar, me seduzir, e me convencer de que não havia nada de diferente do mundo mortal.
Eram, em contrapartida, curvados pontos brilhantes e grandes demais para serem meras estrelas, como pequenas imitações de luas minguantes, todas espalhadas pelo céu que assumiu um tom de azul-escuro com escassas nuvens de um rosa pálido, no que imaginei ser o que se obteria misturando o preto e uma pequena parte de tinta vermelha. A escuridão e o fogo acima de nossas cabeças.
Silencioso e traiçoeiro, o rio abaixo de todo aquele espetáculo sombrio de cores permanecia sereno. Uma bruma subia lentamente através das águas, num espiralar suave pela noite fria. A eminencia da nevoa me fazia pensar que realmente não era uma boa ideia andar por aí apenas com camisa e calça, no entanto, eu não fiz questão de demonstrar ao meu companheiro de viagem que estava interessada em um agasalho. Acreditei mesmo que ele poderia me oferecer a própria armadura se eu ousasse pedir, e eu não sabia como seria a visão de toda aquela massa de músculos sem o ornamento, então preferi sentir o frio.
Eu estava completamente distraída com as cores, com o rio que se estendia mais longe do que meus olhos podiam alcançar em suas águas escuras e suaves, saboreando a sensação de entorpecimento que começava a me embalar, quase como se eu estivesse novamente me sentindo sonolenta, quando notei que Valtrax me estudava sombriamente com o olhar. Imediatamente me lembrei de que ainda haviam perguntas a serem feitas.
— Qual era a minha verdadeira aparência? — eu quis saber, me empertigando no banco desconfortável, e a madeira estalou sob meu peso. — Ou em todos os séculos eu sempre fui uma versão parecida com essa?
Valtrax me avaliou dos pés à cabeça, observando os ombros estreitos, os seiös fartos na camisa, a barriga fazendo dobrinhas apesar de eu estar o mais reta possível, as coxas que se apertavam na calça jeans. Como se não estivesse nenhum pouco impressionado, ele deu de ombros. A reação deixou meu ego consideravelmente desapontado.
— Criaturas como nós podem assumir a forma que quiserem. Podemos criar o que quisermos, desde que possamos ter um modelo como referência. Nossa verdadeira forma exige muito poder para ser liberada, então a poupamos, na maior parte do tempo. Você sempre foi muito bonita, em qualquer versão escolhida.
Devo ter ficado um pouco vermelha, considerando a forma como minhas bochechas queimaram, e silenciosamente esperei que as estrelas diferentes do céu não deixassem que ele notasse o rubor. Considerando o modo como seus lábios se curvaram num discreto sorriso, eu soube que ele também percebera o sinal de timidez.
— Sempre fui bonita no sentido de um humano, ou bonita no sentido de alguém como você?
A cabeça dele se inclinou levemente para o lado, num movimento que poderia ser de pura contemplação. Poderia ser se não fosse o novo sorriso que pintou seus lábios de modo quase predatório, intimidador.
— Devo aceitar isso como uma tímida declaração sobre meus poderes estarem perturbando-a, majestade?
— Não estou sendo perturbada — menti, cruzando os braços para ter algum contato de conforto, e rapidamente percebi que o frio havia deixado meus seiös enrijecidos sob a camisa. Ou, quem sabe, fora uma reação do meu corpo aos tantos sorrisos e gracejos do desconhecido detentor do pecado da luxúria. — Mas gostaria que me contasse sobre os poderes do seu pecado, se não for pedir muito.
— Posso entrar na mente dos meus inimigos e criar ilusões.
— Quais tipos de ilusões?
No fundo, alguma parte teimosa da minha consciência humana temia que tudo ao meu redor fosse uma ilusão causada por aquela estranha magia infernal. Que ele quisesse me fazer acreditar que não estava navegando em um mar de fogo e indo direto para o mármore do inferno. Embora realmente eu acreditasse que havia, sim, algum encanto para me fazer enxergar como algo bonito e inofensivo aquele rio escuro e hospedeiro de criaturas de olhos brilhantes que surgiam vez ou outra em pontos aleatórios das águas, eu duvidei que ele seria poderoso o suficiente para moldar um mundo ao seu bel prazer.
— Ilusões que afetem a libido — esclareceu, distraído com a tarefa de amarrar os cabelos para longe do rosto. — Qualquer forma de atração que possa distrai-los o tempo suficiente para que eu mate com a minha espada.
Desviei meu olhar para a sua cintura, onde a espada jazia pendida sobre a sua coxa. Não era muito fácil de se esconder uma espada tão longa e de lâmina larga, mas ela parecia se acomodar perfeitamente ao lado do corpo dele, como um membrö adjacente. Feita para complementar aquela brutalidade natural.
— Sua espada é impressionante, aliás.
— Gostou? É a única arma no mundo capaz de desgarrar a alma de um demônio e enviá-lo diretamente ao purgatório. — Ele aproveitou a deixa para desembainha-la. O aço cantou suavemente sob uma brisa fria que nos alcançou, e o metal preto quase se camuflou perfeitamente nas sombras. Mas eu já a reconheceria perfeitamente àquela altura. — Foi você quem me deu.
Meu cenho se franziu, e a confusão me alcançou.
— Nós éramos próximos o suficiente para que eu te desse um presente tão importante?
O seu olhar me estudou por mais um momento crucial.
— Sempre fomos bastante próximos, majestade.
— Como amantes?
Ele abriu um sorriso tão bonito que teria me feito derreter se estivesse de pé.
Honestamente, eu esperava que ele fosse dizer que, sim, éramos amantes. Porque eu podia não me lembrar muito bem da vida que Keigh Flamel havia tido, mas podia saber que eu nunca tinha me sentido atraída de forma espontânea e imediata por um homem. Sendo mais sincera ainda, duvidava muito que haveria no mundo humano algum homem que se assemelhasse à Valtrax.
— Como aliados — frisou, guardando a espada. — Apesar de eu ter me certificado em todos os seus mais de quinhentos anos de existência de espalhar boatos que nunca houve beleza maior em nosso mundo além da sua, e isso talvez fosse o suficiente para que alguns pensassem que somos ligados por algo além de pura política governamental. Mas apenas fiz isso por achar graça nos boatos.
Mentiroso de uma figa, cantou aquela parte inconsciente e selvagem dentro da minha alma.
— Então, se é possível copiar a aparência de alguém com o uso de poderes, eu poderia escolher ser incrivelmente gostosa sem precisar de uma atividade física para isso? — pisquei, esperando, mas ele apenas arqueou uma sobrancelha ao olhar diretamente para os braços que eu havia cruzado sobre os seiös enrijecidos pelo frio, como se dissesse que eu não precisava daquilo num mundo cheio de demônios terríveis como o Furshay e que também nem mesmo a magia manteria o físico impecável se os hábitos não mudassem. Suspirei. — Não custa sonhar.
Valtrax me observou no rosto desta vez, notando cada linha de expressão, cada curva e aspecto. Em seguida, ele olhou por cima do meu ombro, não na direção do rio, por cima de mim. Olhou e fez uma mesura, reconhecendo o que via, e demonstrando respeito.
Senti seu poder se soltando daquela amarra invisível que ele estava mantendo, numa tênue tensão entre nós. Senti meu próprio corpo responder, querendo sentir o contato dele, querendo se render às promessas de um desejo que simplesmente se arrastou até mim como uma lembrança há muito esquecida. Tive de segurar na madeira envelhecida do banco abaixo de mim, enroscando os dedos com tanta força que algumas lascas se soltaram. E ele continuou olhando para aquele ponto por sobre os meus ombros, mesmo quando senti algo no fundo da minha alma clamar por toda aquela atenção.
De fato, ele estava me mantendo distraída com uma torrente de pensamentos impróprios e indecentes que ondularam dentro da minha cabeça como uma canção envolvente. Distraindo-me do que quer que estivesse enxergando atrás de mim.
Não virei para me certificar de que a coisa que ele via não era uma ameaça, mas jurei ter visto pelo canto dos olhos algo muito grande se agitar com empolgação nas sombras. E eu soube de imediato que não seria o barqueiro fantasma posicionado bem ali, silenciosamente nos assistindo ignorar a sua presença. Mas outra coisa que esteve comigo desde o acidente até aquele momento. E eu senti aquela onda de poder sedutor e sombrio novamente me perturbando, deixando minha cabeça distante e leve, tal como se eu estivesse ao ponto de desmaiar.
Eu soube que aquele era o sinal dele se retirando, afastando aquela magia sobrenatural para devolver os meus próprios sentidos. Fiquei levemente enjoada quando o frio da neblina me envolveu, tão diferente do calor daquele poder.
— Não imagino o por quê a sua aparência seria motivo de tanta curiosidade, apesar de ser bastante desconcertante mesmo para mim — ele falou num tom rouco que me deu um prazeroso arrepio na coluna. A ideia de desconcertá-lo parecia irreal. — O seu poder é o verdadeiro motivo para quererem tanto que não consiga voltar dos mortos, e o motivo para tanto desespero a cada vez em que você consegue. Você é temida e respeitada, independente da forma humana que use para retornar. A alma dentro de você é o pesadelo de qualquer demônio menor, e o sonho de consumo de qualquer anjo caído.
Senti o rio abaixo ondular quase como se estivesse concordando com ele, e me encolhi um pouco ao perceber a temperatura caindo precipitadamente, como se tivéssemos acabado de atingir o meio do lar de alguma nova e terrível criatura.